ENTREVISTA
Uma árvore com muitos ramos
23 Fev. 1991, Revista, pág. 37R
Como se faz uma colecção de fotografia? O projecto estava definido à partida ou houve uma grande margem de acaso?
JORGE CALADO - Foi tudo feito muito intuitivamente e, no entanto, ao organizar o catálogo e a exposição, ao escrever o texto para tentar integrar as várias imagens, eu próprio fiquei espantado por haver vários fios condutores ... , porque, de facto, está tudo ligado.
Evidentemente que achava que o dinheiro não era muito e que tinha de ser económico na maneira de o gerir. Mas havia duas ou três ideias prévias: por um lado, devia constituir núcleos que fizessem um certo sentido, e depois saltitar um bocado pela história da fotografia até aos anos 40-50, isso por uma questão de opção, porque achei que havia fotografias que eram fáceis de obter em boas condições financeiras neste momento, mas que se se esperasse mais um ou dois anos já não seria possível comprá-las. Por outro lado, procurei não ir atrás dos chavões, isto é, daquelas imagens que toda a gente conhece e vêm reproduzidas em todos os livros. Há, julgo eu, só uma excepção óbvia que é a fotografia da Dorothea Lange da mãe migrante, mas há uma história por trás daquela mulher que sempre me sensibilizou e que aliás conto no texto. E há um outro facto ainda: esta fotografia foi impressa a partir do negativo original mas não pela D. Lange; foi impressa pelo Arthur Rothstein, que era também um dos grandes fotógrafos do mesmo movimento da FSA (Farm Security Administration), e há nela uma condensação de história que me interessou: quem a tirou, quem a imprimiu, etc...
A colecção percorre a história da fotografia, mas não é uma história da fotografia, nem tal seria possível com os meios e o tempo disponíveis.
J.C. - Não. Mas eu sempre pensei que será possível se este projecto continuar: a minha ideia é que ao fim de 10, 20 anos, continuando a comprar, poderá haver, de facto, uma colecção que percorra a história da fotografia. O que eu queria, sem grandes pretensões, era que, ao fim de dois anos, este conjunto fizesse sentido, não fosse só um apanhado de coisas dispersas. E houve também outra preocupação: que várias técnicas fotográficas estivessem representadas (e há, de facto, as calotipias, as albuminas, os papéis salgados, os carbonos, etc), para que houvesse um lado didáctico na própria colecção.
Quando se faz uma colecção, como se estabelece o preço justo de uma fotografia?
J.C. - Eu acho que esse preço é uma questão fundamentalmente emocional, objectivamente ele não existe. O que há é um preço para cada pessoa, embora existam determinados padrões - na pintura as coisas estão mais codificadas, o mercado é maior e mais antigo, há muito mais experiência...
As fontes são os leilões, as galerias, os marchands, os "dealcrs» que trabalham individualmente, sem galeria, os próprios fotógrafos no caso dos contemporâneos que estão vivos e uma outra que nunca desprezo e que são os alfarrabistas, as lojas de bric a brac e os livreiros antiquários que às vezes sem saber também têm fotografias. Neste conjunto todo os preços variam. Por exemplo, a mesma fotografia comprada numa leilão é em geral 30 ou 40 por cento mais barata que numa galeria, embora para certos autores as coisas já não se passem bem assim. A geografia também tem uma certa importância: por exemplo uma fotografia inglesa vendida nos Estados Unidos é mais barata do que em Inglaterra, tal como uma americana na Inglaterra ou em França...
Sendo a fotografia um múltiplo, o valor varia com o número de provas? Muitas vezes não há indicações sobre a tiragem...
J.C. - E mesmo quando há, em muitos casos não é uma informação fidedigna, porque se usa toda uma série de subterfúgios para ultrapassar a tiragem inicial, se são muito procuradas. Uma fotografia é impressa só dez vezes, mas depois podem aparecer outras tiragens mudando-se o formato, o papel, o processo... Embora haja excepções, não há relação entre o número de exemplares e o valor de uma fotografla. Claro que tem havido tentativas para aumentar o valor reduzindo o número de exemplares, mas se a fotografia não for muito boa não se vende e não é por causa de só haver quatro ou cinco que se torna mais valiosa. E acontece também o oposto. O caso típico é o do Ansel Adams com o Moonrise over Hernandez; ele deve ter impresso largas centenas de exemplares daquela fotografia, estava já farto e então começou a subir-lhe o preço, mas o que aconteceu foi que quanto mais o preço subia mais as pessoas queriam aquela imagem.
