"A casa da água"
(Expresso, Cartaz, 12 Maio 1990, p. 12)
"A Casa dos Suaves Odores", Galeria Cómicos/Luís Serpa, 3 Maio - 2 Junho
Recentemente, a parede mais extensa da galeria era ocupada por um rectângulo negro: Gerhard Merz referia uma pintura, reduzida ao seu próprio conceito, ao espaço arquitectónico (particular e universal). Cabrita Reis ocupa o mesmo espaço com uma extensa parede construída em placas de estafe e interrompida por relevos que sugerem as bicas de uma fonte monumental: a peça intitula-se A Casa dos Suaves Odores e é acompanhada por uma série de desenhos onde se sublinha a referência à água.
Entre as duas exposições notar-se-á a proximidade de certos dados correntes em alguma da produção artística actual: a criação «in situ» (respondendo a dados espaciais concretos); a escala monumental (vocacionando os trabalhos para as colecções públicas ou para a simples permanência dos registos fotográficos); a dimensão arquitectónica, na qual se invocam e anulam os valores específicos da pintura e da escultura pela criação de objectos irredutíveis a qualquer dessas artes. É ao cenário, ao espaço teatral, que mais directamente se podem associar tais construções, divergindo nos dois casos citados o carácter essencial da «representação». Interrogação formal num, evidência do mistério das imagens e dos sentidos no outro.
A instalação de Cabrita Reis pode constituir-se como um objecto insólito se for associada apenas às suas últimas obras vistas em Lisboa; no entanto, depois de «A sombra na água» (Cómicos, 88) outras «Casas» foram já expostas no ARCO de Madrid (a Casa da pobreza), no Porto ( ... da serenidade, Galeria Pedro Oliveira), em Barcelona ( ... da família), e outras ainda são actualmente apresentadas em Sevilha.
À ideia de uma mutação brusca poderá suceder então a compreensão de um novo momento de um idêntico projecto, no qual, para além das substituições operadas quanto aos materiais e às referências figurativas, se estabece, com uma maior radicalidade conceptual, a passagem desde a criação de objectos que devem marcar um qualquer espaço para a construção de lugares.
Nestes últimos, à depuração patente na pobreza dos novos materiais (madeira e estafe brancos, depois do bronze negro e do ouro anteriores) corresponde um aproximável desejo de excesso manifesto na desmesura das escalas; e uma semelhante afirmação da carga metafórica da criação artística permanece como essencial continuidade. Essa carga, transferida embora do objecto para a construção, é sempre o efeito da presença de uma intimidade investida como enigma, isto é, que se expõe e simultaneamente se nega como expressão de uma subjectividade demiúrgica, para convocar, já não como «sombras», outras dimensões simbólicas que permanecerão em suspenso num espaço dramático, lugar colectivo de acção, «casa» a habitar.
1990,
03-27-93
Zutzu
Pedro Cabrita Reis tem desde o passado sábado uma obra instalada num espaço exterior de Lisboa. A encomenda é do Restaurante Zutzu, inaugurado em Janeiro sobre o mercado da Rua de São Bento (R. Nova da Piedade 99), e "as alquimias da cozinha" estiveram, naturalmente, na base da sua concepção: é um grande painel rectangular e vertical com cinco por três metros, cuja superfície plana, em cobre, é animada por autênticos tachos de diferentes dimensões, formas paralelipipédicas e tubagens, sempre igualmente em cobre, ou também de borracha preta no caso de alguns tubos que estabelecem ligações entre os objectos.
A obra (de "arte pública", para usar uma terminologia em voga, mas pouco precisa) eleva-se a partir da porta do restaurante - que foi desenhada, tal como o seu interior, mobiliário e serviço de louças, pelos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira - até se destacar sobre o início do telhado. Dotada de alguns pontos de luz própria, esta escultura de parede, monumental, ganha assim uma presença diversa de dia e de noite.
