ANTÓNIO DACOSTA
Uma pequena nota de 1988 (Arquivo Expresso), um notícia de 1992 ou 93, outra nota de 2006 (Ratton)
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"Imagens partilhávels"
ANTÓNIO DACOSTA
Fundação Gulbenkian
Revista 27 Fev. 1988, pág.14
Podia ser uma retrospectiva que juntasse às imagens míticas do surrealismo em Portugal o mágico recomeço de uma obra que era já (só) história catalogada, e que no princípio dos anos 80 apareceu, afinal, a fundamentar outros regressos à pintura e à figuração numa cronologia de ficções de conveniência. Seria demasiado linear como viagem. De facto, entra-se numa exposição das últimas obras de Dacosta, percorre-se a grande galeria da Fundação identificando telas de uma individual de 1983, descobrindo muitas outras inéditas, e adiante vão-se organizando caminhos a confluir nas pinturas do brevíssimo período (1938-42) em que o pintor podia corresponder à imagem depois estabilizada de um retrato em negativo dos anos da paz portuguesa de 40. O efeito é surpreendente e o decisivo risco tomado pela exposição é uma aposta ganha pelos seus responsáveis: a retrospectiva é uma revisão, um baralhar de presentes temporais, de leituras estabilizadas, de questões.
Não existem um Dacosta A e um Dacosta B; e não foram a descoberta de uma ou outra peça intervalar, nem a desocultação de uma escrita que foi relação íntima e produtiva com a pintura, que surgiram a preencher o abismo, nem este se dissolveu numa mecânica continuidade.
O Passarinheiro (extra-catálogo, de 1936) é um demasiado óbvio ponto de ligação a atravessar cinco décadas, mas a emergência das figuras que se impõem ao pintor, vindas da memória e do sonho para o acontecer inexplicado da tela, traduz um idêntico processo criativo sem hiatos definidos. Ou antes, com a longa pausa que se inicia por volta de 42 com o confronto reflectido com alheias interrogações sobre a figuração pós-cubista e a abstracção do tempo - um período de silenciosa aprendizagem até uma maturação que se reencontra com a inicial urgência de dizer. Que se passe, entretanto, do pesadelo e da ameaça a uma serenidade feliz, onde com as próprias imagens de morte se brinca, é uma diferença menor num percurso único.
Aqui a memória não é história, mas um trânsito infindável por horizontes de infância, histórias secretas, mitos pessoais, sinais aos amigos, prazeres que se prolongam na diversão dos títulos. A pintura não se apresenta como problema, como relação problemática, com uma tradição, mas como necessidade profunda a libertar progressivamente de rigores formais e edifícios técnicos (cf. referências a Pousão, em 46). E o desafio extremo desta pintura reside naquilo que foi «desaprendendo» com um olhar arguto e divertido ao longo dos anos para reafirmar a insondável simplicidade das cores que se agitam para situar imagens que nenhumas palavras traduzem: imagens partilháveis.
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Nota sem data de publicação, certam. de 1993 ou 92 (Expresso)
a exp. referida não se realizou; mais tarde a exp. de Serralves não viria a ter catálogo, entre outros vícios.
Em 1994 António Dacosta faria 80 anos. Uma nova retrospectiva será então apresentada na Fundação Gulbenkian, organizada de modo a enquadrar a sua obra na sua contemporaneidade portuguesa e no quadro europeu: «António Dacosta e o seu tempo» é o título previstonpara uma exposição que se constitui como primeira tentativa de uma abordagem histórica e didáctica à obra de um artista.
A retrospectiva está a ser organizada por Sommer Ribeiro, director do Centro de Arte Moderna, e também por Miriam Rewald Dacosta, viuva do pintor. Para a sua organização, e para a edição do catálogo que a acompanhará, está a decorrer uma pesquisa exaustiva de obras, textos e fotografias que se encontram na posse de particulares e cuja localização não é conhecida, não tendo por isso figurado na grande exposição organizada pela Gulbenkian em 1988. A existência dessas obras desconhecidas, e igualmente de documentos relativos a António Dacosta, deverá ser comunicada para a seguinte direcção: Miriam Rewald Dacosta - Cal. de Santo António 6 - 1º Dto - 1100 Lisboa.
