(Entre outras ocasiões, Cartier-Bresson foi exposto em 1993, no Mês da Fotografia de Lisboa que Sérgio Tréfaut dirigiu e ficou sem sequência. Esteve então no Museu de Etnologia uma retrospectiva do Centre National de Photographie, Paris, com 150 fotografias de 1929 a 1978.)
Arquivo EXPRESSO 27/1/2001
"Viajar com convicções"
Deambulações europeias de Henri Cartier-Bresson ao longo de mais de meio século de fotografias
HENRI CARTIER-BRESSON, «EUROPEUS»
Centro Cultural de Belém (Até 22 Março)
Em meados dos anos 70, Henri Cartier-Bresson trocou a fotografia pelo desenho. Não deixou de trazer a Leica sempre consigo, foi aceitando algumas raras encomendas e continuou a fazer um ou outro retrato, apenas de amigos, mas, em vez de passar a ser um velho fotógrafo, que hoje já tem 92 anos, voltou a viver como um jovem desenhador, dedicado mas inábil. Reatava assim com a aprendizagem dos seus anos 20, no atelier do cubista André Lhote, e também tornava mais nítido um paradoxo das suas fotografias.
Sendo o mais celebrado dos fotojornalistas, o mais carismático representante da profissão, é para o olhar de pintor, para as qualidades formais das imagens (o ritmo plástico, a geometria, a composição regida pela regra clássica do número de ouro) que remetem os comentários que faz sobre o seu trabalho. Na fotografia, ou no desenho, interessa-lhe a alegria visual, o prazer do olhar, não a informação, a actualidade documental ou a pretensão política.
Finalmente, uma dessas exposições que vão itinerando pelo mundo, anos a fio, chega a Portugal, onde apenas havia memória de uma síntese retrospectiva ter sido mostrada pelos Encontros de Coimbra em 91 (e no mesmo ano também houve uma tiragem portuguesa de A América, Furtivamente, ed. Afrontamento). Uma coisa é reconhecer dois ou três clichés mais reproduzidos e outra bem diferente é a experiência de percorrer uma extensa galeria onde se alinham perto de duas centenas de imagens, mergulhando-se numa versão do mundo, neste caso da Europa, que tem tanto de real como de estilisticamente pessoal.
Europeus (Des Européens), exposição e livro, adapta o título de uma anterior edição de 1955 (Les Européens) há muito inacessível, publicada por Tériade, com capa original de Miró. Lançado num período de intensa actividade editorial de Cartier-Bresson (outros livros sobre o Bali, a China e Moscovo saem em 54-55), vinha já na sequência do mítico Images à la Sauvette, de 1952 (The Decisive Moment na versão norte-americana), com que se fixou a fórmula do instante decisivo; no prefácio, H.C.-B. estabelecera a sua doutrina, mas não a definição da fotografia em geral, como ele próprio afirma: «Uma fotografia é, para mim, o reconhecimento simultâneo, numa fracção de segundo, da significação de um facto, por um lado, e, por outro, de uma organização rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem esse facto.» Ou, de uma forma menos normativa, com palavras de pintor, embora avisando que não se trata de «tentar fazer 'Arte'»: «A fotografia é para mim o reconhecimento na realidade de um ritmo de superfícies, de linhas e de valores.» Portanto, uma ordem surpreendida no fluxo da vida e no caos do mundo - a que corresponde uma problemática opção filosófica.
Ilustr. «Lisboa, 1955». Da disponibilidade surrealista para os encontros de acaso ao fotojornalismo «comprometido»
O que era a Europa acabada de sair da II Guerra Mundial, em 114 fotos realizadas nos cinco anos anteriores a 1955, quando às ruínas por apagar se juntavam as marcas da Guerra Fria, deu lugar em 1997, por iniciativa da Maison Européenne de la Photographie, da Câmara de Paris, a um projecto inteiramente diverso, onde as fronteiras geográficas se alargam, graças às muitas viagens posteriores, e o horizonte cronológico se estende por toda a actividade do autor (1929 e 1991 são aqui os limites). Para tal, Maurice Coriat passou em revista cerca de cinco mil folhas de contactos, de que resultou, sob a vigilância de H.C.-B., apenas uma vintena de inéditos, não identificados como tal. São quase todos imagens recentes, com destaque para os dois modelos nus decapitados de 1989 (A pausa entre duas poses de desenho) e para uma foto de rua datada de 1959 (Tarascon, França), onde é um efeito de luz a rasgar o espaço, e não a tensão geométrica das formas, que constrói o instante - neste caso, acidental, não essencial.
