O "Buala" é um projecto atraente: "sítio da associação cultural Buala, (...) o primeiro portal multidisciplinar de reflexão, crítica e documentação das culturas africanas contemporâneas em língua portuguesa, com produção de textos e traduções em francês e inglês." Óptimo.
Depois, logo a seguir, começa por ser dada publicidade a um texto de uma das criadoras do projecto, obviamente anterior a este, que vem à partida afectar a eficácia e a credibilidade daquilo que se põe em marcha: http://www.buala.org/pt/a-ler/a-lusofonia-e-uma-bolha. A expressão “bolha lusófona”, ouvida num congresso de literatura pós-colonial, pode ser a "metáfora certa" (como se diz) para estabelecer cumplicidades académico-políticas, mas não é operacional para entrar agora no terreno prático das relações entre leitores e agentes culturais maioritariamente lusófonos. Este projecto não pode fundamentar-se nem construir a rede de apoios e participações de que carece com a infeliz afirmação de que o espaço linguístico comum é, afinal, "uma coisa pequenina que protege, sem arestas, inflamada e pronta a rebentar a qualquer momento. Fechada para o seu umbigo, não querendo ver nada mais, assim é a lusofonia."
Na capa, "O Infante D. Henrique, iniciador do descobrimento scientífico do planeta e da obra de colonização europeia". Ilustração de José Tagarro
Na sequência do artigo, vai-se hesitando entre a rejeição do conceito da lusofonia, cumprindo os medíocres protocolos escolares que substituíram nos mesmos lugares as anteriores doutrinas, como cómodos breviários para a preguiça intelectual e para policiar as dependências pessoais, e, por outro lado, o desejo de que fosse mais eficaz a sua realidade estratégica. Já é um bom sinal.
Não começo aqui uma crítica exaustiva de um tal escrito de 2008 erradamente recuperado nas novas circunstâncias. Basta recusar a facilidade (atribuindo a desonestidade só ao academismo dito pós-colonial) de identificar direita ou fascismo e colonialismo, e se M.L. começa com citações de Caetano e Salazar cabe propor a sua troca por uma citação democrática da Seara Nova, de poucos anos antes. Mais longa e extraída de um número especial dedicado à Questão Colonial, organizado por Jaime Cortesão, precisamente no início de 1926.
"A África é algo mais do que uma terra a ser explorada; a África é para nós uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande Estado." Marcelo Caetano, 1935
"No meio das convulsões presentes, nós apresentamo-nos como uma comunidade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e compreensão cristã, irmandade de povos que, sejam quais forem as suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam, orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses." Salazar, 1933
(e começa o artigo de Marta Lança) 1. Felizmente há vozes, muitas e plurais, que reflectem sobre o significado de enunciados aos quais certos discursos e políticas, culturais e outras, recorrem para erigir um imaginário e suposto património transnacional – o espaço lusófono - que resulta da experiência imperial e colonial, legitimado por uma espécie de excepção moralmente aceitável do colonialismo português e que se inscreve, ontem e hoje, numa ambição de universalismo1. Para além de trabalhos que se dedicaram a desconstruir este discurso, a minha vivência em países africanos de língua portuguesa, e alguns amigos migrantes, por vontade e necessidade, confirmaram-me o que pressentia: a lusofonia reverbera o passado colonial, as pessoas relacionam-se e interessam-se pelas histórias uns dos outros mais forçosamente dentro do contorno desta “comunidade imaginada”, que nem por isso lhes facilita nas condições de vida e, a existir projecto lusófono, em não poucos aspectos, tem falhado redondamente.
Por um lado, o problema de base: a criação de um discurso político que prolonga as relações de dominação2 provindas do tempo colonial, por outro, este mesmo discurso tem várias disseminações no mundo real, contendo em si a sua própria disfuncionalidade.
A expressão que ouvi num congresso de literatura pós-colonial - “bolha lusófona” – usada pela professora italiana Lívia Apa para ilustrar a literatura do espaço lusófono, pareceu-me a metáfora certa: uma coisa pequenina que protege, sem arestas, inflamada e pronta a rebentar a qualquer momento. Fechada para o seu umbigo, não querendo ver nada mais, assim é a lusofonia." (...)
