Não posso falar sobre o cacilheiro da Joana Vasconcelos porque não o vi. Falo sobre as reações ao cacilheiro da Joana, que não são reacções críticas porque os comentadores não o viram também, e não há juízo crítico possível com honestidade sobre uma obra de arte visual não vista, ou musical não ouvida, literária não lida, etc. Sabe-se que o habitual, mesmo para a crítica de arte, ou em especial para ela, é falar sobre press-releases e conferências de imprensa sobre intenções: está lá tudo explicado, ready-made, e melhor se for com ajuda do croquete. E também habitual é o ressentimento perante o sucesso, facilitado pelo não-ver e pela preferência igualitária pelo medíocre.
Por que razão a arte contemporânea incomoda aqueles de quem não se esperaria tal incómodo? Por ser arte? Por ser contemporânea? Por ser obra de uma mulher artista? Por se tratar de uma artista que se fez a si própria, sem vir de famílais ricas, sem ter uma segunda profissão comercial a pagar-lhe a “vida artística”, sem ter sido funcionária da SEC ou directora de museu, sem ter sido promovida ou produzida por uma galeria ou por um crítico, sem ser a cabeça mediática de um grupo, ou movimento ou geração (se tais coisas ainda existem)?
E se tentássemos adivinhar o cacilheiro-obra (não é uma caravela de filigrana…) de maneira oposta à reacção veiculada por três ou quatro dos meus amigos e conhecidos, com adesões bastantes, como um genial exercício artístico de crítica institucional: “Sobre” a ideia de representação nacional que é intrínseca à Bienal de Veneza (e a todos os certames do tipo, incluindo a Documenta - a Bienal, com a sua infra-estrutura de pavilhões permanentes é uma herança centenária das Exposições Universais, e voltou a sê-lo depois do sobressalto de 1968). E também “sobre” a eterna falta de um pavilhão português nos Giardini ( e este ano a falta total de pavilhão, mesmo periférico), “sobre” a arte em geral e/ou a cultura como representação de um país no confronto internacional, “sobre” o trânsito entre “arte elevada” e artesanato, lavores e artes decorativas, tradição nacional e produtos nacionais, a marca nacional, aas artes femininas, o comércio da arte e o turismo cultural (está-se sempre a defender o impacto da cultura na economia…), “sobre” o trânsito distintivo entre obra de arte e produto artístico – e em geral sobre a circulação ente instâncias hight & low que estão obviamente associadas mas que alguns inesperados puristas vêm recuperar por aristocráticas ou modernistas razões ("the great divide" é o poder). Ou a ideia de representação, por ser marketing, é da alçada dos “marketeers” (?) e designers, gestores do produto, e a JV está a perturbar corporações profissionais recentes mas entrincheiradas?
Quando é a doer (para habitar, passear, viver), os voyeurs púdicos reagem! Agitam todas as militâncias políticas e habilitações disciplinares para denunciar o escândalo. E este é pricipalmente o da ameaça do êxito, êxito de público, ainda por cima. Sempre sempre contra a arte de massas (Noel Carroll)! Têm-se incomodado com as medíocres representações anteriores que asseguravam o poder do “milieu”, do “meio da arte”? Nem ouviram falar, nem resta memória (excepto a do Pedro Cabrita Reis, por sinal). Agora, ao contrário dos anteriores, garante-se que a JV, afinal,apesar do que diz, não desconstrói, não subverte, não “reflecte sobre”, não fornece as chaves para o “discurso” ser escolar e politicamente correcto. A obra é manchada pela ambiguidade, é diminuida pelo gigantismo, é prejudicada por ser o governo em exercício a acompanhar a Veneza.
Quanto à escolha política, importa ver (embora se trate do domínio da anedota) que quem agora apresenta a Joana como representante herdou a escolha do seu antecessor Viegas, que está a recuperar o prestígio dito intelectual usando a piada homofóbica e voltando à direcção da "Ler". O secretário Xaestamos no terreno da representação nacional (Veneza é herdeira das exposições universais, com os seus pavilhões nacionais - há anos, o grego Takis, que foi um grande artista, fechou o seu e pôs uns ferros cá fora... mas já não era um gd artista e foi isso que mostrou). Como no desporto, a bandeira está lá antes e durante as provas. A Joana parte dessa realidade. Em vez de a querer ignorar (recalcar) trabalha com ela, usa-a, evidencia-a, coloca-a em questão, não num enunciado abstracto (verbal) mas através das suas obras (produtos/produções), que são já, elas mesmas, questionamentos de tradições, de fronteiras (arte e artesanato, high and low, vanguarda e kitch, à Greenberg, artes femininas, arte e decoração, original e recriacão, etc). Está lá tudo o que é importante questionar.vier foi quem em 2007, enquanto era director-geral das artes com o ministro socialista Pinto Ribeiro travou a escolha da Joana como representante - já ía em curso e dotada do patrocínio do ministro Manuel Pinho - numa cedência muito pouco clara às movimentações do "meio da arte". Saiu-lhe afinal o tiro pela culatra mas já toda a gente se esqueceu do episódio.
