...grande parte dos manifestos que por aí circulam, e também das considerações autorais sobre o panorama cultural, são enganadores ou fraudulentos ao angariarem os seus apoiantes e admiradores através de uma ilusória promessa de destinos artísticos para todos graças à subsidiação universal
Jorge Varanda, pinturas (c. 1984-86). Exposição no CAM
A afirmação de que "Portugal se recusa a assegurar o mínimo para que a cultura e as artes continuem a existir" (uma coisa que vem hoje na Time Out a propósito de qualquer iniciativa intitulada Art Protesters, liderados por João Galrão e João Vilhena, e que será certamente prosa jornalística e não da autoria de artistas) é errada e destituída de sentido. Os mínimos, os médios mesmo (escolas, museus, exposições, programas variados, festivais, etc) existem, assegurados pelas estruturas públicas centrais, locais, particulares/mecenáticas e associativas (estas, que partem da iniciativa própria e colectiva, são as mais apagadas, o que dá que pensar), para além das iniciativas comerciais e individuais. Faltam certamente, oportunidades e condições mais favoráveis (encomendas, bolsas, prémios, aquisições para colecções públicas) tal como faltam oportunidades noutros sectores profissionais (ou melhor, neste caso das artes, sectores vocacionais), mas, ao contrário de outros trabalhadores, um artista não pode dizer que não tem trabalho, mesmo que não tenha "emprego". Aliás, espera-se que não ambicione um emprego. À partida, a condição de artista é já a de um privilegiado - alguém que tem o privilégio (ou procura ter esse privilégio) de fugir ao trabalho assalariado e de fazer o que gosta, de criar e realizar-se através dessa possibilidade de criação (seja lá o que isso quer dizer).
Ter emprego (“infelizmente em Portugal são poucos os artistas que se podem dar ao luxo de não ter emprego”): mas imensos artistas conhecidos fizeram as suas carreiras tendo empregos (para lá dos professores das Escolas, que são a maioria - artistas e professores de profissão certa - lembrem-se por ex. casos como o José de Guimarães que foi sempre oficial do exército, agora reformado; o Joaquim Rodrigo, que era eng. agrónomo; o Cruz Filipe, administrador de empresas). Outros tiveram bens de família (o Amadeo...), ou heranças e rendas, outros ainda têm maridos (ou mulheres) que ganham o sustento... Em geral, a condição de artista não era acessível a qualquer um. E em inúmeros casos de artistas com emprego (professores e outros), é o salário que garante o nível de vida e também a promoção da obra artística.
A auto-suficiência económica, em geral, conquista-se ao cabo de uma carreira ou (só desde os anos 80) de uma afirmação bem sucedida, não é um dado habitual de partida, não pode ser uma condição ou benesse assegurada desde início por "apoios oficiais", não pode ser uma exigência proclamada pelos jovens artistas - ou estudantes de artes, ou candidatos a artistas. Uma coisa é questionar a justiça de certos favoritismos, outra é pedir apoios para todos, ou para todos os que começam - e julgar que tal é possível ou até desejável. Os artistas precisam seguramente de ter auto-estima e auto-confiança, mas a auto-suficiência (a profissionalização, digamos) estará ao alcance de muito poucos.
Julgo que grande parte dos manifestos que por aí circulam, e também das análises opinativas sobre o panorama cultural, são enganadores, fraudulentos ou mesmo criminosos ao angariarem os seus apoiantes e admiradores através de uma ilusória promessa de destinos artísticos para todos graças à subsidiação universal ou equivalentes distribuições de apoios.
Mesmo que não se assegurassem os mínimos, como acima se diz, a cultura e arte continuariam a existir, com existiram antes nas condições de maior penúria ou de maior perseguição censória - a não ser que a burocratização da criação artística, a subordinação às tutelas e aos condicionalismos administrativos, tenha de tal modo condicionado já os seus praticantes, tenha a tal ponto pervertido as ambições e a liberdade dos criadores, que se tivesse atingido um ponto de não retorno. Por vezes alguém vem dizer que nas condições mais difíceis e restritivas, e em regimes de opressão e privação, a criação cultural atingiu em muitos casos a sua maior altura, mas o argumento não é recomendável. Também convém não acreditar que as situações de maior apoio público são as que conduzem a melhores índices de qualidade, e basta comparar a debilidade da arte espanhola das últimas décadas com a grandeza alcançada antes, apesar da multiplicação de museus e de mecenas.
