No Público de hoje (dia de Ípsilon, por sinal): "A criação artística
contemporânea, uma questão ideológica", por Gabriela Canavilhas - com
uma frase em destaque: "Estamos na discussão pura e dura sobre a
liberdade da criação, e se ela deve, ou não, ser subsidiada pelo poder".
Julgo que um artigo de opinião ministerial não devia ser de acesso
restrito a assinantes do jornal. Não é opinião, é doutrina. Não é privado, é público.
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É um texto muito curioso, mais um objecto ou projecto de reflexão do que um gesto de autoridade, mas ao mesmo tempo um acto de criação (artística) e um enunciado programático e político, a marcar a dupla identidade (não digo a dupla personalidade) da signatária: artista e ministra.
O texto é muito denso, se procurarmos considerar a legitimidade teórica de cada um dos seus termos e argumentos. Mesmo que eu não entenda qual é a relação entre repartição do orçamento e a liberdade da criação (e se é a criação ou é a liberdade de criação que deve ser subsidiada pelo poder - e qual poder, quais poderes?), é importante que se pretenda deslocar o debate das quantificações dos subsídios e dos seus cortes para um terreno mais substancial.
Há uma posição de partida que se afigura problemática: não considero o ministro da cultura um representante, um defensor ou porta-voz dos artistas. Preferia que se identificasse antes com os públicos. Preferia que a política da Cultura (enquanto pasta governamental) não se voltasse para a resposta aos interesses (às necessidades) dos artistas ou candidatos a artistas, ou licenciados em artes, mas sim para as necessidades da recepção, da formação de públicos e do consumo, sem receio da palavra consumo. Aliás, o texto começa por reflectir proveitosamente sobre os planos da criação e da recepção - e se a criação artística "é território íntimo, privado e pessoal", a relação do poder público com a criação deverá, à partida, interrogar-se prudentemente sobre a distância que deve respeitar. Uma política da criação seria uma temível contradição, e desde o século XIX, pelo menos, a obrigação de dependência dos artistas face aos poderes (às cortes, às igrejas, às cidades) - mesmo os que os quiseram libertar de riscos económicos, funcionarizando-os - encontrou os seus caminhos de liberdade na relação com o público (burguês, claro). Não existe ainda, talvez não exista nunca, alternativa a essa livre relação com os públicos, sabendo-se que a recepção é também um acto criativo e lembrando a tese de Duchamp sobre o olhar do espectador ("Ce sont les regardeurs qui font les tableaux").
Reconhecendo que "a recepção da arte é matéria complexa", é problemática a contraposição que se estabelece no artigo entre a recepção (e o seu sistema, os seus circuitos) e a criação. De um lado estariam "os cânones da arte", criados pelos circuitos da recepção; do outro a criação, a cuja essência (?) se atribui o destino de corromper os cânones - "por lógicas inerentes à ideia da ruptura/fractura como factor de regeneração". Conviria pensar em que medida a criação de arte por um artista visa ou pode visar a criação de cânones (novos cânones) e também ter em consideração os momentos, os ciclos ou simplesmente os artistas para quem a vontade de construção ou reconstrução da ordem (de uma ordem moderna ou clássica) é mais premente que qualquer negatividade, ruptura, fractura ou corrupção. O que é tanto mais importante quanto um responsável político actua do lado dos circuitos da recepção, da construção do sistema, e não enquanto artista (visto este como aquele que corrompe os cânones).
Com Murakami em Versalhes (é só o exemplo mais recente,... ou com Pinaut na Christie's e no Palácio Grassi) sabe-se que não há qualquer objecção da direita política e do grande capital à arte contemporânea, muito pelo contrário, e esse fantasma não pode ser mais acenado. A contraposição entre vanguarda e kitsch (ou mesmo só entre uma obra de arte conseguida e o lixo cultural), a insistência modernista na autonomia da obra de arte e o apelo à resistência elevada a uma cultura de massas crescentemente consumista e opressiva não podem justificar hoje uma política cultural, porque não correspondem à situação actual - das indústrias culturais e/ou criativas.