Quanto a custos, sabem que a retrospectiva do Sarmento em Serralves custou mais de 200 mil € (previstos à partida c. 125 mil !!), ultrapassando a verba da SEC para Veneza (175 mil)? E para quê? Para ampliar até à exaustão aquela variação sobre o mesmo e/ou o pouco, que o Público e a LSO reverencialmente puseram no 1º lugar do top do ano? Sim, cara Vera Marques Alves, foi bom ter lembrado o rabelo de Paris levado pelo Ferro em 1937, mas esse, mal ou bem, tem sido o curso da arte desde a pub do Warhol ou a bd do Lichtenstein, desde o ready-made, que aliás já não era à data uma invenção (mas apenas uma constatação e um enunciado crítico,... desde que a geração impressionista passou a ocupar-se da vida moderna). O rabelo do Ferro estava numa feira de amostras; com a Joana e o cacilheiro passamos do popular tradicional ao moderno urbano e de massas (seria pateta se a Joana levasse uma caravela de filigrana), fazemos entrar o barco no espaço da arte, numa feira de “mostras”. Bom contributo também a memória, trazida pelo Frederico Duarte, do pavilhão português na Exposição de Paris de 1889, cujos interiores ficaram a cargo de Rafael Bordalo Pinheiro.
A lembrança do rabelo e do Bordalo enriquecem a nossa relação com o cacilheiro. Relacionamo-nos com um objecto com o que sabemos, com o conhecimento que temos e as emoções que ele evoca. Também com a arte, ou com algo que nos é proposto como arte (e a arte, que alías não existe - Gombrich -, é um desafio maior por isso mesmo, por essa exigência de atenção enquanto arte). E porque tudo pode ser arte (no início do séc. XX entraram no espaço da arte as produções gráficas e materiais dos loucos, das crianças, dos ingénuos, dos amadores e dos "primitivos" - já foi há tanto tempo e ainda não entrou nos costumes porque as escolas não passam essa informação, para não se desautorizarem) é que interessa distinguir não o que é ou não é arte (questão de policiamento?) mas o que é boa e má arte, arte com ou sem qualidades (e quais). Porque a má arte também é arte, ao alcance de todas as mãos.
Na Bienal estamos no terreno das representações nacional, categoria arte (Veneza é herdeira das exposições universais, com os seus pavilhões nacionais distribuídos pelos Giardinis - há poucos anos, o grego Takis, que foi um grande artista, fechou o seu e pôs uns ferros cá fora... mas já não era um grande artista e foi isso que mostrou). Como no desporto, a bandeira está lá antes e durante as provas. A Joana parte dessa realidade. Em vez de a querer ignorar (recalcar), trabalha com ela, usa-a, evidencia-a, coloca-a em questão, não num enunciado abstracto (verbal) mas através das suas obras (produtos/produções), que são já, elas mesmas, explorações e questionamentos de tradições, de fronteiras (arte e artesanato, high and low, vanguarda e kitch, à Greenberg, artes femininas, arte e decoração, original e recriacão, etc). Está lá presente o que é importante interrogar e apreciar.
E se a capacidade de perturbar (em vez da admiração pasmada) é uma medida de avaliação, a Joana é a maior!
Nesta área são raros o não preconceito corporativista e a análise sólida, informada e objetiva. Saúdo-o por isso. Sobre as obras, podemos gostar e desejá-las ou não... Mas isso não é importante, é apenas pessoal e a arte não o é. Quando procuro alguma sobriedade (e seriedade) intlectual passo por aqui.
Posted by: dora | 02/26/2013 at 22:56
Caro Alexandre,
Não é necessário ver a obra da Joana Vascocelos para poder criticá-la. Basta ouvir uma descrição para saber do que se trata: arte funcionalista, que brinca com as metáforas com a mesma profundidade com que organizam os teatrinhos na escola, ou seja, sem profundidade nenhuma. É o tipo de arte que aposta no chamado "conceito", à designer, e cuja produção, executada por equipas de assistentes, não passa de redundância e desperdício de energia e muitas vezes, de dinheiros públicos. A Joana Vascocelos não é uma artista, sequer, mas uma decoradora de interiores, organizadora de eventos e brincadeiras que promovem uma imagem do país que só interessa ao poder. Arte para espantar a burguesia (como diria o Batarda) e entreter o povo.
Posted by: Marco Mendes | 03/08/2013 at 09:24
Obrigado pela atenção ao blog e o interesse em colaborar. Você usa a palavra "criticar" no sentido de dizer mal. Também faço isso às vezes, mas aqui preferia falar de crítica de arte, que exige saber de que se fala. Julgo que emprega a expressão "arte funcionalista" de modo desajustado e que desrespeita os "teatrinhos na escola" - se calhar têm alguma ou certa "profundidade". O "tipo de arte" que aponta é o da arte conceptual, muito valorizada por bastantes desde os anos 60 do séc. XX.
Não consigo perceber como você se considera qualificado para atribuir certificados de "artista" a quem quer que seja - só as escolas têm esse "papel" e não serve para nada, não vale nada (parece que as Finanças também passam certificados). E - entre muitas outras coisas possíveis - veja lá a contradição entre o que "interessa ao poder" (qual poder?) e a ideia de "espantar a burguesia" (quer dizer afugentar?, assustar?, ou será surpreender?). E o poder é todo igual, todo condenável? Outra coisa: quase toda a arte tem por função (é funcionalista?) surpreender e seduzir a burguesia, e entreter o povo (e pode entreter-se transmitindo conhecimentos e ideais - já o Gil Vicente entretinha a corte e o povo...). A música, a dança, o cinema, a televisão, o teatro, o circo, o music-hall, a literatura, a bd, a ilustração, a arquitectura são arte - surpreendem e entretêm, espantam e divertem (no caso da música e da dança e do cinema e da televisão e da literatura e da arquitectura, pelo menos, podem ser outras coisas e também arte - felizmente nunca fica estabelecido à partida e há revisões da história, oposição de critérios: nunca há sossego). Acho que lhe convém desarrumar as ideias e ter mais abertura de espírito.
Posted by: Alexandre Pomar | 03/08/2013 at 10:12