Dacosta nasceu em 1914 em Angra do Heroismo e veio para Lisboa em 1935, para estudar na Escola de Belas Artes, onde se formou. Em 1940 expôs com António Pedro e Pamela Boden na Casa Repe, em Lisboa, participando nos anos seguintes em várias exposições colectivas. Uma parte dos seus quadros foi destruida num incêndio ocorrido no seu atelier em 1944. Mais tarde, em 1947, partiu para Paris como bolseiro do governo francês, enviando dois quadros para a primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa; entretanto, deixou de pintar durante cerca de 30 anos, até «regressar» com uma mostra individual na Galeria 111 em 1983. É em particular quanto ao primeiro período da sua produção, que vai dos primeiros trabalhos realizados nos Açores até 1947, que se desenvolve actualmente a procura de obras não referenciadas, deixadas na posse de familiares e amigos ou adquiridas nas primeiras exposições.
A retrospectiva da Gulbenkian deverá exibir num espaço central uma selecção da obra de Dacosta, deixando para uma sequência de espaços ou «capelas» laterais a inscrição do pintor no seu tempo: os Açores, a Lisboa de Almada, António Pedro e a primeira afirmação surrealista, a arte em Paris (em torno de Breton, em cujo círculo o pintor não se integrou) e ainda uma abordagem da arte em Portugal nos anos 80, do ponto de vista da influência exercida por Dacosta em jovens artistas. Serão igualmente apresentados os projectos de instalações e «environements» realizados antes da sua morte em Dezembro de 1990, e também os estudos para a decoração de uma estação de Metropolitano, actualmente em execução.
21-01-95
«Duas evocações»
ANTÓNIO DACOSTA Casa Fernando Pessoa
UM DIA EM YÈVRE de Maria do Carmo Galvão Teles
Duas iniciativas quase simultâneas evocam em Lisboa, com a descrição dos gestos íntimos, as memórias de Dacosta e de Arpad Szenes. Se nas qualidades das suas obras se inscreveu a capacidade de resistir ao tempo, na insondável natureza do objecto de arte, são ainda as pessoas dos seus autores que perduram através delas — e também através das homenagens que os recordam.
Na Casa Fernando Pessoa, apresenta-se uma pequena exposição dedicada ao primeiro dos dois pintores a propósito da sua obra de poeta, publicada sob o título A Cal dos Muros pela Assírio & Alvim, em 1994, numa edição apresentada por Bernardo Pinto de Almeida. No Museu Arpad Szenes/Vieira da Silva, ocorreu na passada segunda-feira, dia do décimo aniversário da morte do pintor de origem húngara, o lançamento de um livro de fotografias de Maria do Carmo Galvão Teles.
De Dacosta, a mostra exibe os manuscritos dos seus poemas, quase indecifráveis na escrita do seu último ano de vida, quando a pintura já lhe era impossível. E também alguns objectos pessoais, um relógio e numerosos canivetes, fotografias com os amigos, livros anotados e fotocópias a cores de desenhos feitos sobre uma agenda do Metropolitan Museum. Mas o que poderia ganhar o peso de um culto fetichista — e o perigo de reduzir a visibilidade da obra a um tempo de fatal decadência física — é aqui iluminado por uma judiciosa selecção de algumas outras peças que fazem reencontrar o fim da vida de Dacosta com a memória inicial dos Açores, tão presente nos seus versos.
Um retrato de mulher do início da carreira, agora redescoberto, a tela A Adivinha Deolinda, cujo nome é título de dois poemas («Tira as roupas rapariga...»), os pequenos estudos para uma instalação que já não chegou a concretizar (Tao), as pequenas tábuas semicirculares (Paisagem da Terceira) com que regressou à pintura em 1975, as «Memórias» açorianas e, em especial, esse último reencontro com a vida que é o quadro A Flor, a Máscara e Eu Adolescente dão, num segundo espaço de exposição, o sinal bastante da obra do pintor. E é ainda o acerto global das opções de montagem e de iluminação que importa destacar, por exemplo ao incluir na exposição a entrevista de Maria João Avillez que o EXPRESSO publicou em 83, montada como um objecto sobre uma mesa de leitura.
