Foi um acto de grande significado político a homenagem prestada pelo Governo português a Malangatana, e em especial a escolha do lugar onde ela teve lugar, o refeitório do Mosteiro dos Jerónimos. Para além de grande pintor, que é seguramente o maior pintor africano, a figura de Malangatana tem uma notoriedade única no seu país, que atravessou os diferentes regimes com uma comunicabilidade, com uma capacidade de identificação com o seu povo, com uma presença emblemática largamente reconhecida dentro e fora de fronteiras, que não tiveram outros nomes da cultura ou da política. A criação de imagens tem poderes únicos.
Desaparecidos os grandes dirigentes nacionais, Mondlane e Machel, Malangatana representou muito mais do que a sua obra de pintor, mas mantendo com esta, ao longo de cinco décadas, as promessas que marcaram a sua fulgurante revelação no início dos anos 60. A sua obra e a sua divulgação internacional participaram da euforia da década das independências, mesmo se Moçambique iria ter uma longa guerra de libertação, uma problemática revolução e uma cruel guerra civil no seu difícil futuro. Essa energia inicial de Malangatana reafirmou-se até ao fim, o que é muito raro.
Associando-se à dimensão política e de Estado que tem a morte de Malangatana, a par da dimensão artística que lhe serve de base, os Ministérios da Cultura e dos Negócios Estrangeiros de Portugal assumiram a responsabilidade de valorizar a longa ligação do pintor a Portugal (em todas as suas dimensões, melhores e piores, incluindo a prisão pela PIDE em 1964-65) e, com ela, a importância estratégica dessa decisão para o futuro da relação entre os países, e entre culturas e populações que têm fortes histórias comuns.
(Nem tudo correu bem - a informação tardia, o equívoco quanto ao lugar da missa, etc - , mas levantam-se sempre dificuldades quando o passo é grande. O pior foi a desatenção de uma comunicação social ignorante, estúpida e irresponsável, que menosprezou o acontecimento cultural e o significado político, na sua corrida comum para a uniformidade telenovesca.)
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Malangatana e as suas pinturas, 1959-61?, no pátio da casa de Pancho Guedes, onde tenha à data o seu atelier (Foto Arquivo Pancho Guedes)
Entre os acontecimentos decisivos da sua vida, Malangatana referia o encontro com Eduardo Mondlane, acontecido em 1961, em Lourenço Marques (Maputo), em casa do arquitecto Amâncio d'Alpoim Miranda Guedes, que agora conhecemos todos por Pancho Guedes. Mondlane, que era professor universitário na América e funcionário da ONU, falou-lhe das responsabilidades assumidas pelo seu trabalho de pintor, de pintor africano embebido nas tradições culturais profundas do seu povo, no quadro da evolução política de Moçambique, então ainda incerta no momento em que outras nações acediam sucessivamente à independência. Mondlane insistiu então na necessidade de o jovem pintor se conservar em Moçambique, em vez de procurar melhores condições de aprendizagem e de trabalho no exterior: “Fez-me ver aspectos sobre os quais eu ainda não tinha pensado” (refere Malangatana num texto publicado em 2010 pelo semanário Savana).
Nesse ano em que Mondlane regressou de visita a Moçambique, vindo de Nova Iorque (convidado a auscultar as condições políticas do território, e a aceitar um lugar de governador de região pelo contra-almirante Sarmento Rodrigues, então comandante-geral e governador - o que é ainda um episódio mal conhecido, e que Adriano Moreira não lembra nas suas memórias), era ainda possível pensar que a guerra não seria um destino implacavelmente obrigatório. Mas a oportunidade não vingou, Mondlane percebeu-o rapidamente e acelerou a sua partida de Moçambique; a seguir encabeçou a unificação dos vários movimentos independentistas e veio depois a apoiar o início da luta armada.
Mas nesse ano de 1961, poucos meses depois desse encontro, Malangatana realizou a sua primeira exposição individual e o acontecimento teve uma relevância pública imediata que podemos ver também como índice de uma convivência racial decerto muito ambivalente – a um tempo, autoritária e tolerante, repressiva e paternalista - mas com espaços de abertura para a invenção de novos destinos (e é de lembrar Ricardo Rangel, fotógrafo mestiço que trabalhava na imprensa branca; a pintora Bertina Lopes, que pouco depois sairia para viver em Roma, e era irmã de uma deputada em Lisboa; o poeta José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana e outros). Sem que tal autorize as teses do lusotropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre, era então possível a um negro apanha-bolas no clube dos brancos frequentar os ateliers e os cursos do Núcleo de Arte – uma instituição que ainda existe com grande dinamismo. Era possível que a sua exposição fosse inaugurada na sede da Associação dos Organismos Económicos com a presença das autoridades civis e militares e com um apreciável êxito de críticas e de vendas. As coisas não se passavam assim nos países limítrofes que íam conhecer os tempos do apartheid.
Mas depressa tudo se ia tornar muito mais difícil, também em Lourenço Marques e na então chamada metrópole, com a extensão das guerras de libertação ou guerras coloniais. Em 1964 Malangatana conhece a prisão durante 18 meses, devido à cumplicidade ou à proximidade com a Frelimo, ao mesmo tempo que eram presos também em Lourenço Marques, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, Rui Nogar e outros (Pancho Guedes acabara de editar o Nós Matámos o Cão Tinhoso! com desenhos de Bertina Lopes e iria a seguir promover a tradução inglesa que teria largo curso interenacional).
