Do espaço à paisagem
PEDRO CHORÃO, «Pinturas de paisagem / Landscape Paintings 1972-1994» - Museu José Malhoa, Caldas da Rainha
Expresso Cartaz de 17 setembro 1994
A outra banda, 1991, a/t, 130x162cm
Um museu dedicado ao século XIX e respectivos prolongamentos, onde a paisagem é o género dominante, interroga a sua possível permanência na pintura do presente que não ignora as responsabilidades de ser contemporânea. É uma proposta que confirma o dinamismo de um museu periférico e potencialmente submerso por um acervo onde a importância da história do gosto se sobrepõe à da história da pintura.
O propósito aqui ensaiado toma por objecto não a continuidade da tradição figurativa, que é raríssima, mas uma pintura geralmente identificada como abstracta, e constrói-se por isso como um duplo exercício de leitura. Por um lado, genericamente se questionam os processos de afirmação de uma visibilidade «pura», onde a presença literal dos elementos da pintura e da afirmação do seu suporte plano se substituiria, por redução progressiva, aos exercícios da representação de ambientes naturais, conservando-lhe os efeitos e acrescentando os méritos da auto-consciência dos meios.
Por outro, ao escolher Pedro Chorão para esse ensaio, o Museu das Caldas enfrenta uma obra em que a extensão do percurso, já com mais de vinte anos, e a sua afirmada singularidade justificam plenamente um olhar retrospectivo — que aqui se constrói na pequena escala de 18 obras para um período que vai de 1972 a 1994. «Pinturas de paisagem», o título escolhido por Paulo Henriques, o director do museu, propõe uma revisão original dessa pintura, valorizando como hipótese de paisagem o que foi habitualmente lido como lugar de vibração de cores, apenas gesto pictural.
O exercício de desocultação, que passa pela inédita atribuição do título A Outra Banda a um quadro de 1981 antes apresentado sem título, é, aliás, claramente autorizado pelas obras mais recentes de Pedro Chorão, onde a paisagem se organiza em linhas de água ou céu e onde se inscrevem como sinais desenhos «infantis» de barcos e casas. Esses quadros ver-se-ão numa próxima exposição individual na Galeria Palmira Suso. Eles parecem abrir um mais vasto campo de possibilidades a uma pintura amadurecida e em movimento.
Entretanto, pode observar-se como a anterior produção abstracta de Pedro Chorão se construiu, por vezes sistematicamente, pela observação da arquitectura e, em concreto, pela atenção ao uso da cor na arquitectura popular alentejana, que foi um tema de uma investigação aplicada. A geometria de alguns planos de cor lisa, as janelas assimétricas e interrompidas abertas sobre o azul, os arcos e frisos nasciam de referências transpostas para a tela pelo pintor — e o olhar que tentava negar a sugestão do objecto ou a presença da profundidade apenas obedecia à vontade de preservar regras de um rígido discurso teórico.
Num texto de 88, Fernando de Azevedo reconhecia uma «necessidade do simbólico» nos desenhos de Pedro Chorão. A questão do sentido está, de facto, há muito presente nesta pintura que parece só apelar à muda contemplação, e a anterior exposição, com a sua enigmática «fase egípcia» prenunciava uma vontade de não sacrificar a possibilidade do dizer à exigência de uma elementaridade lírica ou ascética.
Afirmada solitariamente nos difíceis anos 70, parcialmente ocultada pelas promoções de 80, a pintura de Pedro Chorão vai impondo a sua resistência ao tempo, crescendo com o tempo, como as obras que importam.
OUTRAS NOTAS:
1993
Galeria Palmira Suzo, 03-04-93
Passa-se da reflexão, pseudo-reflexão ou diversão sobre uma prática tradicional chamada pintura (a seguir a Rui Serra) ao prosseguimento deliberado da sua tradição, sabendo-se como são problemáticos os seus fins e meios. É numa zona de indefinidos limites, conceptuais e físicos, que se inscreve um exercício de autoconhecimento de uma disciplina, em acções estruturadas por uma sugestão temática que aqui opta por dar acesso a outros significados não estritamente picturais: formas elementares tomadas de um esquemático Egipto e que se traduzem em ideias como «noite/silêncio», «eternidade», «equilíbrio». Trata-se de conduzir como meditação, como intencional manifestação de sentidos, como construção, o que é da ordem do livre agenciamento de espaços e cores. Um modo de passar do acidente à ordem mínima, do acaso à série, abrindo, para além do sentido, um lugar essencial ao ver.
