Exposta agora no CCB a 2ª parte da Colecção Berardo (1960-2010), há razões para lamentar a insólita inclusão de peças de outras proveniências (em especial da chamada Fundação Elipse) e para pôr em causa um critério selectivo sectário que se traduz numa montagem decepcionante e enfadonha, onde estão ausentes muitas das melhores obras disponíveis
A nova montagem da Colecção Berardo abriu há mais de uma semana (no dia 10) e ainda não existe o folheto ou desdobrável que habitualmente acompanha as exposições com alguma informação sucinta, para além dos catálogos publicados. É sinal de que a situação interna não vai bem, certamente por razões financeiras ou delas resultantes - mas neste caso trata-se de deixar falhar os serviços mínimos.
Eric Fischl, "Mother and Daughter" / Mãe e filha, 1984, 214 x 518,5 cm
A carência ou atraso da informação resultará dos cortes orçamentais que se aplicam generalizadamente às instituições da cultura, e em particular às fundações que o Estado patrocina. E não importa agora voltar a referir os episódios pouco culturais que têm envolvido tanto a ideia oficial de uma reavaliação prematura da colecção - que seria inútil, dispendiosa e desde logo improvável sem o acordo do proprietário - como a divulgação de dotações financeiras demagogicamente empoladas (27 milhões?), já que não têm em conta os custos do funcionamento e da programação que o módulo de exposições teria em qualquer caso, se não fosse museu, para além de incluirem verbas contratualizadas para aquisições de obras cuja propriedade terá de ser reconsiderada no termo do protocolo vigente.
Jorg Immendorf, "Anbetung des Inhalts" / Adoração do conteúdo (?), 1985, 285 x 330 cm
É a apresentação da 2ª Parte da Colecção Berardo - prolongamento da montagem mostrada no Piso II, desdobrada cronologicamente desde meados dos anos 60 do séc. XX até ao séc. XXI - que importa comentar, transmitindo agora uma opinião abertamente desfavorável, ao contrário do que sucede quanto à 1ª Parte. Lamento continuar a ter uma opinião negativa sobre a acção de Pedro Lapa, o novo director artística do Museu, mas, de facto, confirmam-se e prolongam-se as repetidas discordâncias anteriores.
Duas orientações seguidas nesta montagem são claramente negativas - e contrárias aos interesses do Museu e do público, num momento de especial escrutínio da Colecção. A primeira diz respeito à integração na chamada "Exposição permanente do Museu Colecção Berardo (1960-2010)" de obras que não pertencem à Colecção Berardo, quando legitimamente se esperava neste 2º núcleo a sequência do que no Piso 2 se apresenta como "Colecção Berardo - Exposição Permanente". Só a consulta atenta das tabelas permitirá notar essa insólita opção. A segunda refere-se a um critério de escolha de obras que oculta uma parte parte muito significativa da Colecção e da arte das últimas décadas, em função de um gosto pessoal que seria respeitável se não fosse sectário (mais autista que autoral) e se não se traduzisse numa montagem redutora, árida, enfadonha, triste, intencionalmente desinteressante e frustrante das legítimas espectativas do público.
Fernando Botero, "Family Scene" - Cena familiar, 1969, 210 x 194,5cm
Pedro Lapa acrescentou à "exposição permanente" da Colecção Berardo algumas obras, e conjuntos de obras, oriundas da Fundação Ellipse (a Ellipse Foundation Contemporary Art Collection), essa duvidosa entidade associada à Privado Holding, ao Banco Privado Português (BPP), a João Rendeiro e ao seu escândalo financeiro - colecção essa (ou fundo de investimento?) para o qual ele próprio trabalhou anteriormente (aliás, numa controversa acumulação com a direcção do Museu do Chiado). É o caso de trabalhos de Dan Graham, Jeff Wall e Gabriel Orozco, que obviamente fazem tanta falta numa panorâmica da produção artística das últimas décadas como as obras de muitos outros autores ausentes. E é uma opção tanto mais insólita e inexplicável quanto muitas outras dezenas ou centenas de peças não cabem na "exposição permanente", a qual só se pode entender como uma selecção parcelar que terá de ser objecto de futuras rotações de obras e de núcleos inteiros. (Pelo menos em outro caso, apresenta-se uma obra que é propriedade do artista seu autor)
Num contexto que tem colocado o Museu Colecção Berardo no centro do debate público, com larga presença de ignorância e má fé, seria obviamente oportuno trazer a público nas melhores condições o máximo e o melhor do seu acervo para se avaliar perante o testemunho das obras disponíveis qual a sua real importância no contexto nacional e em termos internacionais. Não entendo como o director foi autorizado (e por quem?) a misturar obras da Fundação Ellipse nesta "Exposição Permanente", considerando que acima da sua arbitrariedade de critérios existe uma administração e, em especial, um titular da Colecção.