Há aqui de facto, uma abordagem ideológica, mas certamente datada, que contrapõe a defesa da liberdade da criação (associada à ideia de ruptura/fractura) à imposição política de cânones artísticos. A ideia de uma função emancipadora e utópica da obra de arte ou a ideia adorniana da obra de arte enquanto negação da realidade existente, que sustentam esta ideologia, são sobrevivências do que foi a estética burguesa da idade moderna e da tradição especulativa da arte. Não há mais lugar para falar da "essência da criação", como acontece no 2º parágrafo do artigo.
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Continuando a pensar em directo sobre um texto que visa sustentar uma acção política que em geral conta com o meu apoio, discordo que se aceite colocar no centro da "discussão pura e dura" a política de subsídios, e que se aponte a liberdade de criação como objecto da subsidiação pelo poder, como acontece no final do texto.
A economia específica de algumas formas de produção artística exige a continuidade de mecanismos de patrocínio mecenático e encomenda pública (o que não é o mesmo que subsidiação da criação, ou da liberdade da criação), com os quais contaram desde início, no quadro do antigo regime, ou de que passaram a depender em maior grau ou até totalmente desde que a cultura da modernidade se foi em parte caracterizando desde meados do séc. XIX por uma estratégia intencional de distanciamento da cultura de massas, então em paralelo com, e em reacção a, um crescimento exponencial dos públicos (a angústia da contaminação e a Grande Divisão que refere Andreas Huyssen, um autor formado com a teoria crítica alemã).
Quer os efeitos dos esteticismos oitocentistas da "arte pela arte" quer a sobrevivência da canonização da autonomia da arte no contexto da Guerra Fria e do modernismo tardio (em versão "negativista" ou apolítica), mas também as consequências das estratégias vanguardistas que se equipararam à presciência dos comités centrais iluminados, devem entrar numa reapreciação das necessidades de financiação pública da produção artística, num contexto mais geral de reconsideração dos modelos económicos e sociais em vigor até agora. E tanto mais quanto a criação artística (no campo das artes plásticas, mas não só), e em especial os seus sectores ditos de ponta, ou de vanguarda, se integrou sem complexos, nos últimos tempos, nos universos do entretenimento, dos lazeres, do glamour, da ostentação e do luxo.
Há poucos dias, o crítico inglês Jonathan Jones escrevia no seu blog do The Guardian (13 September): "Now, we face a new cultural age, and frankly it would be healthier for visual art if it was seen as a poor relation, a feeble charity case. The public might then understand that museums rely absolutely on public funding to sustain their immense civilising benefits. But the art world has done a bloody good job convincing everyone that it sleeps with celebrities on beds of hundred pound notes. Museums should never have succumbed to the money culture. In reality, they are as essential and unglamorous as buses." - "Art's Faustian pact with commerce means it's no good carping about cuts" (Public sympathy over visual arts funding cuts will be limited after the art world's brazen vaunting of connections with big money)
No centro das questões actuais, ideológicas e políticas, não parece estar a subsidiação de uma criação artística que tem o seu espaço próprio de afirmação no quadro amplo de um mercado da cultura que cresceu como um sector económico de pleno direito, e muito menos a continuidade de formas de subsidiação assistencialista, sem sentido público, mas sim a preservação e o fortalecimento das estruturas de formação, divulgação, conservação e investigação que são a base do sistema em que assenta a eficácia colectiva da actividade artística, a qualificação da recepção.
Antes de qualquer debate filosófico sobre esta questão, eu pergunto à senhora ministra se o critério de avaliação artistica continuará nas mãos dos lobbies dos seus amigos mais intimos...
Posted by: Antonio Alonso Martinez | 09/18/2010 at 00:00