É de uma Europa pessoal que se trata, reciclando imagens de reportagens encomendadas e outras livremente procuradas, que se mostram isoladas e reordenadas, país a país; onde as deambulações do autor, os acasos dos seus encontros (os seus prazeres do olhar) contam tanto ou mais do que as marcas da história que aqui e ali pontuam o itinerário.
O meio século de fotografias não é homogéneo: os primeiros anos 30 são os do fortíssimo início da obra de H.C.-B., de formação e aventura surrealista, que justificavam por si só a exposição «póstuma» do MoMA, em 1947; segue-se o fotojornalismo profissional e «comprometido» do pós-guerra e do período heróico da Magnum, criada em 1947, e, por fim, a itinerância («flânerie») de novo mais livre nas fotos ocasionais dos últimos anos. E são certamente estas as mais distanciadas do presente, as mais idealizadas, porque o mundo de Henri Cartier-Bresson se deteve, definitivamente, antes da sociedade de consumo.
Sem um estrito alinhamento cronológico, o percurso vai fixando algumas datas da história do século. As primeiras férias pagas, em 1936, no início da Frente Popular, em imagens de um humor sensual muito próximo do cinema de Jean Renoir, de quem ia então ser segundo assistente (até La Grande Illusion). O fim da II Guerra Mundial - depois de três anos prisioneiro dos alemães e uma terceira fuga bem sucedida, a que se seguiu a clandestinidade - numa imagem isolada da libertação de Paris e duas dos campos de Dessau, Alemanha. A URSS de 1954, quando foi o primeiro fotógrafo ocidental a ser admitido pelas autoridades soviéticas depois da morte de Estaline, em trabalho para a «Life». O Muro de Berlim (1962), a encerrar o optimismo que o pós-guerra permitira, e Maio de 68. Mas são as imagens da coroação de Jorge VI (Londres, 1937), a que assistiu como enviado do jornal comunista «Ce Soir», dirigido por Aragon, que melhor traduzem o distanciamento irónico face à actualidade política, voltando a câmara para o público. Giacometti, o escultor que Cartier-Bresson continuou sempre a apontar como seu «maître à penser», é o único personagem reconhecível (surge não identificado em Stampa, Grisons, Suíça, 1961), num universo que pertence aos rostos anónimos e em que se suspendem quase todos os propósitos de mensagem. Falando desta exposição, H.C.-B. admite que as suas fotografias mostram «uma confiança inteira no Homem e nenhuma na sociedade».
Alinhada por países, a sequência das imagens europeias reserva naturalmente um largo espaço à França e começa o périplo internacional por Portugal, com sete fotografias de uma única viagem em 1955. Um interior dos Jerónimos, numa cena de confessionário marcada pela estranha proximidade dos dois corpos negros (mais uma entre as inúmeras imagens de tema religioso). O Castelo de São Jorge, com os velhos diante da perspectiva rasgada da cidade ao sol. A Nazaré e os seus trajos típicos, local de peregrinação de fotógrafos que então vinham testemunhar o exotismo e a miséria de um país europeu parado no tempo. Logo a seguir, a Espanha de 1932-33 está presente em 11 fotografias, que se contam entre as melhores da obra de Cartier-Bresson.
A exposição é acompanhada por um livro, editado pelo CCB, que inclui um prefácio apressado de Jean Clair e todas as imagens, pelo magnífico preço de 4500$00. Para conhecer a vida do autor, procure-se a biografia de Pierre Assouline, «Cartier-Bresson, L'Oeil du Siècle» (Plon, 1999), a completar com a história não oficial da agência Magnum, investigada por Russell Miller («Magnum», Pimlico, Londres, 1997).
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Henri Cartier-Bresson
Centro Cultural de Belém
20/1/2001
Dez anos depois da II Guerra Mundial, C.-B. e Tériade publicaram, com capa original de Miró, Les Européens, um retrato colectivo muito marcado ainda pelas ruínas deixadas pelo conflito. O álbum tornara-se há muito impossível de encontrar. Em 1997, uma outra exposição e um livro, Des Européens (Europeus), recolheu os testemunhos de outras viagens do fotógrafo e ampliou o seu horizonte temporal. Entre o início dos anos 30 e os anos 70, quando C.-B., trocou quase por completo a fotografia pelo desenho, é todo um meio século de história da Europa anonimamente vivida (não a actualidade dos «scoops» políticos) que se atravessa, sintetizado em 180 imagens escolhidas por Maurice Coriat de entre cinco mil folhas de contactos. Com os clássicos e alguns inéditos de um fotógrafo que recusa a fama de ter inventado o «instante decisivo».
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