Um ponto central em relação à encomenda pública e à aquisição de obras para colecções públicas, incluindo a atribuição de bolsas que permitam a um artistas dedicar-se por inteiro a um projecto, é que tais actos não têm como intenção primeira amparar inícios de carreira, estimular vocações ou substituir políticas assistencialistas. É a competência reconhecida, a qualidade comprovada, a excelência premiada que têm de servir de critérios de selecção a esse nível da intervenção pública (a distinguir dos processos de formação académica com que se constrói hoje e sempre o academismo). Não é essa condição que tem cumprido nos museus, que deveriam seguir uma política patrimonial, e não servirem de campo de angariação de clientelas e gestão de influências para críticos investidos no papel de gestores de equipamentos colectivos. Políticas demagógicas que trocaram a intervenção cultural pela engenharia social e pela manobra eleitoral têm, de facto, posto em risco a capacidade das instituições assegurarem medianamente as suas responsabilidades na preservação e investigação patrimonial, na ampliação das colecções dos museus, na qualificação de bibliotecas e arquivos (incluindo os arquivos de imagens e de textos dependentes de novas tecnologias), na promoção externa e na coprodução internacional.
Com a dimuição drástica do emprego nas actividades produtivas e também nos serviços abriu-se o espaço genérico das artes como precoce orientação escolar para massas imensas de jovens. Não se trata de formar artistas - todos eles capazes de assegurar a notoriedade das suas carreiras e a respectiva sustentabilidade profissional. Trata-se, por um lado, de fomentar a criatividade em geral, que pode ter a criação artística tradicional como modelo, mas se distribui de facto por inúmeros campos onde o que conta é a capacidade de inovar, de ter iniciativa, de circular entre actividades, de contar com a imaginação e a determinação próprias. Mais do que as disciplinas artísticas da tradição importam, em termos numéricos, as actividades possíveis nas múltiplas áreas da comunicação, do design e da moda, bem como dos lazeres ou entretenimento, os artesantos e todas as práticas da auto-suficiência, da ecologia à animação, eventualmente como um limbo de onde seja possível partir para profissões bem reconhecidas ou aceder a uma sobrevivência com auto-estima.
É uma questão de engenharia social em que se substitui o antigo “direito” ao emprego pela orientação e ambição artística como modelo de integração desejável em sociedade, uma integração individualista, atomizada, destituída naturalmente de um espírito reivindicativo que colectivamente se possa exercer. Em princípio o artista é alguém que se atribui um desígnio criativo, e que se dota de um auto-reconhecimento ou auto-estima quanto à sua actividade que é independente do juízo crítico alheio - para quase todos, o seu mérito é certo, mesmo que êxito não aconteça.
Grande parte da evolução da arte (em especial das artes visuais, que continuam a ser o paradigma da identidade artística, certamente devido ao seu valor de mercado - ao contrário da poesia, em especial) acompanha esta lógica em que a orientação dispensa a vocação, o que é comprovado por dois factos associados: por um lado, as artes visuais, que se diziam artes plásticas e antes belas-artes desligaram-se em grande parte da ideia de que a sua prática requer um certo talento, uma habilidade ou competência, um saber fazer - por exemplo, saber desenhar, conseguir representar e traduzir uma semelhança com o visível (em todas as outras artes, mais identificadas com a execução do que com um produto material transaccionável, o talento e a competência não são dispensados). Por outro lado, mas em estreita ligação com o anterior, a evolução da arte conheceu um processo designado como a via da anti-arte, caracterizado pela destituição de todas as qualidades que poderiam ter definido a noção anterior de arte, o que se justifica tanto como um processo interno, de sucessão vanguardista, como com uma questão de subversão política, que seria revolucionária e anti-burguesa. Por sinal, trata-se de uma dinâmica que é anti-institucional para ser imediatamente recuperado no seio das instituições. Com essas duas linhas evolutivas prende-se a desvalorização da crítica, a qual só pode exercer-se como prática da discriminação de qualidades ou falta delas - com a canalização de grandes massas escolares para a área de artes, é essencial para a economia do sistema esvaziar a ideia de talento ou habilidade e silenciar o papel habitual da crítica.
O crescimento exponencial do número de artistas e de estudantes de artes e candidatos a artistas exige que os manifestos, em vez de reclamarem a continuidade de rotinas condenadas, produzam novas análises sobre a realidade presente e troquem as facilidades do ilusionismo político (de esquerda?) pela promoção de novas práticas. O entendimento da prática artística como produção de objectos e acontecimentos que são por natureza transaccionáveis ("consumidos" também no mercado museológico, de facto); a procura de uma sustentabilidade da produção assente no relacionamento prioritário com os seus públicos (em vez do destino institucional garantido e do circuito académico, como ponto de chegada da lógica vanguardista); o reconhecimento da importância das práticas amadoras ao nível da formação, da fruição e também da produção artística são alguns dos pontos a considerar pelos discursos que se queiram de ruptura, ou de reforma.