A propósito de uma crónica de Daniel Oliveira, “Para acabar de vez com a cultura” (Expresso, 24 Maio 2012) — http://arrastao.org/2541012.html
“Sem investimento público (seja de Estados, seja de monarcas ou instituições mais ou menos públicas), não teríamos podido ouvir Bach ou contemplar grande parte do nosso património arquitectónico”.
A ideia de público, no caso da categoria investimento público (porque não se trata aqui de público ouvinte ou assistente, público amador e/ou consumidor...), não é objecto na crónica de Daniel Oliveira de qualquer diferenciação conceptual em função do poder concreto que decide e realiza aquele investimento — seja ele a igreja ou o rei, as cortes aristocráticas, os directórios revolucionários, os estados liberais ou absolutistas, os governos democráticos ou autoritários, as estruturas centrais ou locais, as fundações mecenáticas e as fundações de empresa (onde as relações públicas, a promoção da marca, a publicidade, a notoriedade dos gestores, as isenções fiscais, têm enorme peso), etc. Também não há distinção, no espaço geral do que aí se chama investimento, entre o serviço doméstico pessoal (do músico ou pintor de câmara, ou de corte), a encomenda, o patrocínio, o coleccionismo, a premiação (incluindo os sistemas de bolsas) e o financiamento da actividade de instituições como as academias, os museus, os teatros, etc. Não existem diferenciações conceptuais, históricas e sociais, ou de classe. Sempre foi assim e assim deve continuar a ser. Sempre com vantagem para todos, ao que parece.
A amálgama ou indefinição abre a porta a inúmeros equívocos, mas chama a atenção para o facto de grande parte das obras da história das artes (a Capela Sistina e a pintura de Velazquez, a produção de Bach para o Grão-Duque de Weimar ou o Príncipe de Cöthen, etc, etc) terem sido realizadas em contextos histórico-sociais anteriores à economia de mercado tal como a conhecemos hoje, e em quadros alheios às suas regras capitalistas de sustentabilidade, concorrência, rentabilidade ou especulação — e talvez só por isso tenham sido possíveis. Ao longo da história, e até hoje, em proporções variáveis, o gosto dos mecenas e o regime da encomenda pública (e privada) tutelou e estimulou a criação pública, e enquadrou a “autonomia” dos criadores.
Claro que lembramos os casos que a história hoje valoriza, e esquecemos ou recalcamos as obras artísticas que consideramos menores ou nulas e as situações em que os poderes exerceram coercivamente (e repressivamente) os seus investimentos culturais. E é claro também que o investimento público, em todas as suas formas, ontem e hoje, constitui um mercado em si mesmo, mesmo antes de se tratar de um mercado capitalista. No presente, de modo variável nas diversas áreas artísticas, esse mercado do investimento público em grande parte sustenta, acompanha e é cúmplice do mercado capitalista especulativo de que supostamente seria independente (ou cujos vícios deveria corrigir) — o regime do vedetariado nos campos da música ou da literatura, e mais obviamente a cumplicidade entre o mercado de arte e os museus de arte contemporânea servem de exemplos fáceis.
O conhecimento do que foi o aparecimento do público (de um novo público da arte) e do espaço público, numa demorada aquisição da história (com um período culminante nos séculos XVIII e XIX), através da formação da opinião pública burguesa e do “grande público” e a afirmação profissional da crítica, impede que se possa pensar aquele investimento público nas áreas da cultura como uma realidade continuada, necessária e invariável ao longo da história. Entre outras leituras, recomendo O Espaço Público, de Jurgen Habermas (em especial, o cap. II “Estruturas sociais da esfera pública”)
“O Estado não tem gosto. Não escolhe o que é bom e o que é mau” é outra frase sugestiva de D.O.
Estou a tirar um Mestrado em ensino e ainda esta semana, se discutiu muito na aula, até que ponto é que o ensino formal, oficial, pode ter qualquer efeito num país cujas instituições culturais não têm uma mínima ação pedagógica, à exceção da Gulbenkian. Se não fosse a Gulb, como seria o ensino em Portugal?! Por exemplo, vejamos o site da Bib.Nacional de Portugal: onde está a secção pedagógica? Agora vejamos o site da Biblioteca Nacional Francesa, e os seus recursos pedagógicos,para miúdos e graúdos, e facilmente percebemos o que hoje em dia quer dizer investimento público no que diz respeito à cultura,em França, mas igualmente em muitos outros países ocidentais e não só. Em Portugal quais são as instituições públicas com sites com recursos pedagógicos decentes? Não conheço.
Posted by: Maria João Rato | 06/04/2012 at 00:38