Introduzir no documentário sobre António Ferro algumas páginas de um Álbum Comemorativo da Exposição-feira realizada em Luanda em 1938, que não teve nada a ver com o director do SPN nem com o seu adversário de sempre, Henrique Galvão, é certamente um private joke ou uma partida pregada ao produtor do filme. O facto de ter sido o artista Fernando Brito, um dos membros do grupo Homeostético, a comentar as imagens é a pista a seguir para desfazer o enigma.
Praticamente ausente da bibliografia sobre as exposições do regime bem como da literatura colonial, a exposição-feira de 1938 prestava-se (levianamente) a entrar no filme sem para isso precisar de justificação. Para baralhar o espectador, apesar da referência a Luanda, a voz off refere que a exposição se fez numa aldeia - "isto só se pode fazer numa aldeia, na cidade não haveria margem de manobra". Isto, uma "exposição que é realmente modernista", "a mais radical das exposições" - apesar de ser uma exposição na periferia, mais pequena que a de 1940 em Belém.
Não se refere que a exposição foi inaugurada por Carmona na sua viagem triunfal pelas colónias, e que foi uma das mais ambiciosas afirmações da capacidade de iniciativa e da ambição político-administrativa da colónia, localmente permitida pelo Plano de Fomento de 1936, quando a aprovação por Luanda de um significativo empréstimo veio alterar a política de austeridade financeira de Lisboa, logo após a saída de Armindo Monteiro do lugar de ministro das Colónias.
A seguir aos poucos meses de exercício de José Silvestre Ferreira Bossa (1935 - 1936), o novo ministro Francisco José Vieira Machado (1936 - 1944) era um banqueiro formado nos quadros do Banco Nacional Ultramarino, e que viria a ser depois e por muito tempo o governador deste. E era então governador geral de Angola (1935-1939) o coronel António Lopes Mateus, que fora ministro do Interior e da Guerra durante a Ditadura (de 1930 a 1932), activo na fundação da União Nacional, Comandante da PSP de Lisboa (1932-1935) e que viria a ser depois presidente do Conselho de Administração da DIAMANG e da Comissão das Colónias na União Nacional (década de 1940).
Esse momento de afirmação própria da colónia, de que a exposição é uma das expressões, é mal conhecido.
Mas se há factores internos à política angolana (e não da política colonial de Lisboa) que permitiram a grandiosidade da exposição local, o facto de o certame ter tido na chefia dos seus serviços técnicos o então "funcionário aduaneiro" Vasco Vieira da Costa, que trabalhava como desenhador na Câmara municipal de Luanda, assegurou-lhe uma qualidade da cenografia e da arquitectura expositiva do melhor nível. Muito jovem ainda (n. Aveiro 1911), viria em seguida formar-se em arquitectura no Porto, regressou em 1949/50 e foi logo depois o celebrado autor do Mercado de Quinaxixe, em Luanda, de 1950-52/53 (destruído em 2008).
Tudo isto não tem nada a ver com António Ferro, nem mesmo a produção do extraordinário álbum fotográfico comemorativo, editado pelo governo de Luanda, cujas imagens se atribuem a C. Duarte, nome que encobre Firmino Marques da Costa (n. 1910-?), repórter fotográfico do Diário de Notícias que acompanhava a viagem de Carmona (talvez) ao serviço na Missão Cinegráfica dirigida por António Lopes Ribeiro para a Agência Geral de Colónias, do Ministério do Ultramar e não do SPN.
Não se tratou na referência a Luanda 1938 de fornecer qualquer dado de contexto, mas apenas de um equívoco, tirando partido da raridade do álbum fotográfico.
António Ferro, "Estética, Propaganda, Utopia", realização de Paulo Seabra
A determinada altura, lá mais para o fim da coisa, Margarida Acciaiuoli, em conversa com José-Augusto França, arruma a questão afirmando que António Ferro "não era levado a sério". Eu diria que que o documentário, e vi-o duas vezes, também não...
Posted by: AB | 12/19/2012 at 15:35
Pois é, AB, a M.A. afectou o fim da 1ª parte, e a coisa só melhorou pouco na 2ª. Além das formigas e dos efeitos fotográficos gratuitos, e das mãozinhas que saiem das caixas, etc, temos o problema dos depoimentos. Uns são pré-históricos (o Rui Mário e o pobre Rogeiro - justifica-se o TOM que foi daquele tempo), outros são intemporais ou a-históricos, de gente que não se preocupou em rever a matéria antes da filmagem e menos ainda de actualizar a antiga informação (o JAF e a Margarida, o Rosas). A moda dos documentários sem narrador, sem texto autoral e sem decidida investigação própria tem tido efeitos preguiçosos: cada um fala para o seu lado e da soma de intervenções não sai nada de jeito. Salvaram-se um Senhor de direita, o Fernando Guedes, o José Sasportes, que sabe de dança, e a Vera Marques Alves, que sabe de arte popular. Neste caso e noutros, a baralhada que fazia o Salazar com os seus diferentes e opostos servidores saiu vencedora...
