Christiano Cruz (soldado a atirar uma granada)
Que fazer à cultura inculta que por aí escorre - e, em especial, à que se legitima como arte? Exemplo: "O incêndio de um dos últimos pavilhões* do Mundo Português é a desilusão da Neo-Vanguarda".
Assim acaba, ou começa, pela direita, com esta frase absurda, a exposição com que reabriu hoje a Galeria Quadrum ( "Anti-Totem" ) sob tutela e programação camarária. O disparate é arte, esta arte é oficial, e eu devia ficar calado. Tenho boas relações pessoais e políticas e de trabalho com os responsáveis culturais camarários.
O que é que aquela frase quereria dizer se fosse certa a referência aos pavilhões de 1940? Nada que se perceba: o incêndio do pavilhão "fascista" não seria uma vitória da neo-vanguarda, é a desilusão desta - a perda, o fim?, das ilusões na ou da neo-vanguarda? Incompreensível. E o que é que a mesma frase significa se o pavilhão ardido não datar da Exposição do Mundo Português, mas sim de bastante mais tarde (1966), e tiver sido, aliás, refundado ou pelo menos regenerado pelo regime democrático? Aquele é, de facto, o pavilhão do painel colectivo do 1º de Maio de 1974 e da Alternativa Zero, de Prado Coelho e Ernesto de Sousa, em 1977, da exposição Wostell em 1979, de uns novos estúdios de video-arte em instalação pela então DGAC (SEC)? Se se quer dizer que era isso a ilusão da Neo-Vanguarda, e o incêndio foi a desilusão, o espectador não tem quaisquer dados prévios para o entender. Aparentemente, os artistas-comissários (?) também não conhecem o "contexto" - e na melhor hipótese decidiram ocultá-lo. Uma trapalhada.
(Em tempo: porquê um dos últimos? além do MAP e do Espelho de Água, transformados, há os pavilhões naúticos e pelo menos dois edifícios no Jardim Botânico Tropical)
Consideremos que os jovens artistas-ou-comissários têm estudos e que praticam aquela amálgama estilística que se chama "linguagem artística internacional" ou "linguagem artística contemporânea", a que um insuspeito Gerardo Mosquera se refere como a "proliferação global do que poderia esquematizar-se como uma 'linguagem internacional posmoderna' mínimal-conceptual". Têm obrigações intelectuais, portanto, trabalham com a cabeça, são artistas "post-studio" ("a contemporary mode of post-studio production that is neither bound to one medium nor limited to any particular type of skilled object-making"), acima da manualidade artesanal eventualmente estúpida de pintores e escultores.
Têm a obrigação de saber, por isso, que o que ardeu (a 20 de Agosto de 1981) não foi um pavilhão do Mundo Português, mas a Galeria de Arte Moderna de Belém do pós-25 de Abril, nas vésperas de inaugurar-se a bienal de desenho Lis'81, com as obras desta (que seria já uma bienal pós-moderna) e com outras aí depositadas, de proveniência variada e em especial o tal painel colectivo de 74. A tal "desilusão da neo-vanguarda" fica por entender.
Quanto ao edifício, ele datava de 1966, e consta ter-se construído para exibir a mostra "As Artes ao Serviço da Nação", comemorativa dos 40 anos da chamada Revolução Nacional, e no ano seguinte aí se acolheu a II Exposição Nacional de Arte Moderna promovida pelo SNI, aparecendo referida como a Galeria do Museu de Arte Popular, antes de se vir chamar Galeria Nacional de Arte Moderna. Faltará apurar se esse edifício de 1966 paralelo ao Museu de Arte Popular - e que a sul integrava o remanescente do antigo Pavilhão do Mar e da Terra, usado como depósito do SNI (o Espaço Verde Gaio / Cortejo Histórico) - corresponde ou não a uma anterior construção provisória na qual intervieram o arq. Frederico George e o decorador e designer Daciano Costa (dois "modernos"), erguida em 1960 para acolher a "Exposição Cartográfica" por ocasião das comemorações Henriquinas.
