Outra vez João Francisco na Galeria 111, com "Uma montanha de coisas" (hoje em último dia e depois com passagem para o Porto).
"Sem título (O Connoisseur - Bouvard e Pécuchet)", 2012, o/t 120x160 cm. (1)
Não parece, mas trata-se de pintura literária (referência aos personagens de Flaubert). Pintura satírica, portanto; enciclopédica e auto-crítica. Diálogo entre o pintor copista e coleccionador, e o seu público, sobre artes maiores (a grande tradição da natureza-morta, com atenção a Cézanne) e menores.
"Sem Título (Pequeno cemitério)" (?). (2)
Os mesmos cogumelos que se encontram acima mudam de cenário e de parede, frente a frente (alguma vida que irrompe?). A literatura também lá está, mas irreconhecível, não referenciada (os cadernos ou livros). São agora os quadros que se mostram como personagens principais, não as louças ditas decorativas de um qualquer coleccionador, ou vendedor de "antiguidades". Mas, virados de costas e colocados entre pedaços gastos de madeiras assim são também restos, mesmo se ainda não destroços, vestígios de outras práticas representativas ou decorativas - aliás, antes de serem restos abandonados, são ainda imagens escondidas, recusadas - obras talvez do próprio J.F. É a pintura reduzida ao pequeno formato mais decorativo, o quadro-objecto, e será a possibilidade prática da pintura que aqui se põe em causa, será a sua continuidade negada por muitos que se questiona - frente à proliferação dos objectos decorativos, do kitsch. (Os quadros 1 e 2 mostram-se um em frente do outro, ligados pelos cogumelos)
"Sem título (imagem dupla - um espelho)".
Pintor de naturezas-mortas, J.F. "copia" as suas encenações (colecções e acumulações ou disposições de objectos), que escapam às limitações convencionais do género. Em vez da mesa, o chão, o que confere às naturezas-mortas a dimensão da paisagem, e lhes concede muitas vezes a aparência de um cenário onde uma qualquer narrativa decorre e se dá a ler. No caso acima, a cópia que a natureza-morta tem de ser é posta à prova pela referência ao espelho, no título, e pela simetria da composição que se desdobra em sucessivas diferenças comparativas. O cenário é um jogo, um puzzle a percorrer devagar, numa tela sem centro (all-over). A caveira própria do género (vanitas), colocada ao meio à direita, aparece à esquerda como máscara de abóbora, e toda a gravidade ainda possível cede à presença dos bonecos em primeiro plano - trata-de de brincar à pintura, ou de enfrentar o seu passado e o seu futuro (ou possível não-futuro) tratando-os com a ligeireza gráfica da banda-desenhada. Se o género se identifica com o virtuosismo, aqui a presença do divertimento (não a paródia, nem a irrisão) é a afirmação mais forte. Um divertimento pictural intensamente reflexivo (mas nada ensimesmado como é grande parte da actual arte sobre arte).
Todos os quadros (pintados ou desenhados) são súmulas mais ou menos complexas das questões que J.F. convoca nas suas pinturas. Aqui, na parte superior e em ambos os lados, aparecem dois objectos que têm presença insistente nesta exposição: duas peças de patchwork com que expressamente se refere a tradição modernista que se entendeu como caminho para a abstracção.
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