Sobre um (mais um) documento que não subscrevo devido a discordâncias de fundo, em especial com o sentido do que possam ser as condições de uma acção política que tenha a ver com o campo alargado da criação artística e da comunicação ou consumo cultural (“Cultura e futuro”)...
Tem sido fatal o recurso muito frequente à ideia (à fórmula) da “rede”, que foi decalcada de um modelo único e irreprodutível: a rede das bibliotecas municipais. As redes de museus, entendida como a lista dos museus do Estado, ou como “rede nacional” ora associativa ora controlada pelas entidades centrais, tem sido coisas variadas. Todas as outras “redes” serão informais, voluntárias e livres, associativas, de geometria variável. Não existe senão como um argumento burocrático “uma rede de artistas, criadores, programadores, técnicos e produtores”, que se classifica como uma rede “complexa e de reconhecida excelência nacional e internacional”. Ignoro que existam artistas incluídos numa tal rede - espero que não, que não se deixem enredar. Será mais aceitável e é menos ameaçador usar o termo impreciso de “tecido artístico” ou tecido cultural, a que não se associa qualquer ideia de padronização e ligação estrita entre agentes ou indivíduos.
Discordo, desde logo, que se conceda a prioridade (neste contexto de crise e em qualquer outro) a reivindicações sobre orçamentos e investimentos destinados à criação artística, defendendo-se sem revisões sérias a "sustentabilidade" do que seria o anterior (ou actual, ainda?) "edifício" dos serviços públicos de cultura. Surpreende-me a perspectiva conservadora (salvaguardar o que se crê existir: a rede, a reconhecida excelência, as infraestruturas...), em vez de se optar pelo questionamento do que acontece e pela vontade de invenção de outras atitudes. É a debilitação crescente das infraestruturas culturais que constitui hoje o problema principal.
Percebo que se trata de um texto que traduz os interesses dos que se consideram os gestores do espaço cultural (do "edifício" dos serviços públicos), mas o que me parece necessário, num diálogo mais aberto, seria interrogar as necessidades dos públicos (os frequentadores e amadores-consumidores, porque, para lá de exercitarem o direito assegurado ao acesso à cultura, os públicos sustentam e financiam, pelo menos em parte, os bens culturais que consomem), as ambições dos artistas (não direi criadores, que são/somos todos, mas ao escrever ambição sublinho a auto-afirmação como artista, a candidatura à condição de artista, com os riscos inerentes à respectiva validação social), e em especial o relacionamento entre ambos, públicos e artistas - principal condição de possibilidade das artes numa sociedade democrática (não aristocrática e não autoritária: depois do regime da encomenda régia ou senhorial e do encargo político dos regimes totalitários). Relacionamento que se inscreve no espaço público democrático, uma demorada conquista histórica.
Por exemplo nas áreas do teatro e dança e artes visuais, para usar expressões tradicionais, o crescimento exponencial dos candidatos individuais e colectivos à condição de artistas (ou criadores) - para além da massa de gestores, agentes, formadores, técnicos e mediadores, incluindo curadores-programadores e críticos (um considerável "público profissional" que preenche as inaugurações e as "salas-estúdio" - inviabiliza a possibilidade de uma dependência dos poderes públicos enquanto garante do "acesso à criação" e suporte da produção, como se percebe pela extensão e pulverização das listas de subsídios que têm sido divulgadas. Há migalhas para todos (ou para muitos), mas os alicerces do “edifício” da subsidiação estão arruinados, para além de se lhe terem sacrificado as infrastruturas que constituem os serviços públicos da cultura (as bibliotecas, os museus, os arquivos, as colecções, os monumentos, os equipamentos dedicados à conservação e à investigação, etc).
Se a formação em "artes" é, para os poderes públicos, uma alternativa à desaparição do trabalho tradicional bem como à conflitualidade social do desemprego comum (é a engenharia social), além de ser um espaço generalista de incentivo à "criatividade" (à iniciativa individual e individualista - é a nova economia criativa), as agendas da programação cultural institucional não podem continuar voltadas para o estímulo a uma inviável profissionalização generalizada, mas devem, pelo contrário, apontar para a distinção das carreiras.