Prefiro pensar a partir dos enunciados programáticos colonialistas de outro quadrante político, que à época se pode dizer progressista, para situar com uma mais correcta complexidade o que foi a dominação ultramarina:
"A QUESTÃO COLONIAL"
"A Seara Nova entende que a finalidade ideal da nação, maior e profunda razão da sua independência, se liga indissoluvelmente à missão colonizante e, por consequência, à posse dos seus domínios do ultramar. Destarte, qualquer perigo que impenda seriamente sobre as colónias portuguesas, conturba e ameaça a vida de Portugal, no jogo íntimo das suas energias e aspirações essenciais."
(…)
“A Seara Nova não julga isenta de erros e de manchas a administração colonial dos portugueses. Mas erros e manchas, por vezes bem mais graves, se podem apontar na administração colonial dos estrangeiros, sem que a opinião pública se alarme por tal motivo.
A Seara Nova entende que Portugal deve aos indígenas dos seus domínios ultramarinos a protecção mais eficaz e um esforço contínuo de assistência no sentido duma crescente civilização. E pensa que só com essa condição lhe será lícito manter a soberania sobre os seus vastos territórios.Mas, hoje como ontem, nós podemos afirmar que nenhuma outra nação exerceu obra colonizante mais isenta dos degradantes preconceitos de hostilidade ou de repulsa pelas raças indígenas. Nada na história colonial dos portugueses que se pareça com esse aviltante e desumano desprezo que o anglo-saxão ainda hoje mantém em relação às outras raças. Não obstante os erros e as manchas da nossa administração, nunca superiores às alheias, podemo-nos orgulhar de termos sido no passado os mais nobres criadores de Humanidade Nova; e enquanto o anglo-saxão fundava os Estados Unidos, sobre a destruição total das raças aborígenes, nós criávamos o vasto império do Brasil, fundindo com mais humano esforço e em magnífica união os povos indígenas, as raças africanas e europeias.
Ontem, como hoje, um inglês consciencioso poderia afirmar, como Johnston, há quarenta anos em conferência pública: «Um dos mais injustificáveis erros em Inglaterra é acusar os portugueses de crueldade com os indígenas: eles estão, pelo contrário, dispostos a ser quase sempre demasiado brandos no tratamento que dão às raças negras... Demais, sob a lei portuguesa, todos os homens são iguais. Os graus de cor não se traduzem em castas sociais; o sangue negro não é desprezado. Se eu fosse negro preferiria infinitamente o ser súbdito português a sê-lo doutra qualquer nação. (v. Andrade Corvo, Estudos sobre as províncias ultramarinas, vol. 111, pág. 315 e seg.).É em nome dessa verdade incontestável que nós reivindicamos o direito de soberania sobre os nossos domínios coloniais. E ainda quando os nossos erros de administração fossem maiores do que são na realidade, a justiça mandava que se atribuíssem à crise que a nação atravessa e não a qualquer falência irreparável.
Uma nação é um bloco no espaço e no tempo, uma porção de humanidade em marcha. Quem quiser aquilatar-lhe das virtudes ou dos defeitos deve inferi-los pelos movimentos gerais da sua história e o processo íntimo dos seus triunfos ou desbaratos. Se é melindroso julgar dos indivíduos, sem ponderar os precedentes, muito mais difícil se torna fazer justiça aos povos, quando eles têm uma vida de alguns séculos e nela os períodos de glória se alternam com as épocas de apagada inércia.
Julgar um povo, como alguns pretendem, apenas à luz duma verrina difamatória e interesseira, seria um crime hediondo e indigno do espírito da época e das suas mais belas conquistas e afirmações.As outras nações têm-nos negado a possibilidade de firmar a nossa soberania sobre os direitos históricos apenas. Felizmente que a podemos igualmente reclamar pelos direitos duma ocupação contínua e progressiva. Mas quando, como em nosso tempo, em toda a parte e por mil formas se afirma o princípio da unidade do género humano e da interdependência de todos os povos, seria absurdo, iníquo e revoltante que os actos ou os direitos duma nação se aquilatassem a uma luz diferente e a segregassem do tempo, para adrede se esconderem os serviços e as bondades imensas de que a civilização humana lhe é credora para sempre.
