Regresse-se então aos fardos, escolhidos para título da exposição do Museu do Chiado e objecto de uma interpretação que é por um lado anacrónica e por outro desajustada face ao que podemos julgar ser a posição ético-política e estética do autor em causa, e, para além dele, as posições ideológicas do neo-realismo ou humanismo da época.
Maria Lamas, AS MULHERES DO MEU PAÍS, pág. 372 (Capítulo "A Operária"). Legenda: "Jovens trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova. As raparigas começam a trabalhar ali aos 14 anos. Fazem a remoção, ou seja o transporte do carvão ou da pedra, à cabeça, em gigos, como se vê na fotografia. (...) Muito cedo aprendem a encarar directamente a vida"
Referi que há apenas dois "fardos" (nota 7) entre as 70 provas de época reunidas na antologia editada em 1980, O MUNDO DA MINHA OBJECTIVA, que até prova em contrário deve ser considerada rigorosamente representativa do trabalho e dos ideais estéticos de Adelino Lyon de Castro, incluindo o que mostrou em vida e o que deixou inédito. Acrescente-se que há mais quatro "fardos" entre as 10 imagens reproduzidas em AS MULHERES DO MEU PAÍS, de Maria Lamas, editado em 1948-50 - em vida do fotógrafo, portanto. (É curioso observar a proximidade entre os dois títulos: a ideia de uma escolha intencional e pessoal daquilo que se quer ver e que é uma relação particular com o mundo e com o país, antes de se integrar numa dinâmica colectiva - dimensão pessoal que não inclui a ideia do documentário subjectivo, que só surgirá mais tarde - na fotografia com Robert Frank e William Klein.)
"Descarga de areia, nos cais de Lisboa" (p. 392) e "A carregadora do cais" (393), "Ensaboadeira de Coimbra" (410), e "Descarga de molhos de mato, num cais do Mondego, em Coimbra" (420) - os títulos são apenas o início das longas legendas informativas e comentadas da autoria de Maria Lamas - são imagens documentais sobre o trabalho feminino. Folheando o livro, constata-se, porém, que o transporte à cabeça de cargas mais ou menos pesadas é uma constante nas ilustrações fotográficas, e não uma particularidade estilística de Lyon de Castro ou uma específica metáfora pessoal sobre o mundo e a vida. É esse em inúmeros casos a função - menos qualificada - atribuída às mulheres, nas minas, na descarga de barcos, no trabalho em geral; por outro lado, e em absoluto, o transporte mecanizado é, nos anos 40/50, muito mais raro e localizado do que no presente, e esse facto não pode esquecer-se para avaliar o universo social que se explora.
Entretanto, o que Emília Tavares vê nas "figuras humanas carregando fardos" é "a mitologia do Atlas, aquele que carrega o mundo sobre as suas costas", presente como uma "referência intrínseca ao espírito do trabalho fotográfico de Lyon de Castro"; por outro lado, interpreta "o esforço como acto disforme", que marcaria rostos e corpos não só com o peso do trabalho como com "uma condição social de exclusão" - associando embora, de um modo pouco claro, "as imagens de superação desse mesmo esforço" a uma "estética do equilíbrio" que lhes poderia "dar forma e esperança". Mais adiante identifica na obra de A.L.C. "a imagem do trabalhador enquanto reflexo duma tristeza existencial, enquanto marca dum estigma de exclusão mais vasto que o social e o económico" (sublinhados meus).
Citar Hannah Arendt a este respeito, para entender o trabalho e a divisão social, é procurar orientações ideológicas adversas às de Lyon de Castro, favorecendo-se explicitamente a ideia conservadora de uma "condição circular" "ligada aos ciclos recorrentes da natureza e ao círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo", e por aí se chega a dizer que "a condição dos trabalhadores está entre o épico e o abominável", e se fala de um "estado de pobreza que se torna abjecta porque 'coloca os homens sob o absoluto ditado dos seus corpos, isto é sob o absoluto ditado da necessidade' (Arendt)"
Julgo que a insistência na "figura dos excluídos" e no conceito de exclusão (que E.T. associa às fotografias Ex-Homens e Sem Destino, onde comparecem vagabundos ou homens sem trabalho, e não homeless) antecipa classificações muito posteriores, e através dela quer-se ver "mais do que uma condição social", "um estado existencial, sem esperança ou resolução". Tal como nas imagens do trabalho e dos trabalhadores que carregam fardos se pretende ver "uma condição humana, mais do que uma condição política". Lyon de Castro não era stalinista nem realista socialista (e antes de 1953 o realismo socialista não se confundia com o neo-realismo nacional), mas o seu horizonte ideológico seria em geral o do humanismo e do voluntarismo progressista que imperam no II pós-guerra. As "filosofias" são outras.
