Outras urgências vão atrasando o comentário sobre o entreaberto Museu de Arte Popular.
1. Haveria que comentar um projecto expositivo que segue demasiado a opção recente de substituir a exibição de objectos pela paginação de textos e fotografias. (Opção recente ou reedição de uma metodologia antiga servida por novos meios?)
As comemorações centrais da República (Cordoaria, Praça do Comércio) serviram de exemplo mais gritante de uma confusão crescente (?) entre exposição e paginação, que resultará da facilidade tecnológica com que se mandam ampliar ilustrações, imagens documentais e extractos de textos, os quais têm lugar certo nas páginas de livros mas passam a preencher muitos metros de parede e a lembrar antigas práticas de propaganda. O que agora é digital fazia melhor o antigo SNI com processos de fotomontagem e cenografia.
Faltam na fotografia uns manequins do Museu do Teatro (o Teatro do Povo) e várias vitrinas de objectos (bonecos de Estremoz e miniaturizações etnográficas), mas parece um desdobrável ou dépliant distribuido pelas paredes
A ideia a defender é que uma exposição com responsabilidades museológicas não é um texto prévio que se amplia ao tamanho dos muros e se ilustra com uma ou outra vitrina, mas um discurso construído pela disposição de objectos, e eventualmente justificado ou sustentado por breves textos informativos. Uma exposição - mesmo documental - reúne e exibe peças originais: objectos, móveis, publicações, cartazes, fotografias, etc, não reproduções, imagens apropriadas e citações que se lêem melhor impressas ou no ecrã do computador.
2. Um segundo ponto a referir é a qualidade da loja do Museu, oportunamente baptizada Loja Popular. O mérito resulta da participação de duas empresas que têm vindo a fazer um trabalho importante de pesquisa e de reanimação da produção em áreas afins, populares ou popularizadas, artesanais e/ou tradicionais, recuperando artesanatos e artefactos de pequenas indústrias e de marcas sobreviventes: A Vida Portuguesa, de Catarina Portas, e País em Lisboa, de Isabel Peres Gomes. O Museu começa ali, vivo. As artes e tradições populares não são uma história antiga.
3. A seguir, seria preciso alargar o propósito de contextualizar o MAP para além do âmbito temático do modernismo e das vanguardas em Portugal, do regime salazarista (Ditadura Nacional / Estado Novo) e do seu serviço de propaganda e cultura dirigido por António Ferro, o SPN/SNI, da "Política do Espírito" e da Campanha do Bom Gosto, dos decoradores e folcloristas da "Situação", etc. Para além de um cauteloso e ambíguo exorcismo do antigo regime (rústico-modernista) será preciso falar das respectivas tensões e contradições internas (J.N. Ferreira Dias e Henrique Galvão, por exemplo), e, em mais pequena escala, de acontecimentos ou escritos que subvertem a ideia de um processo simples e linear: veja-se o nº 35 do "Panorama" (a revista do SNI - Informação, Cultura Popular e Turismo...) que coincide com a inauguração do MAP mas onde este é objecto de uma subtil leitura crítica de Luís Chaves ("Científico? Não, porque não o quiseram fazer desta feição. Falta-lhe a sistematização científica, porque não lha quiseram dar (...)"). E onde o outro tema em destaque é a Exposição de Obras Públicas erguida no espaço do Instituto Superior Tércnico; aí se trata de barragens e estradas, de arquitectura e engenharia - a equipa de decoradores era em geral a mesma, os escultores do regime estiveram muito presentes, mas não era do país rural e antigo que se falava, pelo contrário.
Alargar a informação exige em especial olhar para fora, porque o folclore, a "folk art", a arte popular têm uma história contemporânea internacional com muitos pontos comuns e que tanto passa pela Frente Popular na França de 1936 (e da Exposição Internacional de Paris em 1937, onde o Pavilhão de Portugal teve projecto arquitectónioco de Keil do Amaral...), como pelo regime de Vichy e o seu gosto próximo do Heimatmuseum nacional-socialista.
Seria preciso referir, por exemplo, dada a proximidade cultural francesa (apesar da formação alemã de Jorge Dias), o livro "Le magicien des vitrines. Le muséologue Georges-Henri Rivière", de Nina Gorgus, Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, Paris, 2003, 416 p., 38 € (trad. da ed. alemã de 1999).
É a biografia intelectual e institucional do muséologo Georges-Henri Rivière (1897-1985)... " un des acteurs les plus importants sur la scène de l'anthropologie française du xxe siècle. Autodidacte, ami des surréalistes ("Documents"), ... l'un des maîtres d'oeuvre de la réorganisation du musée du Trocadéro (futur Musée de l'Homme), l'inventeur du Musée des Arts et Traditions Populaires (o MATP) en 1937 et l'un des instigateurs du concept d'écomusée (où la vie traditionnelle des gens du pays est replacée dans son contexte écologique). Par les liens qu'il tissera entre ethnologues, historiens, géographes et régionalistes, G.-H. Rivière contribuera au développement des études de folklore en France, dès la période du Front populaire, puis à celui de l'ethnologie de la France des années 50 jusqu'aux années 70." Etc.
Uma outra leitura recomendável para recontextulizar o contexto do MAP é o livro de José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX, ed. Tinta da China, 2008, 504 p. Por aí se conhecem outras relações diferentemente nacionalistas com a cultura popular, por exemplo a rusticidade de Fernando Lopes Graça, as portuguesas de Maria Lamas e a etnografia neo-realista de Alves Redol. Contra o regime político mas com curiosas proximidades ideológicas próprias dos anos 30/40.
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