Quer isto dizer que limitemos toda a acção às declamações dum historismo estéril e platónico? De forma alguma. Portugal está de novo, como há quarenta anos, numa encruzilhada. E chegou o momento de optar pelo bom ou pelo mau caminho. Então foi a inércia e a falta de visão a tempo que o perderam. E hoje, ou toma, apoiando-se nos seus direitos, a consciência forte e activa dos seus destinos e deveres e delega a sua função governativa em outras mãos, mais dignas e competentes, para dilatar a ocupação económica e o esforço civilizador em África, emendando os erros e castigando as faltas; ou novamente sofrerá o vilipêndio das piores humilhações e, espoliado e escarnecido, dará mais um passo - quem sabe se o derradeiro?! - para a perdição final.” (N.º 68 e 69 - 9/1/26 - in SEARA NOVA ANTOLOGIA, Pela Reforma da República (2) 1921-1926, Seara Nova, 1972, pp.19-26)
Ninguém desmentirá que o espaço lusófono, enquanto imaginário e património imaterial transnacional, enquanto consequência histórica e realidade cultural, resulta, não de um qualquer acaso ou acidente geo-físico, mas da experiência imperial e colonial - transportando-se nele a inscrição material e também a memória possível dos seus méritos e vícios, mas tanto e a seu modo respectivo no espaço da antiga metrópole como das antigas colónias. E esse espaço agora como sempre instável resulta também de mais experiências, mas essa ordem de realidades não se confunde com a permanência ou actualização das legitimações, excepcionais ou não. É fácil desconstruir amálgamas forjadas entre factos e argumentos ou justificações: dizer que a lusofonia reverbera o passado colonial é literatura fácil e se se disser que o continua percebe-se que o modo é agora inteiramente outro - as relações de dominação não se prolongaram na história recente, até por falta de meios para tal, e o discurso político (cultural e geo-estratégico) da lusofonia só pode assentar num programa intencional e material de trocas - por hipótese, a tal dominação (já não colonial) poderá até fazer-se em sentido inverso.
O discurso da lusofonia é matéria da diplomacia e o da anti-lusofonia é só inútil retórica escolar. O que importa não passa por essas falas. Por isso, as trocas que o Buala se propõe propiciar precisam de um discurso mais prospectivo e corajoso. A acção a que se promete não pode depender de envelhecidas hierarquias académicas e dos seus congressos.
Permita-me esclarer e responder em relação a algumas questões que levanta aqui e num email sobre o texto "A lusofonia é uma bolha". Para contextualizar, escrevi-o quando cheguei de uma longa temporada em África, e me deparei com a desadequação do discurso da lusofonia produzido em Portugal às realidades africanas.Cabo Verde, Angola e Moçambique são os países onde tenho trabalhado na cultura, educação e informação, com as pessoas de lá e sem mordomias de expatriados. Agora estou a viver no Rio de Janeiro. Esta mini biografia para explicar que este texto decorre mais da experiência e da realidade, das opiniões e vivências de amigos, do que dos 'bancos da escola e papers académicos', que não são de todo a minha praia (não sou académica nem pretendo ser).
Se acha que é desonesto intelectualmente colar o colonialismo à direita de facto temos um problema de base. Do lado português não sei muito, a não ser a memória compreensivelmente ferida dos refugiados de 75, e algumas coisas muito interessantes na urbanização das cidades africanas, assim como de projectos artisticos e de altos indices na indústria do café e algodão, etc. mas sei bem o que as pessoas africanas contam por lá. São histórias de má memória, a falta de bases, de educação e opressão que esse regime e o colono deixaram. E sei bem o que estão os portugueses hoje em dia a fazer em Angola e a indústria de desenvolvimento em Moçambique. Acredite que a maioria não tem qualquer interesse naquilo para além da sua carreira e de fazer dinheiro.
Se acha que encontrar outras formas de pôr estas pessoas em diálogo (como pretendemos fazer com o Buala) sem ser pelo discurso, reverberador do passado sim, da lusofonia a partir de Portugal (reitero que refiro enquanto discurso nao como a realidade da partilha da língua) é incoerente, também não temos um entendimento.
Que fique claro: antes de avançar com o projecto online apresentei o BUALA a entidades, artistas e intervenientes africanos, em Maputo e Luanda, consultei pessoas da cultura e professores em Cabo Verde e do Brasil, para ver se fazia sentido e se tinha pernas para andar, se tinhamos colaboradores destes países. O primeiro apoio e voto de confiança proveio sintomaticamente aqui do Brasil, país onde se acredita nas ideias.
