"Que seria da investigação essencial sem apoio público? E, em consequência, o que seria da investigação aplicada?
Em paralelo: Que seria da criação artística sem apoio público? E, em consequência, que seria das indústrias criativas, do empreendedorismo, da indústria têxtil – mero exemplo - e tantos outros domínios da economia?"
Antes que acabe a silly season - acabará? - é preciso não esquecer esse tórrido produto cultural que fica a marcar a desertificação das razões de quem as devia saber pensar, mesmo no verão. Já tinha pegado neste mesmo texto a propósito de outra passagem insólita, quando o vi graças ao fb com incerta proveniência mas com muitos apoiantes em versão "like it" (dia 10/08 eram 49!?) - ver: http://alexandrepomar.typepad.com. Depois apareceu transcrito como "resposta da Plataforma das Artes publicada na revista Sábado de 12/08/2010 com o título "Para quando 1% do OE para a Cultura?" ) em http://plateia-apac.blogspot.com/2010/08, sem se informar ainda onde tal escrito (colectivo?) possa ter sido aprovado e por quem. O que não importa. (Copia-se lá em baixo para memória futura sobre a indigência actual.)
A enormidade burocrática, autoritária e académica lá está, como se fosse um dado banal, vulgar ou comum: "Os artistas e demais profissionais das artes são altamente especializados, formados em instituições superiores públicas e privadas, tal como o são os médicos, os historiadores, os engenheiros…" Ao contrário do que sucede com os médicos e engenheiros, a formação escolar em artes não garante nem legitima nem qualifica a profissão ou identidade de artista (pode ter-se um curso de artes, um doutoramento em arte e não se ser artista se não se produzem obras reconhecidas como arte). E sem essa formação "altamente especializada" obtida em "instituições superiores" pode ser-se um artista mais bem sucedido, mais qualificado ou reconhecido. Aliás, pode tb ser-se licenciado em medicina e não se ser médico (e o mm para advogados, por exemplo) - tal como no caso do artista, não se trata da obtenção escolar de um título.
Aquela afirmação supostamente culta proferida pela Plataforma das Artes é um disparate ignorante e reaccionário. Para quem se quer comparar com o lugar das ciências e da investigação científica, é uma prova de que parte substancial do discurso dito cultural é profundamente inculto. E no interior do campo das artes é uma tese que deveria mobilizar a rejeição de quem se reclama da tradição da arte avançada ou de vanguarda (a arte deve ser feita por todos, a poesia está na rua, etc...).
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Igualmente improcedente é a comparação com a ciência e a investigação científica, peregrina ideia (ou oportunismo) que vem tomar o lugar de antigas associações entre arte e filosofia, arte e religião, apenas para justificar candidaturas à partilha de fundos públicos. Não vale a pena aprofundar a pobreza dos raciocínios distintivos entre investigação científica pura ou essencial e aplicada (onde se faz a amálgama de muito diferentes campos científicos). De facto, não é possível equiparar a metodologia experimental do conhecimento científico com a dinâmica da criação artística, onde as questões da prova e da verdade não se colocam de modos comparáveis. A tese de Picasso (não procuro, encontro - que não pode tomar-se à letra), ou a boutade poética de Duchamp com o ready-made, ou o "novo paradigma" moderno da colagem e do object trouvé desqualificam por inteiro a comparação processual ou metodológica com as ciências - experiência e experimentalismo são modos de dizer; em arte, trata-se, de facto, de tentativa e erro. Sem esquecer os laboratórios da música electrónica e a investigação nos campos da reprodução mecânica e da imagem digital, que são territórios de fronteira.
Seria natural lembrar que as artes viveram e evoluíram sempre sob o regime do mecenato ou patrocínio e da encomenda, nas partes delas que não podem ser classificadas como arte popular. É apenas isso, mas essa linha de argumentação será pouco democrática para a chamada Plataforma das Artes.
