Arquivo, Diário de Notícias, 9 Abril 1982
O 2º de 4 artigos sobre a exposição "Anos 40" (edição anotada em: academia.edu...)
Arte portuguesa dos anos 40
«A geração da ruptura»
«Numa abordagem cronológica da década de 40, por três acontecimentos artísticos, de bem diverso relevo, é necessário começar para a compreensão do que irá acontecer:
A Exposição do Mundo Português, onde participam os mais oficiais dos modernistas, numa acentuação do seu pendor decorativo - compromisso de Ferro com tendências menos cosmopolitas que o pressionam do interior do regime, ela prenuncia a involução do gosto em direcções nacionalistas e folclóricas que o responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional tentará equilibrar até 45, para ceder o lugar a outros em 49;
A exposição de António Pedro e António Dacosta [com Pamela Boden, na Casa Repe], primeiro acto com sequência coerente do surrealismo em português - de algum modo a resposta à euforia de Belém e o afirmar de um mundo em crise, embora sem ruptura com os salões oficiais onde o primeiro já participara em 39 e continua presente em 40, 42 e 44 e onde o segundo recebe o Prémio Souza Cardoso em 42 (a eles se juntou Cândido Costa Pinto, também autor de uma pintura surrealista e metafísíca, mais hábil e também mais superficial);
A retrospectiva de Abel Salazar na SNBA, a que se pode associar a presença de um quadro de Portinari no Pavilhão do Brasil em Belém, por ambos interessarem aos escritores que preconizavam uma pintura de protesto polítíco-social.
Nesse ano de 1940, apogeu do regime, a vontade de ruptura, estética e ideológica, é ainda protagonizada por homens de gerações anteriores que se manifestam contraditoriamente, uns presentes nos salões de Ferro, outro preso a práticas pré-modernistas.
De 1941 notaremos a retrospectiva de Almada Negreiros, cujos «Trinta Anos de Desenho» o confirmavam numa posição única entre os modernos: a sua obra não é de passiva continuidade de uma maturidade anterior, nem se deixa reduzir pelos seus compromissos decoratívos. Os dois grupos de pinturas murais para as Gares do Tejo voltarão a demonstrá-lo em 43-45 (Alcântara) e 46-49 (Rocha), como sucederá aliás durante mais duas décadas de vivíssima intervenção críadora.
Do mesmo ano são tambem os desenhos de Álvaro Cunhal para a edição de Esteiros, que com alguma doutrinação sua e alheia vão contribuindo para o fermentar da atenção aos temas da pintura.
A «Terceira Geração»
Finalmente em 42, o que José Augusto França designou por terceira geração do modernismo nacional dá a primeira notícia de si na constituição de um grupo do estudantes que se encontra no Café Hermínius (desaparecido) e completa as primeiras experiências pessoais com a prática de um dadaísmo juvenil. Aí começaram Fernando de Azevedo, Mário Cesariny, João Moniz Pereira, Vespeira, Cruzeiro Seixas, António Domingues e também Julio Pomar, Pedro Oom e outros. Num quarto alugado como atelier, cinco deles fazem uma exposição no ano seguinte [aliás, logo em 1942] - Vespeira, Azevedo, Oom, José Gomes Pereira e Pomar (este vende um quadro a Almada que promove a sua apresentação no Salão do SPN [de 1942]). Ignorados na cronologia do catálogo da Fundação, grupo e exposição assinalam um momento de viragem e provam a origem e o itinerário conjuntos do neo-realismo e do surrealismo que mais tarde se irá organizar.
Entretanto, num paralelismo notável, outros jovens se agrupam no Porto, em 43, e rapidamente se afirmam em exposições colectivas onde surgem ao lado de artistas mais velhos como Dordio Gomes, Augusto Gomes, Abel Salazar, Júlio, Cândido Costa Pinto e até Carlos Carneiro. São eles Fernando Lanhas, Júlio Resende, Nadir Afonso, Arlindo Rocha, Amândio Silva, Rui Pimentel, Vítor Palla e Júlio Pomar, ido de Lisboa. De 44 é a primeira Exposição Independente, a que se seguem mais oito até 50, numa experiência descentralizada (Porto, Lisboa, Coimbra, Leiria e Braga), sem o sentido militante que virão a ter as Gerais (a partir de 46) nem os limites formais impostos no SPN-SNI, fechado ao abstraccionismo que nesse grupo teria as suas primeiras expressões geométricas.
Lanhas tem composições abstractas desde 42 e é em 44 que realiza o célebre O2-44, que ficou como marco destes anos e de novas direcções abertas. Resende, o outro nome decisivo dos Independentes, inicia então um percurso pessoal de um expressionismo iluminado por uma linguagem moderna, de próximas têndências geométricas.
Os sentidos das exposições promovidas pelo grupo do Porto são, porém, plurais e é também nelas que se afirma claramente o realismo de Pomar e de outros. Entretanto, uma significativa aproximação entre os de Lisboa e do Porto se fazia em 1945 num suplemento de um diário nortenho («A Tarde») onde escreviam Pomar, Cesariny, Vespeira, Oom, Rui Pimentel, Vítor Palla, etc., nela se formulando esteticamente o protesto político-social que lhes interessava, a que se chamou o neo-realismo por importação do rótulo do terreno literário.
