"Os artistas e demais profissionais das artes são altamente especializados, formados em instituições superiores públicas e privadas, tal como o são os médicos, os historiadores, os engenheiros…" - in "GENTE TENDENCIALMENTE COMUM - Resposta da Plataforma das Artes ao Deputado/Cronista José Pacheco Pereira". (http://www.facebook.com/note.php?note_id=416712036793&id=1618620098 - de facto, não se sabe bem quem e o que é essa Plataforma, e quem fala neste caso concreto, mas a coisa circula sob aplausos vários.)
La Strada, de Fellini (artistas especializados, mas não "altamente"), ilustração apropriada da Plataforma (?)
Essa frase é terrível, é um erro e uma ameaça, só associável aos princípios das corporações medievais - antes de haver conceptualmente "arte" -, e é em especial desmentida por aquilo que Duchamp veio demonstrar com os seus ready-made. (Quanto ao JPP, o desprezo.) A tendência para a burocratização do lugar do artista - ou funcionário à maneira dos regimes comunistas (e de todas as cortes passadas e presentes), ou subsidiado a partir de uma lógica assistencialista - tem-se agudizado a partir de uma indefinição que o MC e o PS têm alimentado a propósito de "redes" e das políticas de apoio às artes e/ou à criação, e em espacial a partir da adopção/negociação dos cortes orçamentais, os quais afectariam em especial, como escreveu o Público, os "artistas independentes" dependentes da DGArtes.
Uma grande indefinição vocabular tem alimentado a onda. Por um lado usa-se e abusa-se da palavra criador (?) como sinónimo de artista. Por outro, identifica-se artista e profissional do espectáculo, o que era habitual (mas perdendo-se agora a qualificação das áreas: artista de cinema, de circo, de teatro, tv ou cabaret, etc, e abandonando-se as designações mais específicas, como actor, bailarino, cenógrafo, corista, etc), e chama-se tb artista genericamente ao artista plástico ou visual, deixando-se de usar designações como pintor, escultor, gravador, etc, a favor de uma ideia de "arte em geral" que permite a cada qual "criar" desenho ou pintura, fotografia, instalação, performance e tudo o mais que se proponha - o que, se é legítimo, não pode implicar nenhuma isenção ou dispensa da avaliação de qualidade, ou competência. É curioso que escapem a tal evolução terminológica os arquitectos, e que contra ela se afirmem profissionalmente os designers (em fase ainda de legitimação como profissão específica e intimamente ligada à ideia de função).
Com aquela frase acima avança-se para a identificação entre artista e diplomado ou licenciado em artes, o que é manifestamente um erro e um abuso que pretenderia circunscrever a produção de arte aos agentes creditados para o efeito, excluindo o autodidacta (por ex. Álvaro Lapa), o artista que abandonou o seu curso sem o concluir (e são, até aos anos 80, quase todos, pelo menos na Escola de Lisboa), ou que frequentou um curso médio (na António Arroio, por exemplo), ou que se formou em Agronomia ou Letras (o Joaquim Rodrigo, o João Paulo Feliciano...). Para além de excluir o amador, o artista de domingo, o "outsider", o louco - e o grafitista, claro. É um retrocesso cultural e em geral civilizacional que se regista naquela frase.
Pode ser um erro ocasional, mas não é. Sobre essa suposta formação escolar e profissional do artista pretende construir-se uma legitimidade social ao salário certo (de funcionário, obviamente) e na sua ausência ao subsídio público. Aliás, a comparação pretendida com as outras formações escolares e profissionais (que é improcedente no caso das artes) já não é adequada a uma situação que se tornou de desemprego quase generalizado, mas o texto em causa não prima pelo bom senso.
Também não é ocasional que, desvalorizando-se no quadro histórico das artes plásticas de vanguarda (e em princípio só nas artes plásticas) a ideia de talento, ou de habilidade e saber fazer, e por associação ou consequência a validade do juízo crítico, surja a necessidade de fundamentar a condição de artista na posse de uma formação escolar e posteriores graduações - mas por esse caminho assistimos, de facto, e pelo contrário, ao esvaziamento de tantas promessas sob os obrigatórios condicionalismos da carreira académica (o mestrado, o doutoramento, o pós-doutoramento, com as apropriadas candidaturas a bolsas). As escolas de belas artes encheram-se sempre (?) de professores que são artistas burocratas ou simplesmente falhados (e cada um se considere a excepção), e o mesmo aconteceu com o recente boom das academias que se descentralizaram do Minho ao Algarve, onde ainda couberam os artistas (artistas licenciados, entenda-se) dos anos 90.
Se uma das linhas da história da arte foi a afirmação da independência face à Corporação, à Academia e à Escola, esta malta nova que reclama subsídios porque tirou cursos (e depreende-se que são só para estes) regressa a tempos de autoritarismo e policiamento burocrático que julgaríamos definitivamente recusados pelos artistas modernos (mas depois vieram as novas-vanguardas e as suas derrotas, os pós-modernos e as suas paródias, e o actual pluralismo/oportunismo sem critérios). Valeria a pena, a propósito, equacionar a desqualificação da aprendizagem que se sucedeu à Escola moderna (a que teve por paradigma a Bauhaus e equivalentes) - e Thierry de Duve escreveu sobre isso em "Faire École".