Malangatana conhecera o êxito crítico muito cedo, consagrado em 1962 num artigo de 16 páginas e 15 ilustrações publicado por Julian Beinart na influente revista “Black Orpheus” que Ulli Beier publicava na Nigéria, acabada de chegar à independência. Consagrado tambem pela rapidíssima circulação das suas pinturas pela Cidade do Cabo, Salisbúria/Harare, Ibadan e Oshogbo na Nigéria, por Londres, e a partir daí em nova Dehli, Calcutá, Paquistão, com dois outros pintores então de grande nomeada, Uche Okeke, nigeriano, e Ibrahim El Salahi, do Sudão (numa circulação apoiada pelo Congresso para a Liberdade da Cultura que Martin Luther King lançara em Paris e Berlim...). Eram os três grandes embaixadores de uma arte moderna de África que afirmava as suas raízes culturais africanas, estéticas e simbólicas, sem hostilizar mas também sem se submeter às regras dos modernismos ocidentais – à época, os vários abstraccionismos favorecidos no pós-guerra. O facto de Malangatana não ter precisado de passar por escolas de Belas Artes para se tornar um grande artista era uma outra forma de independência que lhe assegurava um lugar de especial relevo nas primeiras abordagens críticas sobre a nova arte africana surgida na década eufórica das independências africanas de que as Áfricas ditas portuguesas não podiam participar. Era o “short cut” (o atalho), que serve de título a um capítulo de Contemporary Art in Africa, de Ulli Beier (1967, 1968), a primeira abordagem global da arte contemporânea africana.
Logo nos seus primeiros anos de trabalho e de circulação internacional, em 1962-63, Malangatana recusou convites para participar na representação portuguesa enviada à Bienal de São Paulo e após a prisão de Mandela retirou os seus quadros de uma mostra moçambicana em circulação na África do Sul. A seguir, a prisão não o impediu, após um intervalo de quase dois anos, 1964-65, de sobreviver como pintor, de prosseguir a sua obra e de impor o seu reconhecimento na então Lourenço Marques. (Abdias Muhlanga, outro artista em ascensão, não teve a mesma possibilidade.)
Em 1971 a Fundação Gulbenkian concedeu-lhe uma bolsa para estágios em Lisboa, de cerâmica e gravura, e é só no ano seguinte, com grande atraso, portanto, em relação à sua circulação internacional, que Lisboa viu pela 1ª vez os seus quadros, na SNBA e na Galeria Buccholz.
O destino posterior de Malangatana Valente Ngwenya... e é altura de lembrar que o nome Valente, com que assinou alguns primeiros quadros, é um nome português que era obrigatório incluir no registo das crianças negras; e Ngwenya significa crocodilo e é o seu nome de família na tradição clânica africana,... ...está associado à história de Moçambique independente, como o grande artista nacional (sem com esse destaque se ocultarem vários outros artistas moçambicanos de um panorama diversificado e muito rico), e em grande medida como o artista oficial de Moçambique, assumindo todos os riscos que tal poderia representar para a continuidade e a renovação da sua obra - mas de facto continuando a reiventar-se em novas séries de pinturas, em grandes murais e em esculturas públicas, ao mesmo tempo que se implicava em inúmeras iniciativas e instâncias de dinamização artística do seu país.
Mais uma vez, a inteligência profunda do pintor e a vitalidade do homem permitiram-lhe atravessar difíceis mutações políticas, no contexto da revolução política então marxista-leninista, que o levou em 1978-80 ao trabalho obrigatório nas aldeias comunais da província de Nampula; e permitiu-lhe depois conciliar a carreira de pintor com os cargos políticos de deputado da Frelimo e de embaixador cultural do seu país e da Unesco, alimentando também projectos de acção cultural locais e de base, como fizera ou tentara fazer, aliás, desde o início dos anos 60.
Mas Malangatana manteve sempre, após a dupla libertação dos dois países, uma estreita relação com Portugal, onde estudaram os seus filhos e alguns vivem, onde tinha uma segunda residência e onde fazia mais ou menos longos períodos de trabalho. Se a sua obra circulou sempre mais pelo mundo do que por Portugal, ao contrário do que se poderá pensar, deve lembrar-se a grande retrospectiva que a Secretaria de Estado da Cultura apresentou em 1989 na SNBA (replicando a que se fizera antes em Maputo em 1986, nos 50 anos do pintor, e que circulou depois por vários países); essa exposição justificou, aliás, que lhe fosse atribuído pelos críticos de arte da secção portuguesa da AICA o prémio patrocinado pela SEC (hoje MC) que por princípio é sempre destinado a artistas portugueses – a decisão teve então uma singularidade insólita que não podia passar desapercebida num novo contexto de interrelacionamento entre Estados.
Outras exposições e homenagens se seguiram em Portugal, como a outra grande retrospectiva recente apresentada em 2004 pelo ISPA - Instuto Superior de Psicologia Aplicada, ou o doutoramento honoris causa pela Universidade de Évora em 2010. E não é por acaso que os seus desenhos recentes estão ainda em exposição na Casa da Cerca em Almada e que as suas primeiras pinturas (16 obras dos anos 1959-61) são expostos com a Colecção do Arq. Pancho Guedes pela Câmara de Lisboa no Mercado de Santa Clara.
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