Uma boa surpresa é encontrar na Biblioteca da Gulbenkian o pequeno livro de Ulli Beier intitulado "Art in Nigeria 1960":
Um livro pioneiro e ainda oportuno, insubstituível, publicado pela Cambridge University Press, com 24 páginas de texto e muitas ilustrações. Foi o ano da independência da Nigéria (entre 17 países africanos) e parece ter sido Ulli Beier quem organizou a respectiva exp. comemorativa.
Em 1968, depois de ter deixado a Nigéria após o 1º golpe de estado, publicou o livro CONTEMPORARY ART IN AFRICA, ed. Pall Mall Press, London, que continua a ser uma obra sem paralelo pelos critérios de proximidade pragmática ou de declarada cumplicidade crítica com que percorre o seu tema e se relaciona com as obras e os artistas. (E esse a Biblioteca não possui...)
A publicação de 1960 (que terá entrado na BA em 1973, o que é curioso) conta com uma Introdução que é bem significativa da viragem que estava então em jogo, face ao interesse eurocêntrico e imobilista estabelecido por antropólogos e coleccionadores a respeito da arte tradicional, a "arte negra", a única que era então reconhecida:
Tentar mostrar que a situação real é mais complicada, ou complexa, e de facto mais rica e mais aberta à evolução, do que as interpretações correntes é uma marca da intervenção escrita de U.B. Para além do pólo francófono africano que teoriza sobre a "negritude" a partir de uma predominante criatividade literária e em reacção ao contexto integracionista francês (contra Paris, mas a partir de Paris), U.B. iria estabelecer uma outra rede de contactos com a África do Sul, a Rodésia e Lourenço Marques, de base anglófona, que é menos focada na produção teórica do que nas várias direcções possíveis da criatividade artística, africana e não só. Preponderante nas regiões onde as políticas culturais eram mais dependentes da segregação racial do que da "integração", ou apenas menos intervenientes (no caso português), deixando o espaço aberto para um relacionamento mais plural e menos "ideológico", num quadro em que conflituam a tradição e a vontade de inovação africanas e os vectores da modernidade europeia.
(O sumário do livro de Ulli Beier marca a abertura do inquérito e a curiosidade pragmática perante a mudança)
É ainda Ulli Beier um dos autores que se ocupa de arte africana, a partir da sua acção na Nigéria dos anos 50/60, num catálogo de referência que acompanhou a exp. THE SHORT CENTURY : INDEPENDENCE AND LIBERATION, MOVEMENTS IN AFRICA 1945-1994, dirigida por um outro famoso Nigeriano, Okwui Enwezor (ed. Munich : Prestel, 2001).
"A Momento of Hope: Cultural Developments in Nigeria before the First Military Coup", de Ulli Beier, pp. 45-49, é um relato feito quase sempre na 1ª pessoa, memorialista sem ser sentimental ou paternalista, que passa pela revista "Black Orpheus" (1957-), pelo Mbari Club (Julho 1961-) de Ibadam, pela abertura do Oshogbo Mbari Club em 1962 (logo depois chamado Mbari Mbayo), pelos workshops de Georgina Beier a partir de 63/64 e pela aparição da "nova arte sagrada" de Susanne Wenger, vinda de Viena. Aí se refere brevemente a exp. de obras de Malangatana Ngwenya entre outros africanos do Sudão e do Ghana, o norte-americano negro Jacob Lawrence e outros, no quadro de um programa cuja "direcção era nigeriana, pan-africana e internacional".
É esse o contexto que justifica a presença de Lagos como uma das capitais em foco numa outra exposição de 2001, CENTURY CITY : ART AND CULTURE IN THE MODERN METROPOLIS, Tate Modern, sendo também Okwui Enwezor o comissário regional.
São também Ibadam e o Mbari Club que constituem o pólo mais dinâmico da capitalidade nigeriana em África, e não é por acaso que uma série de pinturas de Malangatana surge no catálogo e (ainda) no registo da exp. no site da Tate. É através de Ibadam (e de Salisbury, etc) que se projecta internacionalmente o dinamismo cultural de Lourenço Marques, à margem da década das independências mas directamente conectado com um muito intenso período de renovação.
O aparecimento dos workshops informais em 1960 em L.M. por iniciativa de Amâncio / Pancho Guedes e com a colaboração de Julian Beinart, com uma segunda realização em Ibadam e posterior sequência noutros lugares tem um papel positivo em alternativa ou complemento às escolas de artes de inspiração europeia. A afirmação internacional de Malangatana (em especial na revista "Black Orpheus", 1962) continuou a caucionar o impacto dos workshops informais, tal como a emergência de Twins Seven-Seven em Oshogbo - ver a referência que lhes é feita "Modern African Art", de Chika Okeke, em The Short Century, pp. 33-34 (pp 29-36).
É sempre apenas através das fontes internacionais que se pode detectar essa presença de L.M. na movimentação cultural africana e extra-continental. Um trânsito mais alinhado com a afirmação cultural africana do que marcado pela situação colonial, fugaz e em geral ignorado. Num momento em que tudo ainda era possível: Eduardo Mondlane (1920-1969), então a trabalhar ma ONU, visita Moçambique em 1961; o início da luta armada acontece em 1964. As prisões de Luís Bernardo Honwana, José Craraveinha e Malangatana, em 1964-65, põe fim a um contexto cultural original.
Comments