Foi o crescimento do mercado artístico, com ciclos de mais ou menos rápida expansão (a reforma, o fim do antigo regime, o romantismo, etc), que viabilizou uma crescente produção artística independente do consumo ostentatório e doméstico das cortes régias ou eclesiásticas e das casas aristocráticas, que antes tinham patrocinado Miguel Ângelo e Velazquez, Bach e Mozart. Mas Leonardo, Rubens, Poussin e Rembrandt, já viviam do mercado. Vermeer também, mas mal, porque não tinha jeito para o negócio. Nessa dinâmica foram surgindo o Museu e o Salão, a sala de concertos, o público democrático. Surgem as dinâmicas públicas da premiação (a consagração republicana, o Panteão, etc) e da encomenda - da encomenda pública, que distingue e premeia os artistas mais reconhecidos e que constrói ou acumula património.
Fórmulas novas da bolsa, do prémio, do festival, da residência universitária ou do artista residente prolongam até hoje essas condições que parecem intrinsecamente indispensáveis à criação artística (ou àquela criação artística que não opta pelo exílio interior ou pela recusa abjeccionista da distinção oficializada). Nos países onde o mercado é mais poderoso e mais competitivo, essa dinâmica das bolsas, etc, é também um espaço superior, entre outros, do sistema das artes. Para além do caso mais visível da ópera, pode ver-se facilmente que muitas das obras mais marcantes na área da fotografia e da literatura, por exemplo, são concebidas, nos Estados Unidos da América, nessas condições de patrocínio ou encomenda.
(Não é imediata a definição do que é arte popular, mas podemos aceitar operacionalmente dois sentidos principais: 1 - as produções que atingem níveis de audiência suficientemente amplos para se sustentarem (total ou tendencialmente) a si mesmas, e que são mesmo lucrativas; os exemplos maiores são o cinema de Hollywood ou Bollywood, a música dita pop (de popular); 2 - as produções e práticas tidas por tradicionais (mesmo se a tradição é recente), as identificadas com o gosto ou a cultura de uma população, de origem não erudita (ou que prolongam - e degradam? - uma antiga origem erudita apropriada por públicos alargados). A questão das fronteiras entre hight e low, entre elevado/erudito/sério e popular, "the great divide" (Andreas Huyssen), está permanentemente em aberto e é constantemente silenciada, ou mal manipulada pelas linhas turvas que especulam sobre a arte e a vida .)
A lógica do subsídio, da distribuição de orçamentos por candidatos a artistas, em geral jovens, mediante projectos autorais auto-propostos ("autónomos"?), é uma perversão dessa dinâmica anterior, tida por igualitária mas estruturalmente burocrática, e uma concessão à lógica da decadente funcionarização das artes nos países ditos socialistas. O facto de ela assumir hoje o lugar de maior relevo público no debate sobre as artes e as políticas culturais é apenas consequência de uma desqualificação profunda do debate cultural e do grande peso mediático das reclamações e solidariedades corporativas. E trata-se do estabelecimento de um círculo vicioso: a descrebilização da produção e dos critérios de avaliação gera a necessidade da subsidiação burocrática, que não sustenta a criação qualificada e é apenas uma prática assistencialista.
Aliás, nunca seria o chamado apoio à criação a equiparar-se à investigação científica, mas sim a actividade mais discreta que se faz (ou devia fazer) nos institutos dos museus e do património - e são estes sectores que são penalizados pela prioridade conferida à rotina da subsidiação. Se as verbas para a ciência crescem e as da cultura estagnam é porque a legitimidade social desta se tem perdido, porque o discurso sobre a cultura, "autónomo" ou oficial, tem perdido credibilidade, como a argumentação da Plataforma das Artes confirma.
