Agora que os refugiados/retornados tomaram a
palavra e a imagem - veja-se "Depois do Adeus" e leia-se ainda o grande
texto memorialista da Vanessa Rato no Público, porque são os filhos dos
refugiados que falam mais alto -, e agora que o "mercado da saudade" deu
lugar à atenção sobre as possibilidades abertas pelo desenvolvimento de
Angola e Moçambique - abertas para os seus povos (esperemos) e para um mundo globalizado,
e para europeus empobrecidos pela roda da história (e está muito bem
que ela gire, apesar das novas vítimas que ficam pelo caminho), há que
pôr outros temas na mesa, ao mesmo tempo, para fazer mais peso:
Um diz respeito às guerras civis (e às guerras internas aos partidos no
poder) que começaram após as independências e fizeram mais
vítimas que as guerras de libertação ou coloniais; os países empobreceram então até
níveis extremos devido a conflitos que eram pós-coloniais
(pós-independências) mesmo se agudizados ou mesmo conduzidos pela antiga
oposição entre blocos e pelas políticas do apartheid da África do Sul.
É preciso separar as realidades das guerras coloniais e das guerras
civis - e ninguém tem razões de orgulho ou de retaliação. O tema "A África
começa mal" (título de um livro de René Dumont, trad. port. 1965) atravessa quase todas as independências, desde os anos 60,
as outorgadas e as conquistadas, e não só porque as sementes deixadas
pelos colonizadores estavam às vezes envenenadas - outras sementes eram
magníficas (lembre-se a presença de Ulli Beier na Nigéria,
impossibilitada pela Guerra do Biafra em 1967) e foram destroçadas: é
preciso ver caso a caso, país a país.
Segundo ponto diz respeito às especificidades variáveis do tempo do colonialismo português,
que foi republicano-maçónico-desenvolvimentista
e por vezes autonomista (era o progressismo compatível com a época,
racista, africanista, etc), em especial em Angola, na aspiração de um
novo Brasil;
que foi imperial, reaccionário e segregacionista sob o 1º período do regime de Salazar (até aos anos 50);
que foi ou tentou ser reformista e integracionista depois (com Sarmento
Rodrigues em especial, e depois dele - mas o Adriano Moreira faz muito
para ocultar o comandante que ele substituiu e depois demitiu),
procurando novas formas de sobrevivência para a relação com a
"metrópole" e garantias de continuidade das minorias brancas, mas
contrariando sempre, por interesse próprio de Lisboa, o sentido que tomavam as independências tipo Rodésia do Sul
de Ian Smith;
que se fechou às soluções óbvias e inevitáveis após o
início das guerras de independência, ao mesmo tempo que acelerava as
estratégias do desenvolvimento económico local, e foi sabendo ainda e
então jogar a seu favor com as minorias mestiças (e algumas elites negras) promovidas, chamadas a
interpor-se numa oposição social que não era a preto e branco, em grande
medida ligadas a sectores políticos democratas com expressão pública que
eram também tolerados, e que conseguiu ainda contrariar as aventuras
das independências brancas e a colagem ao apartheid, etc. Não entremos na armadilha do "modo português de estar no mundo", embora julgue que a lição sociológica de um Gilberto Freyre é muito mais profunda e duradoura do que as mastigações identitárias de um Eduardo Lourenço...
As
generalizações são em geral abusivas e vêm de muitos lados (as simetrias
argumentativas e a convergência no erro são temas a explorar).
Para se entender onde estamos (todos) é indispensável esmiuçar os episódios dos capítulos anteriores.
A pior das atitudes é dar cobertura a racismos de sentido inverso,
aceitar raciocinar em termos de culpas históricas como forma de
chantagem no presente, fazer concessões (tacticistas?) a discursos
alheios e circunstanciais pensando que dizer o discurso do outro (e a
diferença é legítima) nos serve no diálogo com ele, na intermediação
entre interesses e também na intervenção cultural ou política aqui.
#
Quando se fala de "branco a escravizar pretos" convém lembrar que as economias
antes de serem feudais eram esclavagistas e que continuaram depois a
contar com escravos, servos e operários e/ou trabalhadores explorados
até aos nossos dias (explorados é muitas vezes uma expressão "relativa",
porque deve dizer-se que há patrões que se exploram a si pps muitos
mais horas por dia e vivem sempre endividados, enquanto para outros serem explorados é um grande progresso face às condições de vida anteriores).
A escravatura e o esclavagismo (ou depois a existência de escravos, o
que não é o mesmo porque o modo de produção evoluiu, ou progrediu) são quadros civilizacionais que coexistiram com os mais altos índices de
civilização e cultura - a Grécia, que inventou a democracia e que a esse
título parece merecer a alguns uma especial atenção no caso da dívida,
sustentava a organização exemplar da sua vida colectiva na exploração de
escravos e na menorização das mulheres, o que não perturba a admiração
que se tem pela Atenas de Péricles, Sócrates, Aristófanes e Cia.
Continuo lembrando que os "descobridores" brancos das Áfricas negras
não levaram o esclavagismo a supostos paraísos originais, nem inventaram as escravaturas, que ainda não poderiam considerar uma aberração
moral ou um constra-senso económico; de facto, tornaram-se compradores
de escravos negros que outras tribos negras (ou as suas mesmas tribos)
lhes traziam às praias a vender, juntamente com outros "produtos", e em
parte assim substituíram outros importadores e traficantes de escravos
que vinham dos países então muçulmanos buscar tal "mercadoria" para seu
consumo, ou de outras sociedades negras.
Aliás, o que era prática
corrente e aceite, antiga e generalizada, começou a ser contestada pelos
pensadores europeus (ocidentais), ao mesmo tempo que o desenvolvimento
da economia industrial foi evidenciando a irracionalidade económica de
tal prática. Fica-lhes esse mérito intelectual, ainda que a prática fosse demorada de erradicar.
Estou farto de complexos de culpa desajustados, tão mais idiotas quanto reportam a desconhecidos antepassados colectivos que tiveram a culpa de ser do seu tempo; é preciso criticar o que deve ser criticado hoje, mas sempre com rigor histórico e com o sentido de justiça acertado com os tempos de hoje, que não seja errado por ser anacrónico. Este comentário tem a ver com uma avó beirã do Daniel Ribeiro que só viu pretos quando apareceu a rtp; se fosse de Setúbal teria certamente sangue africano... O que se supõe ser politicamente correcto é uma inconveniência cultural e uma falha estratégica.
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