Foto de Rosa Pomar
VISITAS GUIADAS
por Alexandre Pomar, no sábado (dia 5) e no domingo (dia 6) às 17 horas. Inscrições para o nº 912 325 012.
"As Áfricas de Pancho Guedes"
Mercado de Santa Clara, Campo de Santa Clara /Feira da Ladra), Lisboa, Portugal
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Uma colecção africana
A arte tradicional das máscaras e outros artefactos rituais, de que se ocupam as colecções dedicadas a África mais habitualmente mostradas, e que documentam um passado histórico e tribal mais ou menos distante, primitivo e perdido, reune-se na colecção de Dori e Amâncio Guedes com as obras ditas de artes plásticas com que se começou a afirmar a modernidade artística do continente, a partir dos anos 50, ao tempo das primeiras independências. Um excepcional conjunto de 17 pinturas de Malangatana dos anos 1959-61, no exacto início da sua carreira, é a expressão mais forte desse núcleo da colecção.
Mas a exposição "As Áfricas de Pancho Guedes" inclui também manifestações de arte popular onde se revelam novas formas de criatividade original que respondem às transformações das sociedades tradicionais, com destino aos mercados urbanos, como é o caso especial da escultura oriunda dos arredores da antiga Lourenço Marques, agora Maputo. E acolhe igualmente objectos de uso quotidiano, de restrito prestígio social ou de uso corrente e democrático, que aliam a exigência da funcionalidade à invenção de formas distintivas de diferentes culturas e regiões, de que são exemplos mais frequentes os bancos e os apoios de cabeça que fazem as vezes de travesseiros.
A diversidade dos núcleos da colecção assim vistos em contiguidade põe em questão as fronteiras entre géneros e as respectivas hierarquias, ilustrando a multiplicidade e a simultaneidade das práticas numa África viva e sempre em mudança – aqui, a partir de um momento decisivo da história comum, as décadas de 50/60.
O acervo que se expõe, depois de ir viajando e ampliando-se pelos vários espaços domésticos dos seus proprietários (Lourenço Marques, Joanesburgo, Lisboa), também permite pôr em diálogo ou em conflito as variadas relações que se estabelecem com o diferente e o exótico, o tradicional e o moderno, questionando o valor atribuído às antiguidades e as reacções face à novidade, proporcionando a abordagem erudita do antropólogo ou do historiador de arte e o olhar sensível mais interessado pelas formas, ou pelo acordo entre a função e a forma, mesmo se a localização ou a cultura de origem não está identificada.
Viaja-se da chamada "arte tribal" (que já foi arte negra e foi arte primitiva e que alguns designam agora como artes primeiras) até à arte popular destinada ao consumo urbano, passando pelas situações de convivência ou transição entre as tradições locais e as técnicas artísticas de lição ocidental, com atenção às criações de amadores e artistas "outsiders”. “É tudo arte popular”, diz Pancho Guedes.
A formação da colecção acompanha a intensa actividade desenvolvida em Moçambique e depois na África do Sul por Pancho Guedes, arquitecto e professor, testemunhando o seu interesse constante pelo diálogo concreto com outros modos de expressão. Os objectos que coleccionou, como ele próprio também afirma, ajudaram-no a livrar-se “do eurocentrismo dominante do homem branco que vive na terra dos outros” (In Pancho Guedes, Vitruvius Mozambicanus, Museu Colecção Berardo, 2009, pág. 165).
Noutras situações, mais frequentes, a selecção coleccionista dos objectos, com os seus critérios próprios de atribuição de valor e distinção, é um exercício possessivo de eurocentrismo. Ao contrário das colecções que se querem especializadas ou sistemáticas, feitas na Europa e no mercado dos antiquários, esta é uma colecção africana vivida em África, reunida ao sabor das viagens, das circunstâncias e dos encontros pessoais, feita de escolhas próprias, com algumas recolhas no terreno e também com um olhar subtilmente erudito e atento exercido sobre a oferta múltipla dos vendedores de feira. Dos cemitérios Mbali em Angola aos terreiros de adivinhos Yoruba, na Nigéria, e aos contactos directos com os populares macua-lómue, a quem adquiriu tanto as raríssimas máscaras de entrecasca de árvore como os bancos pessoais que os homens transportam consigo na bicicleta.
É uma colecção plural e diversificada, uma colecção de colecções, mas em especial um acervo singular e ideossincrático, associado à própria actividade criadora de um grande arquitecto com inúmeras obras construídas em África, que é também pintor e escultor (tudo isso se mostrou amplamente na exposição apresentada no CCB/Museu Colecção Berardo, em 2009). E que – ponto menos referido - é igualmente reconhecido internacionalmente como um dos principais patronos ou impulsionadores da arte contemporânea africana numa década decisiva, a das independências de muitas antigas colónias, em diálogo estreito com figuras determinantes como Frank McEwen, em Salisbúria/Harare, o organizador do 1º Congresso Internacional da Cultura Africana em 1962, ou Ulli Beier, fundador do Mbari Club e da revista Black Orpheus, em Ibadan, Nigéria.
O cenário expositivo bifurca-se pela galeria das chamadas artes plásticas e pelo itinerário através dos objectos tribais e/ou populares. No percurso lateral do Mercado de Santa Clara, as máscaras estão desde logo em evidência com a teatralidade específica dos lómues e macondes, e destacam-as duas antigas e muito raras máscaras Ngoni/Nyau de Moçambique, cujo naturalismo identifica uma direcção estética aí muito presente, divergente das orientações sintéticas e abstractas que interessaram as vanguardas do século XX. A arte funerária Mbali, de Angola, é entretanto um caso específico de aculturação, de arte popular. A arte do bronze e o tráfico do ouro da antiga Nigéria comparece em versões aí recolhidas nos anos da respectiva independência, e no campo dos objectos rituais destacam-se como muito pouco vistas as bonecas do Sudoeste de Angola, que também são brinquedos. As peças de escultura maconde documentam momentos de transição de um grupo étnico há muito identificado pela produção de arte - agricultores e artistas -, sendo exemplos singulares as figuras dos dois veneráveis casais e depois as ilustrações da ordem colonial.
No espaço dedicado a processos e suportes artísticos de lição europeia (a pintura móvel), atravessa-se também uma situação plural onde convivem artistas de origem portuguesa e os primeiros pintores locais, de formação escolar ou sem ela, mas aí podem caber práticas da escultura que têm fortes linhas de continuidade com a tradição. Ao lado de Malangatana estão os outros africanos que Pancho Guedes levou ao Congresso de 1962, até agora nunca de novo reunidos, e mais pintores que intervieram numa situação que os impasses da guerra colonial afectou. Artistas eruditos ou de aprendizagem local, conhecidos e desconhecidos – são as obras que valem por si, e por terem sido coleccionadas por Dori e Pancho Guedes.
Entre as derivas mais originais, estão os bordados feitos por homens de Lourenço Marques/Maputo, vindos de uma recente tradição perdida, e já ignorada, e o caso singular do pintor Tito Zungu, de que Pancho Guedes apresentou a primeira exposição individual em 1982, e que em 1993 pôde integrar a representação oficial da África do Sul na Bienal de Veneza. São as Áfricas, várias Áfricas, que aqui comparecem, e de que assim nos podemos aproximar, não uma qualquer ideia redutora das muitas diferenças locais e das múltiplas relações a estabelecer.
Alexandre Pomar
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