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O JPP tirou partido da silly season e deu boleia a autores colectivos e individuais com resultados variados: o António Pinto Ribeiro veio afagar o meio da arte, ou passar-lhe a mão pelo pelo (a 13 de agosto no Público, ver http://www.facebook.com/notes/tiago-bartolomeu-costa/o-mundo-decadente-do-dr-pacheco-pereira-opiniao-de-antonio-pinto-ribeiro-hoje-no/427192924532 - já ía há tempos com 373 "likes" - ou http://corporacoes.blogspot.com - extractos -, ou http://fitei.blogspot.com , ou aqui em pdf http://www.pisa-papeis.com), sem qualquer contribuição para o que falta debater, e o António Guerreiro, desta vez, descolou do politicamente conveniente na sua série de comentários "Ao pé da letra" para lembrar que a arte contemporânea continua a ser discutida, como aliás lhe convém (http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2010/08/ao-pe-da-letra-109-antonio-guerreiro.html). Noutro sítio (http://ressabiator.wordpress.com), Mário Moura tentou elevar o debate da estação com o tema da autonomia da arte e dos artistas, mas esta ideia da autonomia é há muito um ecrã que nos esconde da realidade social.
APR escreve, certamente a sério: "O dr. Pacheco Pereira deveria saber que a arte exige um pensamento sofisticado", e continua assim, professoral: "a pronunciar-se sobre ela, deveria ter estudado, visto, investigado. Talvez, se tivesse lido alguns textos de Hal Foster, Didier-Huberman, Jacques Rancière, Giorgio Agamben, Penny Phelan, Susan Foster, Homi K. Bhabha, André Lepecki, ou mesmo alguns de autores mais antigos, como algumas páginas de Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, no que diz respeito à autonomia da arte, ou Organon de Brecht, no que diz respeito aos heróis demasiado humanos, não tivesse proferido tão soberbas opiniões." Que raio de bibliografia tão pouco convincente, tão lista de modas culturais (algo passadas) e de pretenciosismos académicos...
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http://plateia-apac.blogspot.com/2010/08/gente-tendencialmente-comum.html (Domingo, 15 de Agosto de 2010)
GENTE TENDENCIALMENTE COMUM (resposta da Plataforma das Artes publicada na revista Sábado de 12/08/2010 com o título "Para quando 1% do OE para a Cultura?")
Não
encontramos razão atendível para que um deputado da nação, um
investigador, alguém que claramente não é info-excluído e
comprovadamente sabe usar e navegar na internet, baseie um artigo de
opinião não em factos mas antes em mitos preconceituosos que
irresponsável ou intencionalmente ressuscita. E não é a primeira vez que
José Pacheco Pereira (JPP) o faz. Visivelmente, nem a sua condição de
deputado o obriga a um código de ética.
Se não, vejamos. Com menos
trabalho e utilizando a mesma tecnologia, poderia (deveria) JPP ter
visitado os sites da Direcção-Geral das Artes (DGA) e do Instituto do
Cinema e Audiovisual (ICA). Lá encontraria toda a legislação e
regulamentação dos concursos públicos para atribuição de apoios
financeiros à criação/produção artística contemporânea de iniciativa não
governamental. Aí verificaria como estão definidos os objectivos, os
critérios de avaliação dos projectos e programas e respectiva
ponderação, a composição das Comissões de Avaliação/Júris
especializados. Encontraria ainda, para cada acto concursal, a avaliação
quantitativa e qualitativa dos projectos, a decisão final com lista
ordenada de todos os projectos seleccionados para apoio e respectivos
montantes. No caso concreto da DGA, ficaria a saber que os apoios
financeiros (que cobrem apenas, em média, 50% do orçamento total de cada
projecto ou programa) se destinam à produção e programação nas áreas de
teatro, dança, música, artes plásticas, fotografia, design,
arquitectura, artes digitais e cruzamentos disciplinares em todo o
território nacional, bem como da existência e funcionamento das
Comissões de Acompanhamento regionais da execução dos projectos, a
obrigatoriedade de apresentação de relatórios de actividades e contas
intermédios no caso dos apoios plurianuais. Poucos sectores do
investimento público serão tão transparentes, publicitados, avaliados à
partida e durante a sua execução.