Anselm Kiefe, "Elisabeth von Osterreich" - Isabel da Áustria ("Sissi"), 1993, 195 x 301 cm
Quanto à selecção sectária das obras, bastam alguns exemplos anexos de peças de primeira importância da Colecção Berardo, três que são poderosas imagens de marca do seu acervo e uma outra menos vista. O director artístico mantém uma conhecida posição de desinteresse pela pintura, apesar de esta ser uma das linhas de orientação mais nítidas e mais ricas da Colecção; o director artístico prefere umas ilustrações escolares e por vezes menores de um qualquer roteiro das neovanguardas dos anos 70 e suas sequelas do que as obras que em catálogos anteriores da Colecção (CCB, 1999) se chamaram "Regresso à Pintura e Escultura - Anos 80" e "Tradição, Narração e Transculturalidade - Anos 90". A.R. Penk, Middendorf, Clemente, Cucchi, Schnabel, David Salle, Christopher Lebrun, Paula Rego, Ross Bleckner não comparecem, tal como não estão (salvo algum lapso de memória) Keith Haring, Gormley, Mark Quinn, Susana Solano, Rui Chafes, Julio Galán, Dinos & Jake Chapman, Fiona Rae. Profere umas banalidades escolares àcerca da "transformação radical do objecto artístico, [da] reconfiguração que surge de uma espécie de eco do ready-made" ("Público") e deixa de fora muito do melhor e do mais valioso que tinha à sua disposição. Para além do óbvio provincianismo teórico que se mascara aqui de radicalismo estético, é também notória a incapacidade de, na montagem, valorizar espacialmente as obras, estimular relações formais e de significado, acrescentar sentido à mera disposição das peças por capítulos.
Num momento em que o poder político parece hesitar quanto à importância da Colecção, cuja associação ao CCB vem já de 1996 , em diferentes modalidades, será lamentável que a Colecção e o Museu sejam prejudicados a partir de dentro e por quem a deveria servir.
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Rui M. Pereira -
Uma pequena precisão, Alexandre, ao seu texto quando escreve: "uma reavaliação prematura da colecção - que seria inútil, dispendiosa e desde logo improvável sem o acordo do proprietário". A avaliação da Christie's em finais de 2006 importou em menos de 7.000€. Não me parece um valor exorbitante. Por outro lado, nos termos do acordado em Protocolo e que foi vertido para Decreto-Lei, nada impede o Estado, como entidade fundadora da designada Fundação Berardo, de encomendar uma avaliação. Nada. E mais um detalhe: as grandes casas leiloeiras internacionais conhecem bem cada uma das 816 obras então avaliadas pelo que não necessitam de ter acesso "físico" àquelas obras de arte. A questão da avaliação da Colecção Berardo como ela vem sendo colocada pelo Comendador José Manuel Rodrigues Berardo nada mais é do que uma cortina de fumo. Tenhamos o bom senso de a entender como tal. E já agora mais um detalhe: o valor anual da apólice de seguro daquele acervo - umas centenas de milhares de euros - é pago pela contribuição do Estado pelo que importa saber quanto vale.
Alexandre Pomar -
Existem no caso várias cortinas de fumo, e há sempre dois lados a fazer lume. Esperemos que o público não fique a arder com o museu Berardo, que não há outro. 1) É obviamente um preço de favor, feito a um bom cliente - não é fácil de repetir, contra esse cliente e contra a leiloeira, até porque pode haver muitos futuros interesses em jogo. 2) Nada impede e nada autoriza; em especial, o contrato estará blindado e julgo que nada autoriza a fazer revisões parcelares. Mas o que mais me espanta é a verba de 27 milhões que a SEC atira para o ar - qual seria o custo anual do funcionamento e da programação se não houvesse MCB no CCB? Ou pensa-se em fechar a porta? E obrigado pela colaboração atenta.
Rui M. Pereira -
Em finais de Setembro o Estado colocou no MCB mais c. 1,5M€. Estou certo que António Mega Ferreira daria um excelente destino, em programação e exposições, a um reforço anual de c. 7,5M€ por ano nestes últimos 4 anos. É preciso lembrar que dispõe de idêntico valor por ano para todas as componentes do funcionamento do CCB, incluindo a programação. E que ainda suporta todos os custos de manutenção do espaço ocupado pelo MCB. Pois é!
Alexandre Pomar -
Tivemos por quatro anos (Janeiro 2007 / Abril 2011) um magnífico director do Museu Colecção Berardo, de nome Jean-François Chougnet, que imprimiu a uma instituição com as particulares características do CCB e contando com o idiosincrático acervo do comendador uma orientação modelar, face ao que têm sido, e são, outros pequenos directores de pequenas e médias instituições. E não é preciso ter admirado tudo que fez expor. (Terão as autoridades do sector reconhecido o valor dessa longa presença em Lisboa?)
Posted by: AP | 11/20/2011 at 23:17