A mais interessante abordagem das questões de ordem identitária e mitológica à volta do conceito e do alcance estratégico da lusofonia, entre as que conheço, parece-me ser a de Moisés de Lemos Martins, professor da U. do Minho*, em " Lusofonia e Luso-tropicalismo : equívocos e possibilidades de dois conceitos hiper-identitários " (foi a Conferência inaugural no X Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa, subordinado ao tema Lusofonia, realizado em São Paulo pela Pontifícia Universidade Católica, em 2004). http://hdl.handle.net/1822/1075
Sendo uma análise que se propõe pensar a lusofonia como "espaço de cultura" e "cultura lusófona", interrogando-se sobre o que enquanto cultura respeita ao seu "carácter mitológico, simbólico e imaginário", o autor começa por colocar-se num "ponto de vista bourdieusiano" a partir do qual "visa a figura de lusofonia como uma classificação prática, isto é, como uma di/visão do mundo social. Sendo uma classificação prática, a lusofonia está subordinada a funções práticas e orientada para a produção de efeitos sociais."
Em vez da suposta confusão entre lusofonia e actualização portuguesa, consciente ou não, de qualquer passado colonial, que constituiria como nostalgia imperial a inevitável carga ideológica do conceito, o autor afirma, servindo-se de uma releitura positiva de Eduardo Lourenço:
"As figuras de lusofonia e de comunidade lusófona não podem, pois, remeter para um imaginário único, e sim, obrigatoriamente, para múltiplos imaginários lusófonos, como bem acentua Maria Manuel Baptista (2000, «O conceito de lusofonia em Eduardo Lourenço: Para além do Multiculturalismo ‘Pós-humanista’, sweet.ua.pt/~mbaptista/toppage1.htm), retomando Eduardo Lourenço.
"E, neste sentido, aquilo que os portugueses entendem por lusofonia só em parte poderá coincidir com aquilo que o Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Galiza imaginam e concebem como tal. Com efeito, o imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o imaginário da pluralidade e da diferença (Lourenço, 1999: A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem na Lusofonia, Lisboa, Gradiva, 112).
"Por essa razão, se quisermos dar sentido à “galáxia lusófona”, não podemos deixar de a viver como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, guineense, cabo-verdiana, são-tomense ou timorense (Ibidem). Ou seja, o espaço cultural da lusofonia é um espaço necessariamente fragmentado. E a comunidade e a confraternidade de sentido e de partilha comuns só podem realizar-se pela assunção dessa pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento aprofundado de uns e de outros."
Trata-se, aliás, de impugnar aqui críticamente o que seria uma generalização abusiva de Eduardo Lourenço quando pretendeu que “o sonho de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, bem ou mal sonhado, é por natureza – [e a natureza sempre foi] sobretudo história e mitologia – um sonho de raiz, de estrutura, de intenção e de amplitude lusíada” (Lourenço: 1999: 162- 163). De facto o ensaismo de Eduardo Lourenço, Alfredo Margarido e Miguel Vale de Almeida sobre estes tópicos tem alimentado a rotina académica especializada nas elocubrações identitárias, prolongadas talvez paradoxalmente na retórica dita pós-colonial, mas a sua operacionalidade é exígua quando se trata de passar dos bancos da escola ao relacionamento intercultural e internacional.
Falando de efeitos sociais, Moisés de Lemos Martins invoca em particular a eficácia da "figura da lusofonia" no caso de Moçambique que também pertence à Commonwealth e no caso de Timor-Leste. Mas de um modo mais alargado, o que cabe à ordenação simbólica do mundo passa a ser posição de intervenção no quadro da geo-estratégia:
"tomo a figura de lusofonia como definição do mundo que concorre com as definições rivais de comunidade britânica e Commonwealth, comunidade francófona e francofonia e comunidade hispânica e hispanidade. Num tempo pós-colonial e globalizado, estas figuras exprimem a luta pela ordenação simbólica do mundo. O que se joga nesta luta simbólica é a divisão da comunidade internacional em áreas culturais, dando forma àquilo a que Samuel Huntington (2001) chama a guerra das culturas (2001 [1996], O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva). Entretanto, as sociedades transcontinentais, cujos projectos alastraram antes de a globalização se autonomizar como variável dominante, foram elas mesmas fraccionadas por essa realidade superveniente: o Brasil e os Estados Hispânicos convergem no Mercosul; a francofonia, a Comunidade Britânica, a lusofonia, o panarabismo, desenvolveram linhas diferenciadas na unidade do continente africano; o Corão apela à identidade de um cordão muçulmano que, de Gibraltar à Indonésia, divide o norte do sul do mundo (Adriano Moreira, 2004: 2004, “O Regresso de Gilberto Freyre”, Recife, Fundação Gilberto Freyre,9). Nestas circunstâncias, a tarefa de harmonizar tão diferenciadas e múltiplas filiações, umas baseadas na experiência e na história, outras induzidas pelas leituras do futuro premente, é certamente uma tarefa mobilizadora para os governos que exercitam todos uma soberania em crise, mas é igualmente uma tarefa aliciante de investigação (Ibidem)".
Mais do que Lourenço, interessam a uma abordagem de conteúdos imaginários, no caso da lusofonia, os entendimentos de Gilbert Durand e Gilberto Freyre, devidamente contextualizados.
(continua)
* Menos conhecida que a produção académica das universidades de Lisboa, a investigação em torno do conceito e das práticas da lusofonia parece mais profícua na Universidade do Minho:
https://repositorium.sdum.uminho.pt/browse?type=subject&value=Lusofonia
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