Diário de Notícias 16 Abril 1982
Exposição "Anos 40" na Gulbenkian
«Duas ou três lacunas»
Ao restabelecimento de relações próximas entre os artistas portugueses e a arte contemporânea, que nos parece marcar decisivamente a década de 40, articula-se a consideração de mais alguns pontos importantes relativos à exposição apresentada na Fundação Gulbenkian. (Ver «DN» de 8, 9 e 14).
Nada ou muito pouco se pode perceber dela (e em particular é necessário colher a noção da menoridade relativa de grande parte do que se expõe), se, simultaneamente com as obras apresentadas, não se fornecem as chaves que orientaram as evoluções registadas. Já que se fala em menoridade, há que precisar de imediato a não convergência da apreciação com o comentário de Salazar colocado à entrada da Galeria - «Agrada-me tudo o que é belo e inteligente e lastimo que Portugal seja neste momento tão pobre no campo das artes» (1952) -, uma confissão de derrota que é de reter. A procurar-se para o caso a autoridade de uma citação, esta seria tirada a António Pedro, um ou dois anos depois: «Nós, é claro, em Portugal, não somos grandes pintores. Andamos aí a pintar e faz-se o que se pode: Uns muito mal, outros menos mal e outros melhorzinho».
Voltando às tais chaves, pensamos que seria necessário ir buscá-las fora para esclarecer a década de cá, quer através de uma elucidação crítica que no catálogo não é feita, quer em informações cronológicas, quer, preferentemente, por meio da apresentação de alguns exemplos maiores (e não era difícil fazê-lo graças a projecções ou ao vídeo).
Não se justifica alongarmo-nos aqui em demonstrações, mas haveria que dar a saber que o surrealismo da nossa segunda geração surrealista remete ora para o «segundo fôlego» do movimento, a seguir à edição de 1945 (Brentano's, USA) de Le Surréalisme et la Peinture, prontamente conhecida, ao regresso de Breton a Paris (46) e à grande Exposição Internacional do ano seguinte, ora para a «História» já então compendiada por (Maurice) Nadeau. Ou que o «Manequim» de Vespeira, exposto em 52 (e uma das felizes descobertas, como as fotografias de Lemos, para quem não os viu nessa data), prolonga os que eram propostas na Exposição Internacional do Surrealisrno de 1938.
Quanto ao neo-realismo, que buscava as suas influências no muralismo mexicano, em Portinari e nalguns realistas americanos, ele acompanhava, pelo seu fervor militante e pelo sentido da intervenção estética, os passos que em Paris também se davam antes e depois da Libertação: Picasso aderiu ao PCF em 44 e desenhava pombas da paz e retratos de Stalin; o mesmo, com Leger e Matisse, expunha ao lado de realistas socialistas como Pignon ou Fougeron, mais conformes à doutrinação de Jdanov. Também por aí o estalinismo aplicado às artes e aos povos assistiu à entrada da década de 50, embora mais claramente que entre nós outros artistas prosseguissem oríentações alheías a tais debates.
Uma pintora portuguesa
Entre eles, num lugar de primeiro plano em vias de ser plenamente reconhecido, estava uma pintora portuguesa, Maria Helena Vieira da Silva, partida de Lisboa aos vinte anos feitos em 1928.
Qual é o seu lugar na «Arte Portuguesa dos Anos Quarenta»? O de primeira figura, na nossa opinião, mesmo que formada em França e nome central da «Escola de Paris».
Em 1935 instalou-se por um ano em Portugal e aqui expôs. Em 39 regressou devido à guerra, ganhou então um prémio pela decoração da montra de uma cutelaria (em 40, prémio SPN?), mas decidiu instalar-se no Brasil. Só em 47 e sempre com Arpad Szenes, se radicou definitivamente em Paris. Não são no entanto estes dados biográficos, irrelevantes, nem mesmo a presença de Lisboa na sua pintura, que nos movem. E não é também a naturalização francesa ganha em 1956 que nos demove.
Vieira da Silva é uma pintora portuguesa e a única razão para o ignorar só pode ser o facto de ter sido a primeira artista, depois do caso brevíssímo de Amadeu de Souza-Cardoso, a criar uma dimensão internacional - como se nos condenássemos a contar apenas com segundas figuras. Sem qualquer ponta de nacionalismo, Amadeu é um pintor português e continuaria a sê-lo mesmo que não tivesse voltado para fugir à Grande Guerra e a seguir aqui morresse de pneumónica; como é a Lourdes de Castro do grupo KWY de Paris (1961), ou Paula Rego em Londres. Ou, antes, Mário Eloy na Alemanha, Viana na Bélgica e Francisco Smith em França.
Se é certo que Vieira, como diz José-Augusto França, foi «alheia ao andamento da arte portuguesa na qual, historicamente, nunca se inseriu», não é verdade também que aos artistas portugueses não era alheio o andamento da pintora? E não disse Almada, falando pelos melhores da sua geração, «nós somos de Paris»?
Uma última palavra para referir como é grave que continue há vários anos sob sequestro judicial a colecção de Jorge de Brito, representada na Gulbenkian por uma reprodução fotográfica, uma vez que a ela não é possível ter directo acesso.
Tratando-se, talvez, da maior e melhor colecção neste domínio, tal situação tem vindo a afectar sucessivas retrospectivas. Aqui se expressa o apelo a que a mesma limitação não venha a pesar sobre a exposição que a Fundação Gulbenkian virá a dedicar aos anos 50 (e que segundo informações que não foi possível confirmar com total segurança teria sido já encomendada ao crítico de arte Sílvia Chicó*) - tornando possível que então se assinale o notável papel desempenhado por esse coleccionador de gosto, que, para sossego de algumas consciências se informa, começou a sê-lo como bancário. Mas essa é outra história, a da formação de um mercado de arte moderna, que não pertence a esta década de 40 e será ainda antecedida pela intervenção decisiva a partir de 56 da Fundação Gulbenkian.
Essa história não está feita. Importa acrescentar, por isso, uma outra citação que ajudará a compreender a presente exposição. É de um pintor e data igualmente de 56: «A pintura, como actividade profissional (revela-se), como insustentável, e é um facto conhecido que a maioria dos artistas se vê forçada a conseguir a sua subsistência noutras profissões. Logo, a sua actividade como artistas é uma ocupação de horas vagas, ocasional ou intermitente, e portanto sem quaisquer garantias efectivas de qualidade ou progresso. O problema da pintura portuguesa não começa por ser um problema de tendência (...); começa por ser um problema vital, começa por ser um problema de vida ou de morte.» **
(CORRIGENDA: Nos dois artigos iniciais desta série introduziram-se duas incorrecções que interessa rever - Abel Salazar foi homenageado na II Exposição Geral, em 1947 (e não 46); foi Cândido Costa Pinto, e não Dacosta, que representou o surrealismo ao lado de A. Pedro nas duas primeiras «Gerais» da SNBA.)
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Foi interessante a referência que fez Mário Cesariny a estes artigos, em resposta ao Expresso, que a 24 de Abril de 1982 publicou um dossier sobre a exposição "Anos 40", um "especial" que continua a ser de grande importância e foi dirigido por Augusto M. Seabra. (Foi só depois disso que eu fui para o Expresso.)
Há 30 anos, portanto em 1952, à data da Casa Jalco. A história re-escreveu-se depois.
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