Muita gente circula neste espaço, temos uma língua comum e realidades que se tocam, sinto-me em casa em qualquer um destes países, mas de facto não há um grande conhecimento mútuo nem uma interessante promoção entre si - com acções e discurso muitas vezes decrépitos e anacrónicos da diplomacia portuguesa, que não comunicam com a dinâmica dos lugares onde trabalham (com válidas excepções).
O facto de ter uma visão geral destes países - dos seus rancores e irritações, das tendências, dependências e vontades, das práticas culturais e figuras, e precisamente por acreditar que há uma nova geração que consegue viver estas realidades trazendo outros elementos e ter um olhar descolonizado, em todos os lás e em todos os cás, fez com que se achasse proveitoso pôr em diálogo as várias perspectivas no interesse da partilha.
É com estas novas visões e novos topos que nos interessa trabalhar, de forma descomplexada, para lá do pós-colonial mas também com ele em tudo o que comporta de análise das relações do passado para entender as do presente.
Reconheço que este texto esteja datado e pode parecer desadequado quando inauguramos uma plataforma que tem colaboradores de toda a CPLP. mas introduziu-o precisamente para nao se confundir o Buala com uma celebração da lusofonia, para ser outra coisa a inventar entre todos.
Porque, e disso tenho a certeza, o discurso da lusofonia interessa muito mais a Portugal do que ao Brasil ou a Angola, que têm outro tipo de argumentos, pretensões e mútuas influências. Muito nos liga entre nós, e é também a nossa diferença que faz a curiosidade, mas não é uma união firmada numa construção harmoniosa e horizontal. É-o muito mais por passados violentos e dinâmicas actuais que deles provêm e os subvertem noutra relação de poderes (o que está a acontecer actualmente com a nova soberba capitalista angolana e que muito irrita alguns angolanos "então só agora que temos dinheiro é que nos respeitam em Portugal, depois de tanta humilhação?").
E se se quer de facto implementar um projecto lusófono que acompanhe a realidade 'lusófona' não se pode esquecer as condições de vida das pessoas, os vários tipos e interesses dos migrantes actuais, certos discursos políticos e diplomáticos, a falta de investimento numa boa difusão cultural e de circulação de estudantes, os estereotipos, os racismos etc. Temos de questionar qual é de facto esse projecto, quem dá a cara por ele, o instrumentaliza ou o faz render.
Sinceramente não percebo onde está o interesse em falar sobre e com África sem ponderar todos estes e muitos mais pontos de vista, sobretudo a partir de uma África real, que deixe de ser fantasiosa e sublimada por mentes europeias.
Espero que o BUALA sirva para minorizar esse tipo de equívocos e que haja mais gente a manifestar-se nos vários lugares de enunciação 'lusófonos' sem o vínculo da lusofonia.
Posted by: marta lança | 05/27/2010 at 06:18
Espero que (se) perceba que tento distinguir o discurso que a academia impõe e administra (a partir do centro, como um novo imperialismo que se legitimaria pela autoridade do saber), e o que o Buala e as suas criadoras querem fazer.
Na intervenção escrita ou prática (também é prática...) que pretendo ter não me ocupo dos discursos da lusofonia como sua legitimação ou seu propósito; isso é para a diplomacia. Mas também não me interessa começar por atacá-la, o que resultaria apenas em fechar portas. E seria amalgamar planos de intervenção.
Quando introduzo o tema do colonialismo de esquerda (desde logo o da antiga tradição e depois oposição republicana e democrática) é para complicar a boa consciência distraída do pessoal, para aprofundar a crítica do colonialismo (sem o alibi dele vir da direita), e porque há que situar a análise das políticas concretas, dos discursos e das ciências no seu tempo ou contexto próprios.
É errado considerar que o discurso político (todo ele) que se ocupa do espaço lusófono (o qual "resulta da experiência imperial e colonial" - pois é, ele não "nos"? saiu na lotaria...), prolonga "as relações de dominação provindas do tempo colonial". Podemos usá-lo sem complexos, e ir passando-o por um exame crítico atento e descomplexado, sem deitar fora o bebé com a roupa suja.
Posted by: AP | 05/27/2010 at 10:56