escrevi no Facebook e transcrevo: "Representantes da cultura apresentam carta de reflexão sobre o estado do sector". Título do Público, que apresentava a sessão em directo, para apenas 50 (!) interessados, que saturavam o canal - não vi, não sei, não gosto. A auto-representação de quem dirige, programa, tutela (ou já dirigiu, tutelou e programa) é um facto insistente que representa bem a complexidade do sector. Os gestores avançam na primeira linha, num desfile de egos sem surpresas, mas os candidatos a artistas e actores parece que não engrossam as hostes: sabem que não há retorno da "mesmidade". Não querem/não queremos mais do mesmo (dos mesmos), há que intervir na crise encontrando outros modos, etc. E aflige a aflição dos desprotegidos oficiais do PS a recolher o lastro pelas margens que lhe falta no lugar próprio."
Há duas linhas de reflexão que parecem hoje necessárias para repensar a criação artística e a sua circulação (distinguindo esses dois momentos, já que a criação pode ser íntima e secreta, e a circulação implica a relação com o público, em diversas modalidades: encomenda, patrocínio, venda e/ou bilheteira, a oferta, a divulgação pela rede, etc).
A 1ª linha requer o entendimento das carreiras artísticas (ou ambições de carreira) como uma opção de risco, de desenvolvimento incerto no plano da sua efectivação real (a existência como artista e o seu reconhecimento social, para lá do período escolar, do auto-convencimento e da possível ficcionação), e em especial, quanto à sua continuidade no tempo e à respectiva viabilidade ou auto-sustentação económica. O risco vital da opção é no entanto equilibrado pela possibilidade da realização pessoal (não alienada nas funções impessoais de grande parte do trabalho assalariado), da independência individualista, do prazer próprio e partilhado, etc.
Está em causa a capacidade para dar sequência temporal a uma intenção artística que se mede pelo reconhecimento da sua qualidade, mérito, êxito, mas também pela auto-satisfação pessoalmente vivida. A actividade e identidade de artista, a "vida de artista", deve ser reconhecida como um trabalho, também como uma profisão (no caso de não se tratar de uma actividade artística amadora, o que também é possível e aceitável, e muito mais frequente do que se julga...), mas dificilmente pode ser encarada como um emprego e raramente existe no quadro do funcionalismo (público ou político).
A condição incerta do artista, a sua insegurança essencial ou radical (que se funda também na procura do novo e da novidade, na rotação geracional, como se verá depois, no ponto 2), é próxima da de outras actividades ou profissões criativas, que geralmente, em face das transformações do tecido económico e do mercado do trabalho, se viabilizam a nível empresarial de iniciativa própria, eventualmente de muito pequena escala. Nesse sentido, a situação do artista antecipou ou abriu caminho a respostas necessárias face às alterações do modelo produtivo antes vigente. Há mais insegurança e também mais espaço para se ser criativo, não só em tempo da primeira formação mas em todo o tempo de vida activa.
É diferente a situação dos técnicos artísticos, da área do espectáculo e das indústrias criativas, que partilham algumas das características da condição de artista (e o envolvimento em projectos artísticos de risco) mas aspiram a garantias de estabilidade profissional associadas à tradição do emprego e mesmo do funcionalismo. E é também diversa a situação dos programadores, gestores e outros intermediários/mediadores, que ocuparam uma posição crescente (e preponderante?) entre os artistas e os encomendadores, sejam eles entidades empresariais com mecenato cultural, agentes privados ou políticas públicas. Se os artistas podem viver à beira da proletarização, à beira da penúria como risco, os gestores ocupam o lugar das burocracias.
O Estado, mesmo social (e mesmo contando com a existência de equipamentos e políticas culturais eficazes), não pode prometer que uma opção individual pela prática artística tenha uma garantia de êxito certa (mesmo que o candidato artista disponha de formação e talentos) e também assegurada no tempo (independente das flutuações da criavividade e vontade, ou dos fenómenos da novidade e da rotação geracional) - mas a opção pelo risco é certamente incentivadora da criação artística: parece até ser da "natureza" da arte, que não é redutível a uma actividade burocrática nem, em princípio, a uma prática oficinal rotineira. Aliás, alguma ou muita da prática artística decorre no espaço do amadorismo, que deve ser reconhecido, estimulado e apoiado (pode ser-se cineasta amador, e mais ainda com os novos meios, mas certamente não encenador de ópera...).
O aumento exponencial do número de artistas e candidatos a artistas - depois de derrubadas as ordens asseguradas pelas corporações e as academias, e ao longo do século XIX, com a aparição do público em geral e do espaço público, correspondendo a novas condições de mercado, e já também nos séculos seguintes - dá lugar a duas situações que traduzem o desiquilíbrio entre a oferta e a procura: a boémia e a aspiração à funcionarização.
Continua
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