As Exposições Gerais de Artes Plásticas iniciam-se em 46, com directo empenhamento do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Dominam-nos o mesmo neo-realismo, embora participem artistas tão diversos como Abel Manta, Abel Salazar, Carlos Botelho e Falcão Trigoso, também Pedro e [Cândido - correcção] (apenas nos dois primeiros salões) - Azevedo, Pomar, Vespeira, Moniz Pereira e igualmente Manuel Filipe e Pavia representavam, entre outros já citados e não, os que tinham aceite «a realidade social como centro de partida e finalidade a atingir» (F. Azevedo, 1947).
Nesta ampla unidade intervirão até ao fim da década outros artistas como Sá Nogueira, João Abel Manta, Skapinakis e também Lanhas e José Júlio; em 48 os primeiros surrealistas e os outros que então se lhes juntam já não alinham na mesma «unidade»; em 56 encerra-se este ciclo de exposições. Fundamental é ainda notar que muito poucos dos expositores voltariam a apresentar-se no SNI.
Surrealismos diversos
Voltando com a cronologia a 47, tem de assinalar-se que vários dos neo-realistas, atraídos pela figura de Pedro, então regressado dos microfones da BBC, se organizam como surrealistas, também por diligência de Cândido que contactara com Breton em Paris. O Grupo Surrealista de Lisboa começa por o expulsar por motivos políticos (exposição no SNI). Além de António Pedro, que no ano seguinte deixa a pintura, fazem parte F. Azevedo, António Domingues, Vespeira e Moniz Pereira (no termo da passagem de todos eles pelo realismo), ainda Alexandre O'Neil, José-Augusto França e Cesariny; este ultimo sai logo para formar um grupo paralelo, onde avultam os poetas António Maria Lisboa, Oom, Mário Henrique Leiria e também Cruzeiro Seixas. Dacosta fora para Paris e interrompeu a sua pintura. Em 49, Janeiro, o primeiro grupo realiza uma exposição, e com ela se extingue como movimento. Em Junho é a I Exposição dos Surrealistas, os quais reincidem no ano seguinte e se manterão activos por mais uma década, em torno de Cesariny.
A cronologia que aqui se termina é um intencional confronto com a exposição «Arte Portuguesa dos Anos Quarenta». A que há a acrescentar, por enquanto, o seguinte:
O surrealismo em Portugal não é uma actividade que se prolongue com continuidade e coerência ao longo dos dez anos em questão. Numa primeira fase bem demarcada está entregue à pintura de Pedro, Dacosta e Cândido, que o praticam de forma independente e pessoal; depois, por evolução desde o neo-realismo, os de outra geração se constituem como movimento colectivo, logo divididos à procura da sua ortodoxia, a qual será já a do «segundo folego» do surrealismo internacional. Nesta exposição, os dois momentos surgem agregados, preferindo o catálogo tratá-los entre o neo-realismo de 45 e o abstraccionismo de 44 (aliás, colocando antes das páginas dedicadas aos dois pioneiros - que o foram quinze anos depois do «Primeiro Manifesto» - outras em que se versa o belíssimo «cadáver esquisito» realizado em 48 no âmbito do Grupo Surrealista de Lisboa). O capítulo respectivo recua de 48 para 46 (Pedro) e depois para 40 (Dacosta). Mais significativo ainda é o benefício concedido ao grupo em que participam Azevedo e França.
Falta a conveniente consideração das Exposições Independentes como ocasião decisiva de algumas das transformações ocorridas na década - ignoradas na cronologia, citadas por França, coube-lhes constituirem a primeira grande alternativa ao binómio SNI-SNBA e serem também o palco da primeira, e logo avultada, afirmação do abstraccionismo. É também esse o lugar em que se haveria de tratar de Júlio Resende (Prémio Sousa Cardoso do SNI em 49 e retrospectiva no mesmo ano e local), pintor cuja ficha não consta apesar de ser na década de 40 dos com maior direito a ela.
Por último, passando sobre a localização do neo-realismo num espaço fechado na zona média da Galeria da Gulbenkian, quando o movimento se manifestou vivo até 53 (ou 56?), é possível dizer que a ele coube a mais apressada selecção dos seus testemunhos, perdendo-se, de igual modo, a oportunidade de tentar, agora, redefinir o que foi. Problemas em aberto: terá havido em comum apenas uma mesma consciência política, sendo desde logo plurais as práticas dos seus artistas?; foi uma pintura de juventude de pequenos e grandes pintores, tocada pela urgência da intervenção num contexto histórico bem preciso? Entre o academismo miserabilista de Machado da Luz e o importante quadro de Resende (Caminhantes) com a sua moderna estruturação plástica, o que resta de comum senão a pista fugaz da figuração?"
A seguir: Uma década de dez ou doze anos
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