Por falar em Serralves, achei pelo menos infeliz a citação que o "Actual" do Expresso põe em destaque nas páginas de exposições, no último sábado, aí se referindo o facto de a verba anual para aquisição de obras de arte atribuída pelo Estado ao Museu do Porto ser superior à que destina à totalidade dos museus oficiais. A transcrição não é literal e não conheço o contexto de que é extraída, mas o autor citado é Carlos Vargas, num artigo de opinião no Público. Estimula-se a inveja? Sugere-se uma guerrilha entre a administração pública e as parcerias público-privadas em forma de fundações, que o Estado criou por ter condições para avançar sozinho? Insinua-se que o dinheiro é mal gasto e que seria melhor distribuí-lo pelos pobres? Os caminhos da demagogia são infindáveis.
Poderia acrescentar-se que a verba (menor, só 500 mil euros) atribuída ao Museu Colecção Berardo também excede a soma prevista para os museus do IMC. Assim se arredaria a suspeita de uma intriga de Lisboa contra o Porto. A comoção (ou a falsa surpresa) resulta dos recentes cortes orçamentais, mas o que se deixa a pairar é a sugestão de uma injustiça, ou, pior, de uma viciosa cedência do Estado face a interesses privados. O que é falsíssimo.
O que o MC entrega a Serralves e ao museu do CCB não é muito, se se quer ter dois museus de arte contemporânea (que são aliás mais centros de arte que museus - até por falta de obras adquiridas em devido tempo, e por escassez de verbas). Pelo contrário, é pouco dinheiro, se se pretende ter museus internacionais (em Serralves, a verba de um ano não dá para comprar uma Marlene Dumas vistosa, ao preço de mercado (milhão e meio, mas há preços de museu e de amigos), embora eu ache demasiado caras aquelas apressadas aguadas sobre tela (há por vezes umas obras mais consistentes e intrigantes, mas em geral trata-se daquele tipo de pintura apressada apreciada por quem não leva a sério a pintura - para além do muito inaceitável conteúdo propagandístico das obras, mas adiante, somos todos pelo Hamas para sermos intelectuais). De facto, voltando à comparação entre verbas, o excesso não está nos dinheiros atribuídos, mas nos dinheiros em falta para os outros museus nacionais, como o do Chiado, o Soares dos Reis, o Machado de Castro, etc, que não deveriam ficar condenados à imobilidade e à menoridade indigente.
Por outro lado, essas verbas canalizadas para as fundações dos dois museus (ou através delas destinadas a compras) não são dotações arbitrariamente concedidas, como liberalidades orçamentais que possam imprudentemente ser suspensas ou diminuídas. São, de facto, contribuições regulamentadas por protocolos que têm por contrapartida outras contribuições privadas, corporativas ou públicas, e não devem pôr-se em causa porque estão contratualizadas e são estruturantes das respectivas entidades, enquanto museus.
José Berardo acompanha (ou deve acompanhar) a dotação anual do Estado e no fim do contrato de dez anos (em 2016) se verá quem fica com as obras que se forem comprando, pagando um deles ao parceiro a metade em falta. O MC, aliás, começou por contestar o pagamento em géneros feito em 2008 e 2009 por Berardo e acabou por fazer pior - e ficar obviamente mal colocado. Um milhão de euros são 200 mil contos, o que é pouquíssimo para comprar coisas sérias (quem ganha com a escassez de meios são, paradoxalmente, os artistas jovens e emergentes, mas as colecções sofrem com isso).
Em Serralves, a dotação contratualizada em 1997 surgiu num contexto que então se redefiniu com a vinda de Vicente Todolí (que não vinha para trabalhar com a velha "colecção SEC" mas para criar um museu de raíz, ou quase) e com a implicação pública dos mecenas reunidos na Fundação de Serralves e também da Câmara do Porto num compromisso conjunto para que se reunisse um bolo "aceitável" para compras. Com a posterior criação da Fundação Colecção Berardo (que vinha abrir um museu concorrente face a um museu do Porto a que se prometeu ser único...), o MC viu-se obrigado a tranquilizar os patrões/mecenas do Norte comprometendo-se a um pequeno aumento anual da verba a atribuir (agora 750/800 mil euros?).
Há portanto compromissos a respeitar, e que nunca foram, aliás, apenas resultado de decisões de ministros da Cultura - já que estes assuntos tiveram sede nos gabinetes de São Bento. No quadro da crise actual, os museus não podiam vir para a praça pública competir com os cortes assistenciais e de salários (a questão trata-se a outros níveis), mas o silêncio público das respectivas administrações e dos seus pacientes directores não deve dar azo a que se pretenda inverter o custo do desiquilíbrio de meios entre os museus públicos com estatuto de fundações e os museus ditos nacionais.(E onde se irá arranjar outros directores credíveis seos protocolos que estruturam os museus não são cumpridos?)
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