Não é por acaso que na nossa
Constituição, no capítulo dedicado aos Direitos e Deveres Culturais,
surgem a par Educação, Cultura e Ciência; a função do Estado nestas
áreas é equivalente; todas são áreas do conhecimento, motor do
desenvolvimento socioeconómico. E na Constituição o foco dos direitos
dos cidadãos está tanto na fruição como na criação/promoção.
No site
da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a congénere da DGA e do
ICA no Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, encontraria
JPP informações equivalentes, o mesmo espírito de concurso público,
transparência e publicitação, avaliação e acompanhamento especializados.
Há
no entanto uma gritante diferença na evolução do investimento público
nestas duas áreas. Se em 2004 o orçamento da FCT era cerca do quádruplo
do orçamento conjunto de DGA e ICA actualmente o investimento na criação
artística mantém-se e essa relação é de onze para um. Evolução correcta
do orçamento para a ciência e tecnologia; errada para a criação
artística.
Menciona JPP um critério de avaliação que será,
supostamente, “abominado” pelos profissionais das artes: o número de
espectadores da arte. Ora sabe JPP que esse é um critério do mercado que
é precisamente aquele a que assumidamente não pode sujeitar-se o
desenvolvimento das tais áreas – educação, cultura e ciência – sob pena
de estagnação, risco de extinção.
Pegando novamente na Ciência e
Tecnologia, com um sistema de desenvolvimento mais paralelo à Arte.
Grosso modo podemos classificar a investigação científica e tecnológica
em essencial e aplicada. Enquanto a primeira, sem interesse comercial
directo, pouco apreciada pela população que não conhece os seus códigos
de leitura, só sobrevive com financiamento público, já a segunda, com
aplicação prática na sociedade, tem potencial atracção de investimento
privado. No entanto, a investigação aplicada tem de ser permanentemente
alimentada pelas novas descobertas da investigação essencial; sem ela
pára, deixa de evoluir.
Que seria da investigação essencial sem apoio público? E, em consequência, o que seria da investigação aplicada?
Em
paralelo: Que seria da criação artística sem apoio público? E, em
consequência, que seria das indústrias criativas, do empreendedorismo,
da indústria têxtil – mero exemplo - e tantos outros domínios da
economia?
Os artistas e demais profissionais das artes são altamente
especializados, formados em instituições superiores públicas e privadas,
tal como o são os médicos, os historiadores, os engenheiros… Mas antes
de tudo, e tal como todos os outros, são cidadãos. Têm ascendentes e
descendentes, têm de cumprir as mesmas leis, comem, bebem, pagam renda,
pagam impostos. Não são gente “vulgar” – a utilização deste termo foi
por certo um lapsus linguae de JPP -, mas também não são gente comum
como gostariam. Apenas gente tendencialmente comum, milhares de cidadãos
portugueses que pagam uma segurança social desajustada à cobertura que
lhes é assegurada porque não têm quadro contributivo adequado (como JPP
terá de saber já que o partido a que pertence, na Assembleia da
República a que pertence, viabilizou a passagem para discussão em
comissão parlamentar de propostas legislativas para criação deste
quadro). Gente tendencialmente comum que todos os dias multiplica o
parco investimento público que lhes é entregue contribuindo para que a
criação artística contemporânea portuguesa não se extinga.
Não é de
(ir)responsáveis “políticos” assim que o nosso país precisa. O que o
nosso país precisa é de um sério escrutínio aos “políticos” que tem.
Portugal
precisa de políticos que desenhem uma estratégia para o país. Para
quando aplicar-se cá o que em todos os países ditos desenvolvidos se
aplica há mais de uma dezena de anos? Para quando Portugal perceber que
só pode crescer estruturadamente, que só se pode implantar nas
plataformas supra-nacionais – UE, CPLP…. – através do investimento na
arte e na cultura? Para quando o 1% do O.E. para a Cultura? "
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O chavão do 1% fica para outra oportunidade
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