A visão da grande nave do CAM deserta numa manhã de feriado é devastadora. Certamente, com a crise, não há verbas para a publicidade e sem ela as massas não se movem. Seguramente, com ou sem crise, os 4 € (quatro euros!) exigidos por cabeça não são convincentes para atrair o passeante desprevenido, que melhor poderá passar a manhã passeando pelos jardins (se entrar, verá que o artista, afinal, também ele se passeia, mas no espaço natural - não num jardim). Presumivelmente, nenhuma informação, nenhuma imagem prévia suscita a curiosidade a respeito de um artista galego desconhecido a quem é dedicado o imenso espaço vazio da nave e da galeria superior do CAM (a directora não terá culpa, foi uma teimosa imposição da administradora, que optou por delapidar um museu e por contrapor à velha ideia de exposição a fórmula da instalação, afinal mais antiga ainda, mas tida por pós-modernaça - trata-se só de ir dispondo uma coisa aqui e outra coisa ali, ou mesmo apenas uma "ideia" aqui e uma coisa além, espaçadamente, substituindo-se o discurso expositivo pelo espaço vago, ou, com benevolência, pelo espaço arquitectónico). Acho obsceno aquele espaço despido.
Como em tantas outras exposições, não fiquei convencido de que se trate de um artista, mas será certamente alguém que faz arte, sendo esta, por definição, aquilo que se mostra (ou melhor, expõe) nas instituições artísticas, aquilo que preenche (de forma muito diluída e esparsa, já vimos) os espaços dos museus e galerias públicas que por definição se preenchem com arte (as galerias são chamadas públicas, mesmo que sem público). Arte na medida em que o próprio e outros mais ou menos especializados o classificam como arte por não se vislumbrar outro uso ou razão de ser para além da atribuição dessa designação. Esta é, deverá ser, matéria pacífica desde há mais de um século, antes de M.D. ter forjado muito cautelosamente o conceito de ready made (o pret à porter, o já feito ou pronto a usar, trazendo-o do universo da moda e da produção industrial - mas dando-lhe menos importância que às criações da indústria - da canalização, da aviação, das pontes, etc), propondo esse conceito mas já não a prática de ir incluindo cada vez mais coisas no espaço conceptual e institucional da arte (os manipanços, os produtos dos amadores e ingénuos, dos loucos, das crianças, etc, os quadros não representativos, as colagens de objectos - os ready made foram de facto os últimos a chegar, mas a sua simplicidade conceptual tornou-os propícios aos exercícios da escolástica...).
A grande qualidade da arte de Jorge Barbi, e deste como artista (produtor de arte), não decorre de explorar ou ilustrar a "ideia" de passeio como prática artística, mas de ser um passeante de proximidade, de passear perto. Reconhecemos (eu, nós, alguns) o monte de Santa Tecla, o Rio Minho, a Ínsua, as rochas atlânticas lentamente moldadas pela erosão, as areias ou as vistas de Moledo, os pequenos charcos, as marcas feitas nas pedras, os gravetos, etc, e é essa partilha de reconhecimentos e memórias que abre caminho a uma relação de empatia com o seu autor e as suas discretas fotografias locais. A possivelmente chamada arte de passear começa e encerra-se com Richard Long e, vá lá, com o seu amigo Hamish Fulton, que deu mais consistência fotográfica ao registo das viagens. A sua importância decorre de um lugar muito preciso na história das inovações artísticas (o registo da primeira vez) e ilustra-se com a impossibilidade de o seu "trabalho" se constituir como um género (foi também isso que M.D. explicou a respeito do ready made, concedendo ao mercado uma tardia edição de múltiplos mas não ampliando a lista dos já feitos). Também é significativo que as jornadas de Hamish Fulton e Robert Long que mais nos "tocam" são as que eles viveram ao atravessarem a Península - os passeios que reconhecemos e partilhamos, pelo menos de nome.
No caso de Jorge Barbi, o que parece mais eficaz são as imagens fotográficas feitas na costa atlântica e também o modo de as apresentar como trípticos em projecção constante. Vi que no Marco de Vigo a projecção seria feita sobre uma sequência de nove ecrãs, e certamente pode ser de uma maneira ou outra, já que é o facto de se tratar de imagens em movimento que importa. Elas não sustentariam uma observação atenta como imagens fixas, de parede ou página de álbum, para além de uma curiosidade pontual e distraída, e é a sua sucessão sequencial e associada, por efeito de montagem e repetição, que aqui importa e segura o olhar. Mais adiante, as fotos das cagadelas (os excrementos figurativos) de gaivota despertam curiosidade, mas é como "ideia", anedota e proeza, a paciente procura, que rapidamente se consomem. São as fotos projectadas em sequência o melhor da exposição.
Depois da muito generalizada ampliação das fotografias em grande formato (tamanho ecrã ou caixa de luz, tanto faz), é a imagem em movimento que ganha eficácia como situação da visibilidade expositiva. É a fugacidade da imagem, o ritmo de substituição, a associação e a colagem-montagem que tornam sustentável a presença da fotografia, face à insuficiência das suas qualidades próprias e ao excesso da sua presença constante por todo o lado. Face a um espectador em trânsito, incapaz de se deter - e por isso de ver, de contemplar -, as imagens desfilam. É o slide show transposto do ecrã do computador para a parede da galeria. Por vezes, algumas vezes, se paramos diante do seu fluxo, elas atraem a atenção. Neste caso (e pelo menos para mim), porque os lugares são conhecidos, familiares, oferecendo-se ao reconhecimento e propiciando evocações pessoais e afectivas.
Vale a pena associar estas imagens em trânsito às de Pierre Collibeuf, agora no CCB/Museu Berardo, e antes às de Mikael Levin (as de "Cristina's History") em 2009, que têm diferentes ambições e substâncias. E seria oportuno reflectir nesta prática de fotografia como achado (encontro), recolha de espaços encontrados, em paralelo com a situação de recolha de objectos encontrados (objets trouvés), ocasionalmente encontrados, e também com o sentido usual de ideia ou "achado", que tanto pode ser o jogo de palavras como o efeito "conceptual". São achados as malas metálicas de materiais recolhidos : madeiras ardidas, caroços, vidros e calhaus rolados oriundos de construções humanas. Mas não há muitos mais "achados" na exposição de Jorge Bardi. Ou eu não os reconheci.
Ao domingo não exigem os 4 euros.
Argentea*, 1996-2009, painel de fotografias (44 elementos de 29 x 22 cm) (Foto: cortesia do artista; FCG/CAM) (*excrementos de gaivotas sobre rochas, Galiza)
Jorge Barbi: 41º 52’ 59’’ LATITUDE N / 8º 51’ 12’’ LONGITUDE O
CAM 07/05/2010 - 11/07/2010
Terça a Domingo 10h00 - 18h00
Vou no Domingo, então. Fiquei curioso com a descrição.
Na descrição que o Alexandre deu relativamente à inclusão de mais objectos (ou "coisas") no espaço conceptual mencionaria também Kurt Schwitters com o seu (ou sua) Merzbau - talvez um dos melhores exemplos que descreve o que quer dizer.
Posted by: Pedro | 06/11/2010 at 10:22