A questão da profissionalização no espaço da cultura e das artes tem de ser ponderadamente analisada, certamente reconhecendo distinções entre áreas disciplinares. O ensino artístico não tem por objectivo a profissionalização de artistas, mas a formação de públicos, e em geral de cidadãos informados e cultos. De leitores, ouvintes, espectadores, etc. De amadores em geral, enquanto consumidores e possivelmente também como praticantes (sem vontade ou condições de profissionalização). A desconsideração e mesmo a destruição das actividades e associações de amadores é uma marca evidente da fragilidade do nosso tecido cultural.
A formação escolar artística não assegura a profissionalização dos seus alunos como artistas, supondo-se que alguma intervenção pública posterior venha a sustentar generalizadamente aquilo que só o mérito reconhecido ou a excelência podem proporcionar, numa percentagem reduzida de aspirantes. As bolsas e as pós-graduações, que em grande parte moldam um sistema neo-académico tão esclerosado como as academias do Antigo Regime, não fazem mais do adiar a questão da efectiva profissionalização (ou melhor, de uma auto-sustentação económica). Uma prática artística pode assentar numa formação académica (ou não), mas funda-se em algum talento ou vocação (ou determinação) que não se garantem à partida ou com qualquer diploma. Aliás, convém entender que um número muito elevado de artistas, designadamente de artistas plásticos, são-no graças às favoráveis condições económicas familiares e noutros casos graças ao exercício de outras profissões paralelas, mais ou menos ocultas. Citem-se no limite a carreira militar de José de Guimarães e os exemplos do engenheiro agrónomo Joaquim Rodrigo ou do administrador Cruz Filipe; aliás, em inúmeros casos os artistas exercem a profissão de professores e são, na realidade, artistas amadores.
De facto, a questão da profissionalização/desprofissionalização parece ser mais colocada pelos gestores e agentes culturais afins do que propriamente pelos artistas, para quem o destino enquanto artistas se coloca em termos de êxito, ou não, e de continuidade desse êxito, mas não enquanto direito adquirido e assegurado para a vida.
Outra questão a enfrentar tem a ver com a ideia de que o artista é à partida, ou deve ser, um produtor de bens transacionáveis, colocados nos mercados dos bens culturais, e não alguém que se considera com direito a ser sustentado pela sociedade da qual se distingue, acima da qual se eleva, porque como tal se considera a si mesmo. Se a “subsidiação” existe em condições imensamente variáveis conforme as áreas disciplinares (e conforme a dimensão individual ou colectiva, erudita ou popular, experimental ou “comercial” das práticas), ela não é um direito à criação mas o resultado de um reconhecimento, de uma encomenda, de um concurso, de um prémio.
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Tenho dificuldade de aceitar esta formulação: "Neste momento, como resultado de uma governação abertamente hostil à ideia de serviços públicos de cultura e que usa a crise como alibi, assistimos a uma rápida e progressiva desprofissionalização no sector cultural, ao fechamento das agendas culturais e à desagregação da identidade social dos equipamentos públicos." Corremos o risco de esquecer que nos cabe tomar a iniciativa de propor mudanças, perante uma realidade anterior que não deveríamos mitificar, em vez de nos entrincheirarmos na defesa de fragilidades socialmente injustas e de uma imutabilidade ilusória.
As alternativas à "profissionalização" de grande parte do sector cultural, experimentando fórmulas menos rígidas de pensar o trabalho (e o salário, e o emprego); a avaliação do fechamento autista ou autocentrado de muitas agendas culturais (identificando-se os próprios profissionais e estudantes da cultura com o pequeno público da cultura, numa segmentação dos nichos artísticos, que passou aliás, a reivindicar o destino minoritário da produção cultural); a crítica da identidade social dos equipamentos públicos como instâncias de diferenciação social e de gosto são temas que não deveriam ser deixados apenas a cargo de uma governação actual que se quer ser radical e experimental (mais do que conservadora ou liberal). Penso que há dimensões do serviço público, tal como ele se propôs constituir-se no passado recente (como sector terciário com os seus interesses próprios), e em especial na cultura (a Cultura), que devem ser repensados num quadro actual de redistribuição de riqueza global que naturalmente não continua a favorecer os antigos privilegiados.
Este não parece ser um espaço propício às certezas e à auto-satisfação. E a demagogia não funciona.
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