(6)
Sobre a exposição que a Gulbenkian dedica à Natureza-Morta entre 1840 e 1955 já ficaram abaixo as notas que se chamaram
"Presença da Pintura", notícia da visita de imprensa a 19 de Outubro (1);
"Natureza morta 1 (2010)", repescagem de um breve artigo sobre a 1ª parte, séculos XVII-XVIII (2);
depois, "nm dp 55", sobre a continuidade do género até ao presente, falando de dois jovens pintores de hoje e de outros dois veteranos que são nomes maiores no início do novo século (3);
"Natureza-morta: a falta de Giacometti" (4), considerando que o termo cronológico da mostra exigiria a presença de uma das pinturas do grande escultor que deixou de ser surrealista, certamente colocado numa posição simétrica, como uma conclusão provisória, ao quadro inaugural de Cézanne (é a continuidade da observação, perante a presença material dos objectos..., e é a afirmação mais radical que marca as décadas de 40 e 50), para além de referir tb a ausência de uma nm "metafísica" de Carlo Carrá ou De Chirico, prévia à pintura de imaginação. Não são faltas menores, porque essas obras sinalizariam acontecimentos de 1ª importância.
Por último, "Antonio López: naturezas mortas contemporâneas"(5), sobre a exp. que esteve em Madrid no Museu Thyssen e está agora em Bilbau, volta a abordar a questão da permanência e do estado actual da pintura de naturezas-mortas, considerando que é à luz do presente e da pintura de hoje (contemporânea, claro) que se tem que considerar todo o arco histórico da 1ª metade do século XX.
A importância da excepcional vinda a Lisboa de quadros de grande qualidade de Cézanne, Van Gogh e Picasso, entre outros, deve ser sublinhada com a reflexão sobre o conjunto da exposição que os integra, sobre o seu programa e sentido, sobre a relação com a história e a actualidade, etc. Trata-se de valorizar a exposição propondo a sua crítica.
O meu ponto de vista é que o comissário científico da mostra ilustra aqui uma posição arcaica ou desactualizada e também conservadora, embora pareça e provavelmente pretenda ser intérprete de uma antitude anti-tradicionalista, identificada com a defesa das vanguardas do séc. XX. Neil Cox considera o "séc. XX, um século dominado pelas Vanguardas e pelo Modernismo", e que ao longo dele "a natureza-morta sofreu uma fragmentação ou mesmo um colapso" (pág. 16 do catálogo). É elucidativo também que o título da conferência que vem proferir no dia 7 seja: "Modernizar a Natureza-Morta: da Fotografia à Abstracção". Parece tratar-se de sintetizar o "progresso" cumprido pela pintura em direcção à "abstracção", depois da fotografia a ter libertado da tarefa da imitação do real; de facto, julgou-se isso em alguns meios, mas também se constatou o contrário, como se o abstraccionismo (a não-figuração) passasse a ser apenas mais um género pictural entre outros, com subgéneros como a abstracção geométrica e a expressionista, o monócromo, etc. A partir da década de 60 do século XX, a crença na abstracção como destino, e no colapso da natureza-morta, por essa via ou por "abandono da pintura" (pág. 15), tornou-se insustentável. Também se constatara entretanto que a fotografia tratou em grande parte de imitar a pintura (como sucede ainda hoje) e que o segmento profissional dos miniaturistas foi o mais afectado pela sua concorrência.
Pierre Bonnard, Natureza-morta, 1922, 43,5 x 47 cm, Cambridge, Fitzwilliam Museum
É como se Neil Cox se tivesse detido no tempo de A Concise History of Modern Painting, bíblia "modernista" que Sir Herbert Read publicou em 1959, depois muito reeditada e traduzida, também obra de referência da crítica portuguesa da geração de um Rui Mário Gonçalves. Aí pretendeu estabelecer "a história desse estilo de pintura que é especificamente 'moderno' ", pelo que - avisava logo no Prefácio - excluiu "a pintura realista", entendida como "esse estilo de pintura que perpetua, sem grande alteração, as tradições académicas do séc. XIX", qualificação que aplicava a Hopper, Balthus, Stanley Spencer, entre outros nomes hoje menos famosos (os parisienses Bérard, Utrillo, Pascin...). Não lhes negava "nem as qualidades [ou sucessos, réussites em francês], nem o valor profundo das obras", nem o "lugar incontestável na história da arte do nosso tempo", mas não eram "modernos". Também excluído era o "naïf" Rousseau, e igualmente omitida a "escola mexicana", que teria "submetido a sua arte a um ideal de propaganda". As citações importam para se entender o discurso modernista (o que defende esta acepção de moderno) com uma posição autoritária e ideologicamente marcada pelo formalismo tardio do 2º pós-guerra.
Em 2000, o MoMA, tentando reconsiderar a sua posição de baluarte modernista, apresentou "Modern Art despite Modernism" (org. Robert Storr): era um inventário meritório do que aí se designou como "impulso antimodernista" e "antivanguarda", mas distinguindo-o do labeu de antimoderno. Tratou-se de entender que o realismo digno desse nome (que é sempre contrário às normas académicas) toma a observação do mundo visível (the given world) como uma tarefa primacial. Incluia muitíssimos nomes dos que foram protagonistas de vanguardas e a natureza-morta tinha uma larga presença - por sinal, estava lá o mesmo quadro de Magritte (Retrato, 1935). O séc. XX é igualmente o das anti-vanguardas, e do abandono da ideia de vanguarda (com todos os paralelismos que se quiserem estabelecer entre arte e política). A pintura de observação, o entendimento e a restituição da presença material das coisas, como a que pratica Bonnard (na foto), não se deixa apreciar sob a oposição vanguarda/antiguarda...
Curiosamente, mas sem surpresa, Neil Cox esconde o seu imobilismo ou conservadorismo "vanguardista" (grande parte das vanguardas e dos modernismos vanguardistas do séc. XX foram reaccionários) com uma abertura superficial às práticas artísticas surgidas do século XX (e já nos finais do séc. XIX) em concorrência com a pintura, ou no lugar do "abandono da pintura", como sejam a fotografia e o filme, as construções (contra-relevos), o ready-made e depois o objecto apropriado. É significativo dessa superficialidade o facto de apresentar a respectiva presença como "grande variedade de suportes" e de sujeitar estes à ideia de uma continuidade (mesmo que renovada, modernizada) da tradição da natureza-morta, como actualização da "concepção da categoria da natureza-morta na era moderna", quando seria muito mais "avançado" apresentá-los como rupturas e invenção de outras atitudes criativas. Não sendo também a pintura um "suporte", não se trata de fazer transitar uma mesma categoria para diferentes práticas, como se existisse uma essência ou uma disciplina do género pictural natureza-morta (a atenção aos objectos ou a imaginação de objectos) a "modernizar" em diferentes "suportes".
Poder-se-ia entender a "era moderna" como a chegar ao fim à data da morte de Gulbenkian (1955), por coincidência fortuita, com passagem imediata à era pós-modernista, de acordo com a proposta de Leo Steinberg ("Other Criteria", com Rauschenberg e Jasper Johns), mas não parece ser essa a ideia do comissário. A questão decisiva é que o entendimento que se faz da "era moderna" e do "século das vanguardas" é erradamente restritivo e não permite entender nem muita da arte moderna nem a pintura actual.
(continua)
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