Por qualquer razão que me escapa, o texto crítico que publiquei em 2001, no caderno "Actual" do Expresso (7/Abril), a respeito de uma anterior exposição retrospectiva do pintor Nadir Afonso no Centro Cultural de Cascais, não é referido na bibliografia incluída no catálogo da semi-retrospectiva (anos 30-60) que o Museu do Chiado apresenta desde 3ª feira, 22 - e nela se referem vários escritos irrelevantes.
O facto é tanto mais insólito quanto à data o mesmo texto não passou despercebido ao artista, já que lhe respondeu numa carta publicada no mesmo lugar a 12/5/2001, que preferi deixar sem réplica, e pelo menos este texto do pintor deveria ser referenciado pelo contributo que traz à compreensão dos processos usados: "Não sou esse pintor de gestos espontâneos, contente com a sua obra pronta de momento: penso que existem leis universais, imutáveis, absolutas; leis de formas que tacteio, hesito, corrijo ou tento corrigir. Sobre cada tela trabalhei, comecei, por vezes há mais de 60 anos, e sobre cada tela, se nela sentir qualquer carência, acabarei no retoque da minha última hora». Eu fiquei a pensar que as tais leis absolutas convivem com o uso imoderado do papel vegetal (usado de um lado e do outro, facilitando versões em que a forma se desenha ou enrola da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, como a actual exp. mostra), mas estou pronto a assegurar que nunca vi o tal papel vegetal, afinal um acessório tão estimável como a régua e o compasso.
As questões que então levantei sobre a produção de réplicas e variantes ou a concretização de estudos em obras recentes que aparecem antedatadas permanecem intactas e ilustram-se bem desde a secção intitulada "Pré-geometrismo", quer na exposição quer no catálogo, embora neste a destrinça se torne menos segura dada a muito menor diferenciação das texturas das telas e das camadas de cor. Para complicar, desaparecem nas reproduções as margens brancas (passe-partout ou moldura interior) que em geral distinguem das obras de época as recriações recentes, por exemplo logo nas páginas 119 e 120. A comparação de suportes e camadas de tinta, de assinaturas em maiúsculas ou cursivo são um bom exercício prático para quem estas coisas interessam. Que importa saber quando foi pintado um quadro com data de 1951? Não é um exercício de fetichismo da peça única, e de aplicação de tão discutíveis conceitos como os de originalidade e autenticidade, mas uma linha de reflexão que permite mergulhar mais fundo nas lógicas da criação e nas suas derivas ficcionais. Tratando-se de uma exposição cuidadosamente comissariada por Adelaide Ginga, essa reflexão justifica-se plenamente. Aliás, para a história própria e geral interessa também saber quando foi visto ou não, e se foi objecto de recepção pública, crítica ou não, um quadro com data de 1951. Teve à data impacto, reconhecimento e consequências?
Malevitch também antedatou grande parte da sua obra, numa revisitação dos estilos que atravessara, mas é preciso considerar que ele tinha chegado ao extremo possível da pintura e só lhe restava recomeçar, além de que o regime político-cultural da época não lhe era propício. De Chirico foi também um talentoso produtor de variantes, o que significa que este é um campo disponível para muitos estudos.
Já agora acrescento a reafirmação da minha oposição ao esvaziamento integral do museu (isto é da sua colecção e do panorama histórico que em nenhum outro lugar pode ser visto) para aí se se apresentarem mostras pessoais ou pontuais, excepto algum caso de excepcionalíssima relevância. Tratou-se, neste caso, de dar sequência a um projecto herdado da anterior direcção e favorecido com uma subsidiação europeia que lhe viabilizou a grande dimensão. Veremos o que se vai passar a seguir. Mas continuo a pensar que esta linha de orientação que confunde Museu e Galeria contraria a argumentação usada a favor da necessidade da ampliação das instalações do Chiado, ao tornar as duas valências uma questão de alternância no calendário, e do mesmo passo mina o conceito de Museu e a respectiva operacionalidade crítica, em tempos de anulação de diferenças que são fundadoras do saber e da experiência da arte.
Uma outra nota diz respeito ao silêncio expositivo em que o gosto dominante e a sua sustentação académica envolvem a obra de Júlio Resende, pintor praticamente contemporâneo de Nadir Afonso e Fernando Lanhas, outro dos artistas afirmados no Porto com as "Exposições Independentes", com uma carreira de superior importância - o CAM mostrou-o em 1989 e a cidade de Matosinhos homenageou-o em 2001, à margem da capital cultural vizinha, a segunda sem o conveniente trabalho crítico. Há obras mais difíceis, mais extensas, mais profundas, mais originais do que outras, e no momento actual predomina a preguiça visual e a facilidade teórica. Hoje já não se pode acreditar que a procura da "abstracção" e a adaptação nacional dos seus modelos eram práticas que ultrapassavam etapas e estabeleciam o futuro. O presente é outro.
Nota: duas vezes reproduzido como "diploma de participação na Missão Estética em Évora", de 1945, o impresso que reúne as caricaturas dos participantes (estudantes e recém-formados em torno do prof. Dordio Gomes) gravadas em madeira por António-Lino (Pedras) e publicadas à época pelo jornal Democracia do Sul, acompanhando entrevistas individuais, não é de facto um diploma, senão em sentido muito informal. A Missão Estética de Férias (nesse ano a IX edição, que decorreu em Agosto e Setembro) era uma iniciativa e organização da Academia Nacional de Belas Artes, iniciada por José de Figueiredo e continuada pelo então presidente Reynaldo dos Santos. Em 45, o fim da Guerra permitiu diversas originalidades, mas um tal "diploma" não podia ser oficial.
Curiosamente, Évora Surrealista (pág. 91) terá sido exposta na exposição final, mas de facto sob o título "Évora", segundo o catálogo. E de acordo com a crítica de Armando Gusmão publicada no jornal citado a 9/10/1945, "o mais inclinado ao surrealismo" de todos os expositores era o esquecido Israel Macedo, "o mais arrojado na forma e na emoção". (O surrealismo era então um estilo divulgado nos salões do SPN graças em especial a António Pedro, desde 1939, e a Cândido Costa Pinto, desde 1941 - já estava inventado e até bastante desgastado). A mesma exposição foi apresentada a seguir na SNBA, em Lisboa.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.