A coisa foi bastante discutida no Facebook onde me dizem que escrevo de mais:
1 . Também achei muito mal, e acabou pior com a Margarida Acciaiuoli a dizer entre risos que ninguém levava o Ferro a sério. O disparate é grosso e deve vir do hábito de desvalorizar todas as figuras do regime: no 2º Pós-Guerra (e ao longo dos anos 50), os artistas anti-SNI ganham peso e Ferro deixou de ter os modernos mais jovens do seu lado; há novos desiquilíbrios entre facções do regime e uma nova oposição interna desenvolvimentista que se serve da crítica ao folclorismo nacionalista (que antes tinha uma dimensão moderna) para ganhar posições; o regime de Vichy tinha posto em cheque algumas relações ideológicas da etnografia da época (que a Leste resistiram inalteráveis). Mas tudo isso, que leva à demissão e ao exílio, não permite aquele disparate professoral avalizado pelo França, algo incomodado (pareceu-me).
2 . O Duarte Pacheco leva o Ferro a sério e constrói-lhe o MAP; o Henrique Galvão leva o Ferro a sério e combate-o na rádio e na praça pública de Belém (vejam-se o prefácio do catálogo da Secção Colonial de 1940 - e os cortejos históricos); folheie-se a revista Panorama para ver que os intelectuais e artistas dos anos 40 o levam a sério. Aliás, o filme preencheu-se com as formigas, exercícios visuais (os castelos de catálogos repetidos estupidamente), excessos de depoimentos e discursos apatetados (Lourenço em 1º), e muito pouca ou nenhuma documentação sobre factos, instituições, exposições, iniciativas, etc. Já não dá para recuperar na 2ª parte. Salvou-se o Fernando Guedes, editor, crítico de arte, figura da direita (não indicado pela RTP na lista dos entrevistados), com algo de concreto, e claro, a Vera Marques Alves.
3 . Parece-me que o Ferro fez um forte 1º tempo do regime, com certas vanguardas artísticas e políticas cosmopolitas, mas o novo contexto ideológico do pós-guerra deixou-o vulnerável às diferentes oposições internas e cortou-lhe o acesso à oposição externa ao regime. Deixou de ser útil no final dos anos 40.
4 . O Ferro foi muito mais que um propagandista de Salazar e um defensor das ditaduras - esse foi o quadro político da sua acção e a ligação institucional ao apogeu dos fascismos. A Política do Espírito, a defesa da arte moderna, as campanha do Bom Gosto (a publicidade, a decoração, a arquitectura, o turismo, etc), o interesse pela etnografia e a ligação entre popular e moderno (usando a busca das raízes nacionais num diálogo cosmopolita e partindo da arte e das tradições populares para fundar novas vanguardas modernistas - tudo isso é próprio do seu tempo internacional) são linhas de actuação que impôs e com que deixou prolongadas marcas.
5 . Julgo que a Acciaiuoli não se refere ao passado recente (em que o Ferro tem sido bastante levado a sério e reconsiderado pela informação de esquerda), mas ao seu tempo de actuação - e isso é que é grave: o Ferro teve muitos adversários e críticos: a sua distância face ao país colonial criava-lhe inimigos; por outro lado, quer as orientações vanguardistas quer a procura das raízes populares da tradição (numa síntese difícil de cosmopolitismo e nacionalismo) traziam-lhe incompreensões e inimigos.
6 . Uma ou duas questões: Ferro não pode reduzir-se à "propaganda nacionalista" - pelo contrário: o que tem de nacional (nacionalista?) é cosmopolita e moderno, e é por isso que Henrique Galvão o ataca frontalmente no catálogo da Secção Colonial: "A arte em Portugal não tem cunho nacionalista - esse cunho que podia e devia ser a razão da sua originalidade. Encontra apenas, aqui ou acolá, o amparo e o esforço de um ou outro artista cujo espírito criador pretende reagir contra o seu internacionalismo - ou antes: contra a sua falta de expressão definida. Escreve-se à francesa, pinta-se à espanhola, constrói-se à americana - mas nem na forma nem nos motivos isto é: nem na técnica nem na inspiração, os artistas são portugueses." Fala-se demais do ataque aos modernos de Ressano Garcia na SNBA, mas ignora-se a oposição longa de Galvão, nacionalista-colonialista: http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2010/03/debates-de-1940-arte-popular-e-arte-portuguesa.html
7 . Apesar de Galvão vir a cair em desgraça (no final dos anos 40, tb - esse passando à oposição), a não-relação de Ferro com o Império é uma das suas fragilidades. Por outro lado, os ditadores de longa duração precisam de ir mudando os seus homens.
8 . Nenhuma "recuperação ou reabilitação" (não dá para reutilizar) mas uma atenção que conduza a investigações que nunca foram feitas. A nossa história da arte (até mais do que a outra) foi, além de outras coisas (muitas memórias pessoais e pouca investigação factual, muita autopromoção) uma história oposicionista, marcada pela vontade de consolidar campos exteriores ao regime - daí vários esquecimentos e facciosismos. O posicionamento político no regime conhece-se (por grosso, sem atenção às fracturas internas), a importância cultural é mais ignorada: ou seja, o Ferro de Keil do Amaral (antes de 45), de Mário Eloy, Bernardo Marques e Carlos Botelho, de Mário Novais, ou da arte e arquitectura popular (antes do Lopes Graça, do Inquérito, do Ernesto de Sousa, etc).
Posted by: Alexandre Pomar | 12/19/2012 at 20:01