Mas há uma coisa que é muito importante: ser «vintage» ou não ser, e se uma fotografia é «vintage» tem mais valor. É uma fotografia que foi impressa mais ou menos na mesma alturae em que o negativo foi exposto (mas nem sempre forçosamente no mesmo ano), e que representa a concepção que o fotógrafo tinha da imagem quando carregou no botão. Mas também aqui há excepções: o Bill Brandt modificou consideravelmente os seus trabalhos ao longo do tempo, quanto ao formato, à técnica e à própria concepção da fotografia, e portanto uma prova dos anos 30 e uma dos anos 50 ou 70 são de facto fotografias diferentes, são ensaios ou são variações sobre o mesmo tema - mas mesmo assim as fotografias «vintage» são mais procuradas.
Qual foi a fotografia mais cara?
J.C. - A do Walker Evans (Portuguese House), que custou 4.400 dólares, um pouco menos de 700 contos, mas nesse caso não hesitei: estava determinado a comprar aquela fotografia, porque é rara - julgo que nunca apareceu para venda nos últimos oito anos, que é desde que me comecei a interessar pela fotografia - e era uma das que eu queria à partida. Aliás, não era esta que eu conhecia, mas uma outra, também da casa portuguesa, que está no livro American Photographs, e é um pormenor, um close up, ...dessa é que andava à procura, e entretanto apareceu esta que achei ainda mais bonita.
E existem fotografias que sejam únicas?
J.C. - Ser único é uma coisa que, de certo modo, vai contra o próprio espírito da fotografia, que é uma coisa para se multiplicar, democrática. Mas há talvez uma que veio da colecção de Michel Toumier, uma fotografia «vintage» do Bill Brandt que eu não conhecia naquela versão. Há com certeza fotografias «vintage» que são únicas, mas das quais há imagens recentes, por exemplo algumas da FSA, dos anos 30, porque então o fotógrafo fazia as fotografias, entregava-as e ficava só com uma ou duas para si, porque naquela altura não havia mercado.
Como é que a colecção deve ser continuada?
J.C. - Quis fazer uma exposição no fim do meu «mandato» para prestar contas ... para se ver o que foi feito e não ficar tudo no segredo dos deuses. A colecção, o que já existe, é uma espécie de árvore com muitos ramos e agora cada um pode fazer crescer a árvore em determinadas direcções - há muitas árvores que crescem irregularmente e não ficam com uma copa esférica. Aliás, quando comecei também não fazia ideia das direcções finais que a coisa tomaria. Claro que faz um certo sentido - e tinha de fazer porque foi uma só pessoa a comprar estas 300 e tal imagens -, mas outra pessoa terá certamente outras prioridades ou outros gostos, poderá entrar noutro tipo de fotografia, há muitas outras coisas...
Qual deve ser o destino da colecção, depois de mostrada?
J.C. - Compete à SEC decidir, e às diversas instituições interessadas; mas acho que a colecção deveria continuar, e que deveria ser visível, que há todo um trabalho de divulgação e de acessibilidade desta colecção que é necessário fazer. Sabe-se que a Casa de Scrralves está interessada em ter lá a exposição, mas é necessário mostrá-la em mais pontos do país, porque há muita gente, mesmo aquela faz e conhece fotografia, que nunca viu um Atget ou um Bill Brandt ao vivo, e há uma grande diferença em relação a vê-los nos livros.
Acho, também, que devia haver um sítio fixo porque me preocupa um pouco a própria conservação. Para tornar esta colecção viva é preciso um mínimo de espaço e ela tem de estar ligada a uma instituição que tenha também um mínimo de vida - o problema é que no nosso país os museus, ou a maior parte deles, não têm sequer condições para aquilo que já lá têm, quanto mais para acolherem outra coisa diferente... A Casa de Serralves, que já tem apostado na divulgação da fotografia, seria uma hipótese, ou o Museu de Arte Contemporânea, se o projecto for para a frente... Para a fotografia não é preciso muito dinheiro ou muito espaço, bastava uma sala onde isto pudesse estar bem acondicionado, mas uma sala onde se mostrasse regularmente parte da colecção, ou partes dela em articulação com coisas que podem vir do exterior. Gostava de ver isto a crescer do princípio, e para mim o princípio são as fotografias, são as imagens.
Acho que se começou certo; o passo seguinte é ter isto num espaço acessível, onde possa ser visto e estudado - pode ser um departamento ou uma secção de um museu -, e depois, a partir daí, quando houver uma dinâmica da própria colecção, de mostrar coisas e importar exposições de fora, de publicação de monografias, de constituição de um «corpus» e de formação de pessoal capaz, aparece naturalmente um museu. Criar agora um Museu da Fotografia era um disparate.
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