Agrada-me a extinção do Ministério da Cultura, ou antes, a sua redução a Secretaria de Estado - independentemente da escolha de nomes (não sei, não conheço) e do montante dos custos (os gastos da mudança de emblema e tabuletas não serão despiciendos).
É pouco o que na área da cultura em geral depende do (ex-)Ministério, e é bom que seja cada vez menos, se considerarmos o que é da competência dos cidadãos invidualmente (autores e públicos), das respectivas associações, das entidades regionais e locais, das empresas e fundações (do BES à Gulbenkian), dos outros ministérios - a economia, o turismo, os negócios estrangeiros (e não é só o Instituto Camões)... É improcedente e inconveniente, além de ser apenas ilusória, a ideia de uma tutela (ou direcção ou administração) governamental sobre a cultura entendida em sentido lato, como convém, e o que se pede à administração central é a gestão eficaz do que dela depende directamente: colecções e património à sua guarda, equipamentos, programas de apoio à produção, circulação e distribuição (incluindo em especial encomendas, aquisições, bolsas, patrocínios, etc).
Não se trata também de regulamentar o sector para além do que são os serviços mínimos (o depósito legal dos livros e a leitura pública, a classificação dos bens patrimoniais e dos espectáculos, etc). Aliás, é já essa a realidade actual, e, extinta a censura, não se aceita que a cultura em geral ou as artes sejam regulamentadas ou administradas pelo Estado e pelo Governo. O que tem a ver com as chamadas indústrias culturais, o turismo cultural e o significado da cultura para o turismo, a economia da cultura e o peso do sector dito cultural no PIB (que inclui todo o audiovisual, a comunicação e o entretenimento) não se incluem de facto nas capacidades e nas competências do MC e não são sequer interministeriáveis - excepto na franja estreita das responsabilidades administrativas directas. Tudo isso depende na realidade de iniciativas e regulamentações de outras entidades governamentais e locais. Todas as elocubrações sobre o 1% do Orçamento têm a ver com o mesmo equívoco.
Não foi só o orçamento do Ministério que se foi reduzindo até níveis que o impedem de exercer todas as suas responsabilidades próprias (e é bom que tenha sido forçado a ir-se desvinculando das responsabilidades alheias - esse caminho está por concluir). Foi também a grandiloquência do MC, a sua tentação de arbitrar gostos e representar "a Nação", que foi sendo forçada a moderar-se - mas esse foi um caminho positivo e ainda há muito a esperar dele. O carácter simbólico do MC, que se tem usado como argumento, já não correspondia a nada - e às vezes foi só uma penosa e comprometedora representação.
A crise, o desemprego, o crescimento exponencial do número dos que se consideram artistas (sem que cheguem a considerar-se candidatos a artistas), porque têm formação ou vocação ou ambição artística e a respectiva auto-estima, mesmo que não tenham o reconhecimento, têm favorecido a tentação assistencialista das intervenções públicas, a pretexto e por via do chamado apoio à criação. Neste campo há que introduzir distinções rigorosas entre o que são responsabilidades de apoio social e intervenção cultural. A concentração das bolsas no segmento dos jovens artistas é apenas um paliativo ilusório (prolongando extensas escolaridades, até alguns encontrarem o seu lugar como professores e desaparecerem como artistas?), e desvia os meios necessários para apoiar efectivamente a produção de quem tem provas dadas, ou seja, obra feita (e é aí que a encomenda, o prémio, a bolsa são essenciais para a concretização de projectos de fôlego, para a patrimonialização dos bens, para a ampliação da escala das obras até à dimensão "pública" ou à presença urbana, etc).
O MC não representa os artistas, nem os profissionais da cultura, nem existe para defender os seus interesses corporativos. Essa deriva em que entrou quando se verificou o falhanço do conceito e do objectivo político progressista de democratização da cultura, e quando se entendeu que o êxito do desenvolvimento cultural se mede mais em percentagem do PIB do que em qualificação dos públicos e da recepção, tem tido consequências, e desde logo a do risco da irrelevância do departamento (e também dos conselheiros junto da sede do governo...). Não existe para satisfazer ou seduzir os artistas, tal como a Educação não existe para os professores e a Saúde para os médicos e enfermeiros. Mas até essa comparação seria errada, porque não se pode pensar a Cultura (e a arte) como um serviço público de idêntica natureza - embora os organismos próprios do MC/SEC o devam prestar, e por vezes disso se esqueçam.
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