Maria Lamas, AS MULHERES DO MEU PAÍS, pág. 144 ("A Camponesa - No Douro Litoral)
As legendas de Maria Lamas para as fotografias de trabalhadoras carregando fardos fornecem pistas muito mais directas e sólidas. Vejam-se suas próprias fotografias, antes de passar às de Lyon de Castro - certamente influenciadas pelas de Maria Lamas e pelo seu projecto editorial, menos "salonistas" do que as enviadas aos concursos:
in AS MULHERES DO MEU PAÍS (Cap. A Operária), pp 392 e e 393
in AS MULHERES DO MEU PAÍS (Cap. A Operária), pp 410 e e 420
Não há dúvida, o trabalho do povo, rural ou operário, é duro (e "algumas mulheres do povo continuam a ser animais de carga"). A mecanização não chegara ainda em grande escala, e o trabalho era portanto braçal ou de transporte à cabeça (o fardo), pode ser épico, é fotogénico, mas não é ou não se mostra "abominável"; o esforço não é "acto disforme", a pobreza não "se torna abjecta", a imagem não reflecte nenhuma "tristeza existencial", não há resignação. Há resistência física, vigor, pode ser "uma visão de beleza - aquela beleza que exprime luta pela vida, num ritmo enérgico, sem artifícios nem disfarces", e que, com "um grande sentido de justiça" é "capaz da mais firme solidariedade e compreensão, perante as desditas que humanamente a confrangem" (legenda pág. 393). Também não é certo que as fotografias denunciem "as condições extremas", ou questionem "o limiar da dignidade humana sob a adversidade" (apresentação, pág. 5). O voluntarismo progressista não passa pelo gosto dos extremos, tempera-os.
O documento é aqui por vezes denúncia mas persegue sempre a "visão de beleza", procurando Lyon de Castro, como escreve Manuel Ruas em 1956, "que a luz dos olhos faça a luz do espírito", "que as suas obras transmitissem a Vida, a Vida do Homem: o seu trabalho, as suas angústias, as suas esperanças" ("In memoriam" no Boletim do Foto Club 6 x 6, nº 3).
Diz-se no site do Museu: "O fotógrafo legou-nos um extraordinário e inesperado diário visual do labor, da pobreza e da exclusão enquanto estados de degradação social, e do papel que a fotografia pode ter enquanto meio de denúncia e ensinamento sobre a realidade." O labor (trabalho), a pobreza e a exclusão (?) não são estados de degradação social - serão estados de opressão, de exploração económico-social; com eles, ou seja pelo trabalho e pela convicção de que a condição operária será a chave da emancipação social, é de transformação e progresso social que se fala - e são as regras do salonismo fotográfico, complacente com uma estetização miserabilista e naturalista do povo, que se procuram transformar com outro ideário político (a aproximação de José Neves a Maria Lamas, Alves Redol e Piteira Santos no livro Comunismo e Nacionalismo em Portugal, 2008, abre outras pistas de leitura, que não passam por Hannah Arendt...). É essa conjunção entre salonismo (o meio e os códigos da "fotografia de arte") e neo-realismo que é importante em Lyon de Castro. Não se dirá que o legado é extraordinário, mas é excepcional e muito significativo: a morte precoce do fotógrafo, o desentendimento cultural da fotografia e, em especial, o conflito duríssimo que atravessava o campo dos intelectuais e artistas progressistas no início dos anos 50, vítima do que era então o sectarismo do PCP, deram-lhe uma invisibilidade de que só recentemente começou a sair.
Exposição no Museu do Chiado até domingo, dia 19 : http://www.museudochiado-ipmuseus.pt/pt/node/971.
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