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Tudo isso não interessa nada a quem pratica arte conceptual e de crítica institucional cultivando a criação de frases irresponsavelmente sem sentido e reunindo uma "miríade de referências" para constituir uma exposição que se diz "uma arqueologia de momentos específicos posicionados enevoadamente entre o anacrónico e o vanguardista".
É certo que o exercício da mistificação e a paródia da cultura académica foram muitas vezes estratégias de criação. Mas não parece ser isso que acontece aqui quando se escreve: "Esta exposição destitui quer a retrospecção quer a prospecção moderna, procurando antes a coexistência horizontal permitida pela contemporaneidade, que é por igual a possibilidade de coincidência da vanguarda com o conservadorismo, do progressivo com o anacrónico, daqueles que são do seu tempo - temporariamente - e daqueles que estão fora do tempo." Etc.
Esta exposição e a sua folhinha de prosa pateta é um exercício escolar que deveria (?) acontecer num corredor de faculdade (ou liceu) e ter nota negativa se os professores não se intimidassem com a prosápia. Ela não parece ter nem qualificações nem condições de eficácia para re-inaugurar a Quadrum e alimentar uma política galerística oficial - para mais, num espaço urbano muito problemático que precisaria de movimentar públicos para se abrir a outras circulações. Para lá das questões que se levantam quanto à verosimilhança da qualificação escolar dos envolvidos, talvez tudo assente no equívoco de querer construir uma programação sobre a rotação de jovens comissários/curadores, como se a profissão (?) de jovem comissário justificasse por si mesmo o apoio bem intencionado da Câmara, ou como se o "apoio à criação" (à jovem criação) passasse pela sustentação de uma nova classe de intermediários auto-designados como comissários. Mesmo em plena crise do mercado, há galeristas (comerciais) bastantes à procura de jovens artistas - e jovens críticos; as políticas oficiais devem fazer outras coisas. Porque ou fazem o mesmo mas pior, ou prejudicam quem tenta propiciar e promover a afirmação dos tais jovens artistas.
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Pela exposição andam também alguns objectos artísticos (um copo decorado de Jorge Barradas, Os Saloios - autocrítica involuntária?; um desenho de Cristiano Cruz), fotocópias (de esculturas de Diogo de Macedo e de gravuras de Sousa Lopes), frases várias, em geral ociosas.
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Como exemplo, outro exercício escolar para jovens comissários: é legítima a qualificação de vanguarda como "expressão paradigmática de modernismo"? Não é.
A ideia de vanguarda - para uma parte substancial dos seus defensores - define-se pela recusa de um modernismo caracterizado pela autonomia da obra de arte, já que a vanguarda histórica e as neo-vanguardas tb já históricas preconizam a religação entre a arte e a vida, entre a arte e a eficácia social; mas outras lógicas de vanguarda radicalizam pelo contrário a vertente esteticista da auto-suficiência intrínseca da experimentação artística modernista. Noutro passo do mesmo texto artístico-curatorial refere-se "o ideal moderno da construção recíproca da arte e da vida quotidiana" - o ideal moderno seria nesse caso vanguardista mas não modernista, embora seja problemático associar com as vanguardas "o ecletismo das artes decorativas em Lisboa". A confusão é grande, e não é possível argumentar se não se definir inicialmente o que se entende por moderno, modernismo e vanguarda.
Não me interessa nada saber pelo Google que o André Romão ganhou um qualquer prémio EDP para jovens artistas. O meio da arte coopta quem o alimenta, alimenta-se de quem coopta e prefere a insignificância. (O Leopeido de Almodo, sobrevive melhor - é pena)
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A informação camarária: http://www.cm-lisboa.pt
e uma foto daí sacada: em destaque o Leopoldo de Almeida (escultura "A Soberania", maquete de 1940)
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