Tenho muita dificuldade em ler os folhetos culturais de nicho que por aí circulam, e em particular os que saem com o Público. Hoje esforcei-me e valeu a pena. Amanhã vou ver a exposição.
Fico por agora pelo caderno da Culturgest (!) onde a irreverência do nosso mais sério banco corre o risco de passar desapercebida, apesar do notável exercício de imaginação com que se baralham informações e se reescreve a história. O humor belga (nem sempre é uma qualidade) que marca a capa com a ilustração de Patrick van Caeckenbergh é um aviso, e lá dentro, entre outras citações fantasiosas, aparece a discreta rasteira associada, como se deveria esperar, a Duchamp. Provocação ou conceptualismo trapalhão, fica adiante a pergunta.
"Regressando a Duchamp: depois de o seu "urinol" ter sido rejeitado pelo Armory Show em 1917, ele participou na publicação de dois números de uma pequena revista satírica chamada The Blind Man,..."
"The exhibited refused by the Independents" (legenda da foto de Alfred Stieglitz), "The Richard Mutt Case" - "...The only works of art America has given are her plumbing and her bridges." - e "Buddha of the Bathroom", by Louise Norton*, no nº 2 de uma publicação que também já foi considerado um "documento dadá fundamentalíssimo**" (*Dada, Centre Pompidou, 2005; **Duchamp, Caja de Pensiones, Madrid, 1984, catálogo crítico a cargo de Gloria Moure)
A edição CGD/Público tem cuidadosamente indicada a concepção e coordenação, as traduções e as revisões. Não há portanto lapsos ou deslizes quando se colam num facto único duas datas tidas por fundadoras da arte do séc. XX, a contemporânea. É tudo sábio e intencional, desde o texto original publicado por um tal professor-comissário em "Dot Dot Dot" (!!), Nova Iorque, 2010, até à página do folheto onde habilmente se troca a exclusão-inclusão da obra ou peça "Fontaine", em 1917, na exposição dos Independentes (a 1ª exposição da Sociedade dos Artistas Independentes, de que M.D. era fundador e membro do comité de accrochage), pelo escandaloso êxito do Nu descendo a escada, na International Exhibition of Modern Art, em 1913, que ficou conhecida como Armory Show.
The Blind Man, revista publicada por instigação de M. Duchamp, por Henri-Pierre Roche (muito mais tarde ficou famoso por ser o autor de Jules et Jim que Truffaut filmou), em dois números datados de 1917, em NY, além de ser uma pequena revista "satírica" (segundo o actual folheto paródico editado pela Culturgest) foi uma publicação que se ocupou apenas do referido salão dos Independentes (no 1º nº) e que incluiu a famosa fotografia do Urinol/Fonte por Stieglitz associado a um artigo de Louise Norton que se intitulou "O Buda do quarto de banho", fazendo ambos entrar um não-acontecimento na história (então na pequena história). Aí se propunha uma abordagem estética do objecto ao destacarem-se as suas propriedades formais, o que não era apenas uma piada. O folheto diz que os artigos eram anónimos, mas isso é ainda mais uma rasteira.
Tudo isso teve à época pouca importância, e é sempre preciso saber contextualizar os jogos de sociedade que tinham então lugar nos salões milionários dos Arensberg enquanto a guerra se prolongava na Europa. "Cinquenta anos antes do conceptualismo, Duchamp desestabilizou o território da arte no seu cerne,..." O folheto tem graça e o tal conceptualismo é em geral risível ou ignorante. Tantas citações, tantos autores referidos só podem ser poeira nos olhos.
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