16-04-93
Pinturas de uma nova série, utilizando sinais egípcios (e signos da escrita egípcia) como «tema». Partindo de um exercício sobre os meios da pintura, Pedro Chorão contraria a aspiração à «pureza» ou à redução essencial que marcou algum modernismo com a invenção-adopção de uma rede de sentidos que é também um código estruturador e referencial do gesto e da cor. Reabertura de direcções, e de interrogações, contra a rotina das estratégias auto-referenciais. Prosseguimento da pintura como exercício de comunicação.
Quadrado Azul, 11-02-95
Novas pinturas prosseguem a recolocação pública de uma obra discretamente vivida, fazendo coincidir a sua crescente visibilidade com a reorientação de uma suposta abstracção para uma abertura a um imaginário de infância e, depois, para uma relação directa com o visível. Da desocultação de sentidos interpretativos que antes se viam apenas nos seus efeitos arquitectónicos e de «visualidade pura», passou-se para a convocação de imagens ainda codificadas como memória pessoal e, a seguir, para a aparente transparência figurativa dos referentes (Estudo para Bicicleta ou Óculos?, Séchat II, Os Lápis da Lúcia), sobre a segura base de uma longa experimentação pictural que se expressa como despojamento de fórmulas e de efeitos, «num imediatismo longamento ensaiado» (Paulo Henriques, no catálogo).
25-02-95
O novo curso, mais livre, de uma obra que se viu antes discretamente contida nas margens de uma abstracção definida e que vem agora rompendo facilidades interpretativas para se abrir a novos desafios, das atmosferas e arquitecturas subtis à memória das imagens da infância e, em novos passos, seguramente «desaprendidos», ao exercício do olhar sobre as coisas e as pessoas. Numa nova aventura discursiva que tem sido uma das boas surpresas de um presente timorato.
1998
Clube 50, 14-11-98
O pintor expõe fotografias, inéditas, realizadas entre 1987 e 89 com o apoio de uma bolsa da Gulbenkian para uma investigação sobre a cor na arquitectura popular do Alentejo. O projecto tem uma evidente relação com a sua pintura e, mais directamente, com o exercício da «abstracção» que caracterizou uma das vertentes da sua obra. Na selecção mostrada, não é a tipologia habitual da aplicação do branco da cal e dos frisos de cor nas paredes das casas alentejanas que mais lhe interessa, mas sim o envelhecimento dos muros, as fracturas e as manchas de humidade, os pequenos acidentes arquitectónicos que respondem a situações particulares da construção não planeada, os acasos de uma cor vivida pelo tempo. As imagens fotográficas, resultantes de um olhar sensível às vibrações texturais e às gradações da cor, aplicado num exercício constante de enquadramento e composição, aproximam-se assim das suas próprias telas, sem que exactamente se saiba quem aconteceu primeiro, os quadros aplicados numa estruturação arquitectónica dos planos de cor (a parede, a porta, o espaço flutuante de um azul do céu) ou a observação fotográfica da paisagem construída.
1999
Gal. Palmira Suso, 30-01-99
Todos os
quadros intitulam-se «Foz», seguindo-se o respectivo número de ordem. Não é certo, porém, que se trate de paisagens, apesar de exposições recentes terem permitido reinterpretar como tal muitas pinturas de Pedro Chorão antes vistas como abstracções, pintura «pura». O título pode indicar um local de trabalho ou ser apenas um código que viabilize a inventariação das telas.
Perante estas obras, o espectador decidirá entre uma aproximação dita formalista, atenta ao agenciamento dos elementos da pintura, sustentada na aplicação das tintas líquidas, na
vibração das cores, na ambiguidade arquitectónica dos espaços luminosos, ou uma abordagem que, a partir da inequívoca positividade dos estímulos visuais (aqui sem intenção «deceptiva»), se aplicará em reconhecer sinais e questionar os sentidos possíveis, eventualmente descritivos, narrativos, memorialistas, intimistas, etc. Tratar-se-á assim de reivindicar para o observador uma operação em que se prossiga o trabalho do pintor, sempre parcialmente ocultado ou inconclusivo, substituindo a ilusão tonta de uma contemplação suposta como passiva, que nenhuma psicologia admite, por um processo interactivo de atenção, interpretação e avaliação, potencialmente inextinguível.
