A importância da exposição da Gulbenkian está afirmada, mas ela seria mais fecunda, mais certa com o presente, e com a revisão do século XX a que hoje se procede, se o seu horizonte cronológico e a sua releitura da história tivessem tomado como última baliza uma natureza-morta de Giacometti.
Natureza-morta com garrafas, 61x50,6 cm (Art Gallery of Ontario, Toronto)
Não se trata só de apontar a falta de um autor maior (nunca podem estar todos, e um comissário escolhe os seus preferidos - ou aqueles a que tem acesso), mas de pôr em questão o sentido possível de toda a exposição.
A mostra da Gulbenkian põe em cena (a propósito de um género que tem uma importância muito grande na primeira metade do século XX: Picasso terá sido o mais prolífico pintor de naturezas-mortas - com 145 nºs na exp. "Picasso & les choses", 1992 - e o género teve uma importância essencial no cubismo) o diálogo ou confronto entre a tradição da natureza-morta - que é (ou tinha sido?), uma pintura de observação -, e as vanguardas que se lhes opuseram (à tradição, e também à observação), e que assim teriam minado as condições da sua continuidade como género, bem como, aliás, de todos os géneros em pintura.
O comissário Neil Cox valoriza a modernidade própria da primeira metade do século com o entendimento da natureza-morta como "campo da experimentação" * de que resultou "uma rápida sucessão de inovações radicais" (secção "Estrutura e espaço"), e também como "veículo de significados pessoais", onde se praticava a representação das coisas como "vestígio expressivo da experiência subjectiva" (secção Exílios... e o eu interior"). (Como não estamos no campo da ciência, a experimentação não vem infirmar explicações tidas antes como verdadeiras, e as inovações não se substituem, embora também possam ser caminhos sem continuidade.)
O regresso de Giacometti à figuração nos anos 30 (no contexto mais vasto das preocupações de muitos artistas com a realidade, a sua presença e transcrição - e também com a arte do museu, preconizada por Derain, mas esse cometeu o erro de visitar a Alemanha nazi), traduziu-se numa infatigável investigação sobre o real e a sua representação, constituindo uma ruptura radical que outros autores também classificaram como revolucionária. Giacometti alcançou em vida uma imensa notoriedade mediática e beneficiou de uma recepção critica e literária igualmente poderosa.
Depois do surrealismo, e já depois da abstracção, Giacometti regressava à informação visual, à interrogação da semelhança, considerando embora a "cópia" como um objectivo inalcançável e o realismo ilusionista como impossível depois do modernismo. Giacometi é, no período considerado, até 1955, um dos artistas que mais nitidamente colocou no centro do seu trabalho pessoal a revisão do sentido da vanguarda, como escreveu Tomás Llorens ao apresentar a antologia da sua obra no Museu Rainha Sofia, em 1990 (e não por acaso era a 1ª retrospectiva do museu então inaugurado).
O diálogo com Cézanne é essencial na obra e em especial nas naturezas-mortas de Alberto Giacometti dos anos 40 e 50, e essa seria a melhor conclusão provisória de uma mostra aberta com o excepcional quadro daquele (a pintura de 1893-94 não é nem pretende ser uma desconstrução formal, mas sim um exercício extremamente intenso e reflectido sobre a representação bidimensional da presença das coisas na sua realidade objectual e profundidade espacial, face ao pintor-observador). Em Giacometti, a aparente simplificação das formas repetidas como um registo de dificuldades e falhanços não era o resultado de uma intenção reducionista, mas a construção material e dinâmica de uma relação perceptiva, o resultado hesitante e acumulado de uma visão em acto e não uma mera descrição ou memória dos objectos olhados. Ninguém foi tão longe na análise do trabalho feito do natural (d'après nature), disse sobre ele Avigdor Arikha. Esse era o estado da questão na década de 50.
Uma outra "etapa" está ausente na exposição: uma natureza-morta metafísica de Carlo Carrá ou Giorgio de Chirico (embora estejam presentes Filippo de Pisis e Gino Severini, com obras mais tardias). Por aí se abriria a porta da pintura de imaginação surrealista.
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* "A exposição demonstrará como a natureza-morta, enquanto género pictórico, se transformou em veículo de uma experimentação ainda mais radical com Picasso, Braque e Matisse. Poder-se-á entender como permitiu a alguns artistas um olhar reflexivo sobre a sociedade contemporânea, enquanto outros se envolveram nas novas realidades da experiência subjectiva, como é o caso de Magritte e Dalí." - da informação
Por sinal, a grande exp. de referência na matéria: "Objects of Desire: the Modern Still Life", org.: Margit Rowell. New York, The Museum of Modern Art, 1997 May 25th-August 26th; London, Hayward Gallery, October 9th,1997-January 4th, 1998, também não expôs Giacometti, e começou igualmente com um prólogo mostrando a mm tela de Cézanne. Mas incluiu não europeus e prolongou-se até final do século. Não apresentou fotografias (teve Cindy Sherman de gd formato...), mas tb contou com ready-mades de Duchamp. Teve, em geral, uma má imprensa.
Posted by: AP | 10/29/2011 at 00:22
Adenda: qual será a razão para o Neil Cox não incluir o catálogo da mostra da Margit Rowell na sua bibliografia, quando se trata duma referência incontornável e a sua orientação formalista/essencialista é próxima da sua? Para francófonos recomenda-se o artigo da mm srª no Artpress 173, Octobre 92: "(Histoire d'un genre) Quelques reflexions sur la nature morte au 20e siècle" publicado por altura de "Picasso et les choses" (Cleveland, Filadelfia e Paris - Grand Palais).
Nesse nº, aliás, anunciava-se que Margit Rowell estava a preparar para o Centro Pompidou a exp. de 1997, que se ficou por NY e Londres.
Posted by: AP | 11/02/2011 at 19:05
Terceiro auto-comentário, ou, neste caso, um esclarecimento.
Dizem-me que o Museu tentou repetidamente incluir uma obra de Giacometti, o que não foi conseguido. Também uma pintura de Chirico esteve prevista e, aliás, até assegurada, antes da mostra ter sido dividida em dois episódios. Foram muitas as dificuldades, umas vencidas e outras não, para montar esta exposição na Gulbenkian, numa produção que não tinha outros parceiros internacionais. O caso da pintura de Matisse, conseguida apenas três meses antes da abertura da exposição, foi exemplar das dificuldades encontradas para aceder a artistas de maior fama, e também de alguns êxitos alcançados através de cumplicidades entre instituições ou entre pessoas.
É óbvio que algumas ausências, quando não assinaladas enquanto tal, alteram o entendimento possível de um tema ou de um período cronológico.
Posted by: AP | 11/17/2011 at 23:06