As fotografias de Maria do Carmo Galvão Teles foram realizadas em 1984 na casa de campo de Arpad e Vieira, em Yèvre-le-Chatel, a poucos meses da morte do pintor, durante uma visita destinada a preparar a exposição inaugural da Galeria Valentim de Carvalho. Contra a expectativa de uma recusa aos «retratos», habitual da parte de Vieira da Silva, a oportunidade surgiu, inesperadamente e sem os formalismos das poses estudadas. Ficaria dessa intimidade oferecida um rolo único de fotografias, despretenciosas e sensíveis, que são certamente as últimas de Arpad Szenes e também um olhar atento sobre a casa-atelier, o jardim e as suas fronteiras próximas.
Com elas — e ainda com dois poemas de Sophia de Mello Breyner, que são igualmente tentativas de retratos — se fez um pequeno album também editado por Assírio & Alvim. Mas a apresentação de 16 fotografias nas vitrines da zona de entrada do Museu, na sua insuficiente visibilidade e na uniformidade dos formatos impressos, está longe de prestar justiça à sinceridade do testemunho fotográfico ou ao cuidado posto na edição.
Aqui, a ordenação e o jogo das escalas das 24 fotografias, da página dupla concedida aos cenários até aos muito pequenos formatos, das sequências animadas dos retratos aos reenquadramentos, bem como a qualidade do «design» editorial, servem a emoção discreta das imagens. Em particular, notar-se-á a importância das janelas e portas que se abrem à luz exterior (e que são depois vistas de fora, como quem abandona um universo já encerrado a uma forçada reclusão), e ainda, em duas fotografias colocadas exactamente a meio do volume, as vidraças que ostentam películas plásticas autocolantes com efeito de lentes, como máquinas ópticas que ampliam (transformam e multiplicam) a visão do pequeno mundo circundante.
A exposição de Dacosta e o album de Arpad e Vieira são homenagens certas a dois grandes pintores.
(Casa Fernando Pessoa: António Dacosta, até 31; Museu Arpad Szenes/Vieira da Silva: colecção permanente e exp. «Portugal na obra de A.S. e V.S.», até 25 Março.Maria do Carmo Galvão Teles, Um Dia em Yèvre, ed. Assírio & Alvim, col. «Livros de Fotografia», 1995.)
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25-03 2006
Antevisão: Dacosta em Serralves
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António Dacosta
«Trabalhos Íntimos», Ratton
18-11-2006
A INTIMIDADE referida no título qualifica a pequena escala dos trabalhos (pintura e colagem), objectos privados e em princípio não destinados à exibição pública, em alguns casos realizados durante o tempo de suspensão da actividade de pintor. Ensaios, «estudos», anotações de ideias, exercícios de um fazer tão manual como visual, e que eventualmente foram também gestos de afecto e de oferenda. O uso de suportes de ocasião (cartões, tampas de caixas, papéis irregulares) e as qualidades tácteis das imagens e/ou objectos são factores que elevam a sua dimensão muitas vezes mágica. A exposição reúne (e dispersa, ou partilha) peças do acervo deixado pelo artista que são um testemunho de temas muito presentes no seu imaginário de pintor - fontes, sereias, imagens dos Açores (o Pico), etc.. Parte dele, entre outras peças de idêntica natureza, viu-se na retrospectiva apresentada este ano em Serralves, mas tratava-se aí de uma desajustada forma de aproximação à obra pública de Dacosta (1914, Angra do Heroísmo - 1990, Paris), sendo esta diminuída pela montagem e as condições de espaço disponibilizadas. E ele também foi um influente artista dos «Anos 80». Até 15 Dez.
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