A paisagem. Sem título...
...ou com um título comum à exposição, "O Abraço de Séraphine", o qual parece acrescentar uma sugestão ficcional ao encontro visual imediato com a imagem do convite e, por aí, com a identificação de um espaço "natural" que se diria "abstracto" porque não é reconhecido nem está certamente representado - uma paisagem inventada que está presente em pintura, como pintura. Materialização, presentificação da ideia de paisagem, ou talvez da ideia de natureza - e não, parece-me, ilustração do género Paisagem, "reflexão" sobre a paisagem.
O título é o de um texto do autor que acompanha a mostra e vejo depois que faz referência explícita ao filme Séraphine, de Martin Provost, Atalanta Filmes, 2009. Percebo só mais tarde ainda que se trata de um filme sobre a pintora naif e/ou outsider Séraphine Louis ou Séraphine de Senlis (1864-1942 - descoberta por Wilhelm Uhde em 1912, internada como louca em 1932), filme premiado com 7 Césares, que não vi. Por aí - título, texto do pintor e referência ao filme sobre uma pintora - abre-se um outro caminho de relações e interpretações, juntando a eficácia visual imediata da pintura-paisagem que se expõe a sucessivas "leituras". Não aparece uma "chave"; é um caminho possível a percorrer com o artista.
A atracção do convite confirma-se por inteiro na visita à mostra, que é contida no número dos quadros, "apenas" seis, mas com importantes variações entre si e de razoáveis formatos, presentes na galeria com mais dois objectos construídos e pintados, de parede e de chão, onde a pintura abandona o suposto lugar da janela (ou ecrã?...) para ser exercício de invenção e humor, brincado diálogo com outras práticas ou interrogação sobre as suas possibilidades: uma caixa horizontal onde o azul pintado é literalmente "fundo" e é céu ou água, e um dispositivo instalado onde a paisagem está já inscrita no pincel largo.
Perdi as anteriores exposições de Rui Algarvio, mesmo a anterior em Lisboa (2008). Trata-se visivelmente de uma perda, a tornear pela procura de informações fotográficas.
Comecei por ver as telas expostas sem a condução inteligível de um título, sem o texto do autor (lido depois), sem a ponte para o "caso" perduravelmente perturbador da referida Séraphine. A informação posterior não as justifica nem modifica, apenas prolonga e complexifica a impressão que elas causam por si mesmas e de imediato, com uma forte eficácia visual que nos prende à imagem e à materialidade pictural que a constitui. O que nelas parece acontecer é a presença inseparavelmente simultânea da referência a um espaço natural e da afirmação ou demonstração dos meios da pintura, circulando a percepção dos dados presentes, indisciplinada e sucessivamente, por entre os elementos visuais da paisagem (céu e terra, água e vegetação, ordenadamente distribuídos - neste caso) e os elementos e processos da pintura (a pincelada visível ou diluída na superfície de cor lisa, o gesto e a mancha, a matéria da cor). Tudo isso que está a acontecer, em movimento, enquanto observamos a tela (e aconteceu durante o seu fazer), não é a mera continuação de um género ou a vontade de resistência à sua condenação, ou a "reflexão" sobre as suas condições de possibilidade conceptual, ou o exercício despreocupado de uma tradição, ou a recriação do mundo "natural" depois do abstraccionismo. É isso e parece ser algo mais ambicioso.
Ao ver as obras associadas a um título que não entendi (sem reconhecimento de lugares eventualmente representados e sem seguir a pista do filme e da anterior pintura de Séraphine, cujas composições florais também não aparecem referidas), tomei-o como uma pista por onde se desviasse a atenção prestada à representação em proveito de uma disponibilidade para o imaginário, trocando-se a descrição de um lugar pela criação de um lugar ficcional, um espaço de histórias. Sem inviabilizar essa hipótese, a escrita de Rui Algarvio e a série de referências que ela transporta constroem uma rede de pistas muito mais densa onde se invoca e comunica tanto a experiência sensorial da paisagem, vivida pelo pintor, como a reflexão em acto sobre a história e a prática da pintura. Vai-se tornando para o observador uma experiência cada vez mais cativante.
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Na Galeria Monumental, Campo dos Mártires da Pátria, 101. De 30 de Junho a 30 de Julho de 2011.
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Por curiosidade, fui procurar pistas anteriores pelo arquivo. E só encontrei duas muitos distantes referências:
23 Dez. 2000 – nota: RUI ALGARVIO Arte Periférica
Foi da Cidade do México que vieram as telas e o título da mostra, «Guadalupe», a Virgem padroeira nacional cuja imagem aparece discretamente impressa e multiplicada infinitamenre, amalgamada
no que podem parecer só aleatórias aplicações de cor. Trata-se da primeira individual de um jovem artista (n. 1973) formado pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa que no México faz actualmente um mestrado em pintura. Os quadros adoptam estruturas geométricas de composição formal que lembram em especial (entre outras eventuais referências pontuais) o sistema de barras e de campos de Sean Sculy, atribuindo-se-lhes, no entanto, um sentido referencial que é aqui duplamente determinado pela localização geográfica e pelo que seria uma alusão à multidão e à sociedade massificada (vectores sugeridos por títulos como «Romaria» ou «Sol e Guadalupe»). Conforme varia a distância do observador face aos quadros, impõe-se a visibilidade genérica da construção compositiva, acentua-se a densidade matérica e a variabilidade lumínica das faixas e campos de cor, decifrando-se depois, por último, a mancha informal como repetição da tal pequena figura repetida, de uma legibilidade aproximativa. Diferentes direcções e intenções de trabalho ficam assim em aberto.
e antes, na colectiva escolar:
Finalistas da Fbaul, Fundição de Oeiras, de 5 Dezembro 1998
É no cenário construído para a colectiva «Anatomias Contemporâneas» que se exibe esta exp. de finalistas da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, por iniciativa dos próprios mas apresentada por um prefácio dos docentes de «Pintura III» Lima Carvalho e Carlos Vidal. Sobre o equívoco da designação Pintura recobrir práticas de diferente tipo («obras instalativas e/ou performativas») e o absurdo de o mesmo «plano de estudos» ser cumprido por aspirantes às «carreiras profissionais» da criação livre e da docência (sendo todos eles finalistas e expositores), paira ainda o logro maior da sobrevivência da designação «Belas-Artes». O que não impede que na multiplicidade dos objectos expostos se reconheçam ou descubram, por entre visíveis dependências nacionais (nota-se que a informação disponível é pouca) e forçadas aplicações disciplinares, numerosas obras que despertam interesse imediato ou expectativas. É o caso dos trabalhos mostrados por Rui Alexandre Macedo, Mónica S.O.C. e Manuel Caeiro, curiosamente reunidos num primeiro espaço, com obras de próxima orientação, por José Lourenço, Cláudia Simenta, Isabel Barreira, Delmira Espada, Marta Ramos, Rui Algarvio, Pedro Zamith, Jorge Lancinha, José Baptista Marques, Natacha Marques, Rogério Alves, Fátima Sampaio, António Cavaleiro, Isabel-le Faria... Uma longa lista que sublinha o interesse da mostra. [E aqui pode-se sublinhar a sobrevivência e a afirmação de um largo conjunto de nomes - exactamente dez. ]
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