Instalado no local no primeiro dia de primavera, o trabalho de Cabrita Reis será substituído no início do Outono por outra obra da autoria de Julião Sarmento, de acordo com o projecto do proprietário do restaurante, Fernando Gonçalves, que esteve anteriormente ligado ao São Jerónimo e ao Belém Clube-Museu: a rotação das peças deverá seguir o seu curso bi-anual e todas elas serão realizadas com vista à posterior desmontagem e reutilização noutros locais. "O destino das obras não será uma garagem", garante Fernando Gonçalves, cujas intervenções mecenáticas se têm alargado ao patrocínio de exposições.
Quanto à peça, pode dizer-se que cumpre eficazmente a função de criar um acontecimento sobre uma fachada de certa pobreza arquitectónica, não se limitando a constituir um simples elemento decorativo. É um objecto de forte visibilidade, que interrompe a parede sem excessiva agressividade, e cujos elementos referem sem complexos a actividade que se desenvolve no interior, ao mesmo tempo que prolongam o vocabulário metafórico de Cabrita Reis, depois de outras obras onde explorou as ideia da casa ou o interior doméstico, a água e a sua circulação, ou o hospital e a presença da morte.
Sobre o restaurante, acrescentar-se-á que não se tem dedicado apenas a cuidar do cenário, e que as incursões feitas se revelaram igualmente satisfatórias. Mas essa é matéria para outro especialista.
1994
"Convocar o desconhecido"
"A Sala dos Mapas": estabelecer o lugar do homem no Cosmos, construir o espaço da dúvida
(Expresso, Cartaz, 7 Maio 1994, p. 18)
«A sala dos mapas (Atlas coelestis III)», Museu José Malhoa, Caldas da Rainha, 30 Abril -
No ÚLTlMO Arco, em Madrid, pôde ver-se a primeira peça de uma nova série de Pedro Cabrita Reis, intitulada «Atlas coelestis»; ainda este mês, na grande mostra antológica que o Centro de Arte Modema lhe dedicará, a partir de dia 24, ver-se-ão duas outras peças inéditas da mesma série, e uma última surgirá no fim do ano, de novo em Madrid, no mostra colectiva internacional que Dan Cameron apresentará no Museu Rainha Sofia.
«A sala dos mapas (Atlas coelestis III)», que se inaugurou no passado sábado no Museu das Caldas, é um elo nessa cadeia de instalações disseminadas por diferentes lugares, por vezes efémeras e produzidas para lugares específicos; em Outubro, esta mesma obra constituirá a representação oficial portuguesa na Bienal de S. Paulo.
As sete mesas de desenho são mais altas do que convém à escala humana (o que a fotografia, ao optar por um elevado ponto de vista, não reproduz com fidelidade); distribuídas num espaço fechado mas directamente iluminado, onde o sol se reflecte nas placas ovais de vidro translúcido e num só vidro transparente penetrado por (sete) tubos de cobre e borracha, elas evocam um lugar de trabalho onde se buscam saberes desconhecidos. Os mapas serão celestes, as arquitecturas dos desenhos que não vemos procurarão distâncias entre o homem e os mistérios do espaço, medirão relações cósmicas. «Se o corpo permaneceu, o olhar mede agora lugares que já nem os olhos podem saber e que, nestes nossos desenhos, se foram transformando em incógnitas algébricas, em vertiginosas matemáticas. Abstracções. Oriundas de ecos que nos vão chegando de máquinas perdidas para lá de onde antes apenas vislumbrávamos estrelas» - escreve Cabrita Reis no catálogo.
O sentido da referência astronómica que se esboça neste lugar pobre em que a ciência presumívelmente se elabora dilata-se afinal à busca humana de uma ordem do mundo e da vida, que pode ser também expectativa de um Deus ou especulação alquímica. As arquitecturas precárias de Cabrita Reis, construções em torno dos arquétipos da casa, do espaço habitado, da mesa, dos lugares da vida e da morte, estabelecem-se como metáforas de todas as interrogações. É com questões sobre o sentido das coisas e da existência que o artista trabalha, retomando uma gravidade essencial do lugar da arte na sociedade. Criando espaços onde o olhar e a presença física do espectador são convocados a um íntimo exercício de dúvida.
Entretanto, não é irrelevante que um museu vocacionado para a arte do século XIX se abra às criações contemporâneas.
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