Diário de Notícias, 14 Abril 1982 (pág. 11)
Anos 40 na Fundação Gulbenkian
«Os sentidos de uma década»
Contra as convenções da cronologia, à margem do que sucede em todos os sectores que na grande exposição interdisciplinar da Fundação Gulbenkian se não dedicam às artes plásticas e em oposição a outros conhecidos ensaios de periodização, um acontecimento de 1952 foi escolhido para encerrar o itinerário através dos anos 40 em Portugal. Não se tratou de propor uma década de 13 anos - apenas um facto isolado, uma exposição, foi transplantado do seu tempo para surgir como conclusão e charneira.
«Prolonga-se a década pela exposição de Janeiro de 1952 na Casa Jalco, que pode considerar-se duplamente uma consequência do movimento surrealista dos anos 40 e um ponto de articulação com a década seguinte», Fernando Azevedo o diz no catálogo. E José-Augusto França acrescenta: «O últitno acto da década deve ser marcado pela exposição que» Vespeira e F. Azevedo «e mais outro, entretanto aparecido, Fernando Lemos, realizaram»,... a qual «assegurou definitivamente a posição da nova geração que o imediato após-guerra vira nascer»; «exposição polémica,... ela foi, como tal, o último acto de uma época - ao mesmo tempo que anunciava um novo tempo na arte portuguesa».
Assim se pretendeu, segundo França também explica no catálogo, apontar um sentido preciso na evolução da pintura portuguesa da década:
«O imaginário surrealista passava ali de uma figuração antropomórfica violentada para uma não figuração que tomava caminhos de abstraccionismo lírico ( ... ) - e, daí em diante, a pintura portuguesa iria evoluir nesse mesmo sentido, enquanto uma linha abstracta-geométrica se esboçava também, com Fernando Lanhas.»
Fernando Lanhas, O2-44 (Violino). Exposto em 1945 em Lisboa, Exp. Independente no IST. Então Col. do Autor; act. Museu do Chiado
Figuração surrealista - abstracção. Esse seria o trajecto, a viragem, a luta travada pela vanguarda nos primeiros anos da década de 50, para J.-A. França protagonizada nos três pintores que então mais lhe interessavam e que agora de novo nos propõe nas mais destacadas representações da retrospectiva, a seguir a Almada. Apesar de em 1935 uma outra pintora portuguesa ter trazido a Lisboa a nova pintura abstracta que já então, em Paris, ajudava a inventar; apesar de em 1944 Lanhas ter levado (e não só esboçado) o seu rigoroso itinerário pessoal até uma radical abstracção geométrica, feita no Porto e a par do que em 46 iria surgir nos salões das «Réalités Nouvelles», também em Paris; apesar de ser a partir de 1952 que ganha segura dimensão colectiva (e por responsabilidade da Galeria de Março, dirigida por França) a vertente abstracta da nossa jovem pintura.
O que está em causa é, primeiro, a sobrevalorização de uma exposição e de três pintores, mesmo que sejam dos mais interessantes de todo este período, e o fazer depender deles o «assegurar definitivo» de toda a sua geração. Depois, uma forçada identificação do sentido da sua particular evolução, sinalizada a posteriori, com um eventual sentido geral da sucessão das vanguardas (o que se diz sabendo-se das relações entre o automatismo surrealista e a «Action-Painting», e também da capacidade de adaptação então revelada pelo surrealismo para se aproximar da abstração lírica).
Por último, está em causa um efeíto de ocultação da situação realmente vivida em Portugal em 1949, num final da década caracterizado por uma simultaneidade de orientações em aberto e de acontecimentos de comum modernidade. É que, se é possível ao crítico propor como determinante uma particular leitura, importa que o historiador dê testemunho de uma situação e que a interpretação se não substitua, ou antecipe, aos factos.
O fim dos anos 40
Em 1949, o panorama era inequivocamente dominado pelas Exposições Gerais de Artes Plásticas, onde por sua vez predominavam as manifestações do chamado «neo-realismo», em exacta contemporaneidade com os debates que em Paris se travavam em torno do realismo socialista. Sob uma notória unidade de propósitos, primacialmente política (foi o ano da candidatura de Norton de Matos), diferentes procuras pessoais já nele se afirmavam. Entretanto, quase toda a pintura viva era tocada pela temática social, dos neo-realistas a Almada e outros da sua idade, e também aos surrealistas, como é natural.
Do lado oposto, António Ferro chegava ao fim das suas tentativas de conciliar a arte moderna e o regime, recusado pela generalidade dos novos e pressionado pelo conservadorismo daquele - fez nesse ano uma retrospectiva dos premiados nos seus salões do SPN-SNI e conseguiu ainda acrescentar dois nomes fundamentais à respectiva lista: Resende e Lanhas, menos empenhados no confronto ideológico, em parte por virem do Porto.
No mesmo ano, Almada Negreiros terminava os frescos da Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos, provocando um certo escândalo entre as autoridades pela dureza pós-cubista da estilização, de um decorativismo menos idealizado e de algum modo próximo dos temas realistas.
Numa marginalidade acolhida por condenações várias e efectivo escândalo do público realizaram-se as duas exposições surrealistas. À maior qualidade plástica do grupo de Vespeira e Azevedo (e França) respondia a importancia poética mais assinalável nas intervenções do grupo de Cesariny, o qual conheceria também uma maior longevidade nas suas contribuições.
(Para o entendimento da presente exposição dos anos 40 conviria recordar, a propósito, a persistente guerrilha entre os dois agrupamentos e os episódios ligados às várias tentativas de ambos para se fazerem reconhecer externamente como legítimos representantes nacionais do movimento.
A revalorização do lugar do surrealismo nesta década - um dos objectivos estimáveis dos organizadores... mesmo que à custa de polémicos desequilíbrios - é aqui inseparável de uma inaceitável tentativa de menorização do grupo concorrente.)
Tentando ainda propor um sintético balanço da década de 40, mais do que qualquer sentido único, diríamos que Almada demonstrou uma brilhantíssima capacidade de ir actualizando as suas linguagens; que Pedro produziu uma obra de importante significado poético que não chegou a ser grande pintura; que vários jovens pintores se revelaram nesses anos, como Pomar, Resende ou Lanhas, e também Hogan, Vespeira, Azevedo e Cruzeiro Seixas; que alguns pintores mais velhos prosseguiram percursos já antes fixados nos seus limites, como Botelho, Júlio ou Bernardo Marques; e, genericamente, que neste período se recuperou a possibilidade de acompanhar a evolução dos gostos onde eles se definiam, pondo-se fim a um isolamento que marcara pelo menos as décadas de 20 e de 30, mesmo que cortado por algumas experiências de emigração bem sucedida. Tal recuperação fazia-se, como era imperioso, também através de um corte político e ideológico com o salazarismo, e pagando-lhe o preço.
A seguir: O contexto internacional
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