Disse que "desta vez estou de acordo com o António Guerreiro, mas tenho de ler outra vez para ter a certeza". De facto, à segunda e terceira leitura, não estou de acordo.
"Quem o vê como algo completamente inconsequente e irrealista porque esquece deliberadamente o depois, o que viria a seguir à realização do acto que tal injunção verbal — “Que se lixe a Troika” — advoga como imperativo, esquece completamente que um dos gestos característicos do imaginário de Esquerda consiste em recusar os dados. Assim o faz porque considera que estes não são deduções obrigatórias da própria realidade, mas decorrem de um quadro ideologicamente construído, no interior do qual as questões são colocadas e os objectivos definidos, ficando todo o pensamento refém de esquemas e “clichés”. Dito de outra maneira: trata-se de recusar não tanto os próprios dados, mas os pressupostos a partir dos quais eles foram produzidos." *
Vejamos: "um dos gestos característicos do imaginário de Esquerda consiste em recusar os dados" -- mas há O imaginário de Esquerda? UM, mesmo com maiúscula em Esquerda? Espero que não, e então o raciocínio, se não é inconsequente, é inconsistente. Quanto a "recusar os dados", explica-se adiante: mas é a Direita (com maiúscula) que considera que os dados "são deduções obrigatórias da própria realidade"? Qual Direita? Não tem sentido nenhum...
O imaginário da Direita (?!), pretenderá AG, não "recusa os dados", "considera"-os "deduções obrigatórias da própria realidade"; eles, "dados", "decorrem de um quadro ideologicamente construído, no interior do qual as questões são colocadas e os objectivos definidos, ficando todo o pensamento refém de esquemas e “clichés”".
Curiosamente, AG aplica aqui à Direita o que se considera próprio da Esquerda, ou seja, a posse e o uso de "um quadro ideologicamente construído, no interior do qual as questões são colocadas e os objectivos definidos", o qual serve precisamente para "recusar os dados" e reflectir sobre eles, retirando-os da ordem ingénua do "dado" para os interpretar como construção, produção de ilusões ou de conhecimento. Um dos problemas é que AG atribui à Direita algo em que esta não se reconhecerá, o que é um mau princípio de conversa e que só pode conduzir a um diálogo de surdos. Quem é que se quer proteger num diálogo de surdos? O AG como intérprete ou porta-voz ensaístico da Esquerda, contra uma suposta Direita ingénua. Não vale a pena, não se ganham guerras assim.
"Ficando todo o pensamento refém de esquemas e “clichés”" -- cito -- é precisamente uma fórmula que é habitual aplicar-se a uma esquerda, ou a várias esquerdas, que repetem leituras estereotipadas de uma realidade em mudança e soluções ilusórias. Parecendo evitar esquemas e clichés ao escrever difícil, AG não faz mais do que usar também um cliché, mas virando-o do avesso. Continua a ser uma facilidade, embora pareça ser um argumento.
Mas ele também escreve o que segue: 1. "toda aquela gente parece ter perdido os gestos que outrora serviram para exibir um puro meio (e é esse o sentido primeiro e mais próprio da política, como nos ensinou Hannah Arendt) e avança e entoa frases como se fosse sonâmbula." (Mas que esquerda é que aprendeu com H.Arendt?)
2. “ 'que se lixe a Troika' poderia surgir como um gesto passível de se traduzir em revolta ou insurreição, que é uma das suas variantes. Mas, como sabemos, é um gesto mais tímido de protesto." (Menos tímido seria 'Que se foda a Troika'?)
3. “ 'Quando o único utensílio conhecido é o martelo, todos os problemas são considerados como pregos.' Na sua expressão mais actual, que é a da política em que vivemos, este martelar incessante é uma máquina negativa que só produz o nada a partir do nada." (Quando é que se perdeu a foice, e o que vale um sem a outra?)
4. "Mas saberá, quem entoa a canção ('Grândola'), apreender o que é absolutamente inédito na actual situação, ou estará o seu gesto, como parece, preso a um encanto mítico, a uma cegueira que impede de estar à altura das exigências do nosso tempo?" (E se falássemos do que é inédito? E o que aconteceria ao "quadro ideológicamente construído"? -- de Esquerda, entenda-se.)
Tenho a impressão que o AG viu bem o que se passou e aponta-o desassombradamente -- o sonambulismo, a timidez, a produção do nada e a cegueira --, mas, como não quer ou não pode contestar realmente aqueles que viram o acontecimento de 2 de Março "como algo completamente inconsequente e irrealista", faz a meio da crónica uma espécie confusa de pirueta com "o imaginário da Esquerda", ou seja, um exercício de vacilação discursiva para que não o julguem de direita.
De raio de preocupação! Para "A sensibilidade da Esquerda" (para usar as mesmas generalidades) convém às vezes atraiçoar o rigor de pensamento para preservar o contexto convivial? A crónica (no Expresso ou no Público, órgãos do grande capital, ou, vá lá, da burguesia), é um género que vive do funambulismo.
* "A multidão sonâmbula", em "Estação Meteorológica", Público, Ipsilon, 8 de Março de 2013, p. 31.
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