Se o MC não pode fazer nada - ou talvez possa - no terreno do ensino das artes (manda Bolonha e o figurino universal de Bruxelas, que pensa economia e disciplina social, não cultura), resta-lhe escapar à pressão directa dos candidatos à distribuição universal de subsídios assistenciais e investir nos seus domínios específicos: a programação das suas instituições próprias ou associadas (museus, teatros, etc); a aquisição e a encomenda. Trata-se de desviar a actuação intervencionista do lado dos candidatos a artistas (licenciados ou não) para o lado dos que efectivamente/comprovadamente o são, os que produzem obras - obras que se distinguem da produção mediana e devem integrar colecções públicas e museus (que se tornam património comum). E há que considerar a encomenda da obra pública (destinada ao espaço urbano e/ou público), a grande decoração ou intervenção simbólica ou de consagração, como ponto de chegada e de reconhecimento dos artistas (a outra forma de continuar a fazer património hoje).
Actualmente, a quase totalidade dos meios financeiros aplicados na área das artes plásticas tem um sentido assistencialista e resulta praticamente em pura perda. Em grande parte a actuação pública (DGArtes) é, aliás, guiada por uma lógica de concorrência com o mercado privado e galerístico da arte, servindo os artistas que não chegam a entrar num mercado que funciona genericamente com eficácia, e também uma excedentária burocracia crítico-curatorial. Na parte restante essa actuação assistencialista é capturada por segmentos desse mesmo mercado privado.
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Ver antes (15/07) : http://alexandrepomar.typepad.com
E tb. um site com informação sobre o tema (reunião com a DGArtes, 27 de Julho), da iniciativa da Plataforma dos Intermitentes do Espectáculo e do Audiovisual :
http://intermitentes.org/?p=242
E não falas dos concursos onde já aparece, volta e meia, a obrigação de ter frequentado uma escola de artes durante pelo menos x anos. Quanto ao resto, c'est la vie...
Posted by: Luisa | 08/08/2010 at 19:22
A ideia que se podem fazer artistas como se formam licenciados em direito, levou à proliferação de cursos que todos os anos habilitam diplomados em artes que querem ser artistas de sucesso (material também) sem que nada tenham para dizer.
Como a realidade tem muita força, acabam por perceber que o diploma é apenas um passaporte para o que não querem, acabando por se fazerem à vida e desaparecer do Mundo da Arte sem deixar rasto.
Apesar de esta realidade não ser um fenómeno exclusivamente português, a existência de uma Política Cultural podia ajudar.
Mas o que é que se pode esperar de uma Ministra que define a dita "como tudo o que não é natura".
Porra, mas isso também inclui as plantações de eucaliptos e os robalos de aquicultura?
A casa do Sr Jorge Soares inclui de certeza!
AB
Posted by: AB | 08/09/2010 at 22:32
O problema aqui é outro, penso; e citei-o, ou enfatizei-o, algures no meu espaço no 5dias: é aquilo que desde Kant a Clement Greenberg se chama relação qualidade-juízo-experiência. Simplesmente, prosaicamente, falar daquilo de que se tem experiência, se experimentou. E Pacheco Pereira não tem experiência nenhuma ou nenhuma relação com a produção artística mais recente. Nenhuma. Não saberá comentar, analisar um único criador actual de nenhuma área em concreto. Ora, depois dessa experiência, então que se conclua pela menoridade ou ridicularia ou genialidade ou "amiguismo" da arte de hoje. Mas, sem experiência....
Posted by: Carlos Vidal | 08/19/2010 at 00:03
Entende-se a lógica da plataforma. É a mesma que legitima a Arte no seu próprio mundo.
Hoje em dia há realmente os artistas multi-funções. O que importa é a sua formação (especialmente a partir do Mestrado) e após a entrada no "mundo profissional", a acumulação de exposições, eventos bienais, etc... tudo isso constitui um CV e o artista é medido.
Existe um ranking (por exemplo o http://www.artfacts.net ), onde se pode ver quem é quem e quem vale o quê.
Infelizmente há quem compre Arte através de expectativas, que pressente através de websites como este... como se tivesse a comprar acções de uma empresa cotada na bolsa e olhasse para esta informação, como a variação da cotação do artista nesta bolsa hipotética.
Por isso o Artista é Diplomado (tal como era antigamente o calista). O "diploma" legitima-o dentro da lógica actual do mundo da arte profissional (que o separa dos outros artistas - os de "Domingo", os loucos, os outsiders, os do graffiti, os amadores, etc), pois a partir daí será legitimado por toda a gente que pertence a esse mundo - desde curadores, críticos, directores de museu, etc... é um circuito, como outro qualquer.
O resultado é que a História de Arte, algures no tempo irá corrigir alguns destes problemas.
É também certo e sabido que existe uma certa necessidade de alguns curadores em "descobrir" o artista ignorado no seu momento de vida. Muitos dos agora considerados grandes artistas não o foram no seu momento.
Talvez isso não seja importante e o que importe realmente é o trabalho individual e a pesquisa de cada um.
Posted by: Pedro | 08/24/2010 at 11:20