Sendo Chorão um mestre no inacabamento das suas pinturas, a questão do sentido que as telas abrem ao espectador não reverte numa experiência da insignificância, aceite como jogo de sociedade; não se parte aqui de um projecto ou ideia a ilustrar, o artista é também um observador da sua própria obra, construída como uma interrogação em acto do seu próprio fazer e oferecida ao espectador interessado e disponível para que a prolongue.
Partindo dos objectos-quadros e da legenda comum «Foz» (eventualmente contando com a memória de um itinerário criativo que ao longo dos anos 90 iluminou com renovados sentidos a coerência de uma obra já longa), é particularmente gratificante circular entre o que vai sendo paisagem, natureza-morta ou intrigante simbiose entre interior e exterior, num cruzamento constante de sugestões e referências que igualmente pode
passar pela inscrição de fragmentos ou emblemas do corpo. A classificação disciplinar (paisagem, natureza-morta, etc.) não é aqui um retorno à história como impossibilidade de invenção, mas mais um meio para ver melhor.
2002
«As formas do gesto», Casa da Cerca, Almada, 29-06-02
Antologia de uma obra já extensa no tempo e mais intensa que prolixa, com uma visibilidade sempre discreta, reconhecida e ignorada pelos discursos que se organizam em décadas ou gerações, preferindo os estilos colectivos às autorias individuais, a desconstrução da arte à sua criação. Reúnem-se trabalhos que vão de 1974 a 96, qualificando genericamente como desenho objectos realizados também como colagens e pinturas, numa escolha que põe em questão limites e incertezas entre disciplinas, guiada pela regra única do uso do papel como suporte e matéria. Paulo Henriques ocupa-se do prefácio («Os Espaços Desenhados»), sinalizando ciclos criativos e uma genealogia de referências que passa das abstracções parisienses às norte-americanas, com homenagens marcantes a Rauschenberg e Jasper Johns, para manifestar depois uma crescente vontade de figuração. «As formas do gesto» (título da mostra), mesmo quando exploraram registos mínimos, não separam a especulação abstracta e a emoção vivencial inscrita no fazer da imagem, com recurso a fragmentos do quotidiano e a evocações de arquitecturas e paisagens.
2005
Teatro Taborda, 12-05-05
Há obras que estão ou parecem estar sempre a começar, reinventando de cada vez os gestos
de que se fazem e as marcas, as manchas, os sinais que se lançam ao
papel. Reconhecemos a leveza luminosa de um azul que é único, o sereno
grito de um laranja, os acordes entre cinzentos ou castanhos, mas ainda
como se assistíssemos à aparição de novas cores. Há imagens que se
esboçam, numa mancha que é nuvem, na descoberta de um barco, num
triângulo que pode ser ou não púbico, mas, nesse encontro quase
acidental com o visto e no jogo dos reconhecimentos que se nos oferecem,
identificar ou definir não é a meta definitiva ou o fim do caminho, mas
mais uma oportunidade, eventual, para sustentar o olhar que interroga e
se deslumbra. Há também palavras (olá, não, H2O, «rain»), numa escrita
incerta, com ou sem significado, mas com evidente humor, brincando com
os sentidos possíveis do que se faz e do que vemos. Fazem parte de um
mesmo exercício que nunca se converte em sistema, que constantemente se
inventa e de desaprende, para estar sempre a principiar, com uma
frescura inesgotável. Um reencontro que volta a ser uma descoberta e que
já se prolonga noutra exposição paralela, inaugurada esta semana na
Gal. João Esteves Oliveira, com obras que vêm dos anos 70 até hoje.
2006
Pinturas, Convento das Mónicas, 25-11-06
A contemplação é uma experiência, uma posição ou uma atitude activa. O que é particularmente reconhecível quando a explicação dos processos ou dos interesses do artista, ou a descrição dos «significados» da obra não transferem para o domínio da informação o que o artista fez e o espectador vê - ou não vê (e em muitas obras contemporâneas não há nada para ver, para tranquilidade democrática de muitas cegueiras).
As cores (alguns azuis, vermelhos, cinzas) são só de Pedro Chorão, mesmo quando as encontramos noutros lugares; a pincelada bem visível, leve e áspera às vezes, com densidade e tempo próprios, alarga-se a um restrito círculo de pintores maiores (como Guston, Johns, Arikha).
Estas últimas obras agora expostas afastam-se de algumas pistas narrativas e de referências de género (paisagem, natureza morta) que estiveram presentes nos anos 90, e também deixaram para trás especulações formais ou espaciais anteriores. São agora menos «decifráveis», mais livres, mais intensas, mais profundas.
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