Várias vezes reclamei a edição em papel do catálogo da exposição de Artur Pastor, que a CML não assegurou argumentando falta de recursos. Estava enganado e a CML estava certa, por certo involuntariamente: este catálogo não deve ser impresso, não merece ser impresso (como noutros casos, a falta de verbas tem lados positivos). Para ser directo e corrigir o que antes escrevi ou disse por aí, esta publicação conhecida em versão digital é desastrosa.
Com a ressalva do texto de Luís Pavão (um artigo inicial informativo e correcto) e do breve escrito pessoal do filho homónimo do fotógrafo, os textos restantes documentam em especial a decadência do Arquivo Fotográfico, resultante do desinteresse e desinvestimento da tutela (a CML), desde 2007, e agravada com a morte de Luísa Costa Dias, para além de comprovarem a fragilidade da cultura fotográfica instalada.
Quando ontem se divulgou a versão digital do catálogo, a expectativa gerada pela exposição justificou uma alargada afluência na sessão. Mas, a partir de uma primeira observação baseada na edição das imagens (critérios de legendagem e de reprodução de originais - provas e negativos -, relação entre texto e fotografia - 136 páginas e apenas 9 fotos de página inteira, VER NOTA abaixo) sugeri aqui "que se deixe em versão digital este catálogo com os textos que o integram e se produza em papel, cumprindo as regras da praxe, o livro de fotografias que a obra de Artur Pastor merece".
Lidos os textos, é preciso ser mais incisivo e deixar escrito o apelo à não impressão de um tal catálogo.
Neste caso (ao contrário do que sucedeu com a mostra dedicada ao espólio de Sena da Silva, na Cordoaria), a exposição é uma abordagem muito positiva à obra paradoxal de Artur Pastor, que foi ao mesmo tempo a produção mais exposta e publicada em Portugal, desde meados dos anos 40 (participa no 8º Salão Internacional de Arte Fotográfica, em finais de 1945, na SNBA e Fenianos/Porto, a partir de Évora, ainda não filiado no Grémio de Arte Fotográfica, mas logo depois de publicar um artigo na revista "Panorama"/SNI; faz em Janeiro de 1946 a 1ª individual, em Faro) e ao longo do tempo, até aos anos 2000, e é também a mais desconhecida ou desconsiderada (NOTA 2). (Nenhum outro fotógrafo tem uma idêntica presença pública ao longo do tempo, ultrapassando Mário Novais, mas sem o reconhecimento que este teve.)
Se a exposição tripartida é competente (em especial no respeito pelas provas de época e de trabalho, e nas novas impressões analógicas - faltando a apresentação de mais publicações impressas), os escritos agora divulgados sobre a carreira fotográfica de Artur Pastor e sobre o respectivo contexto revelam-se de uma fatal ingenuidade e ignorância, mesmo se, no primeiro caso, se alinha alguma informação em bruto e muitas transcrições trazidas dos recortes e documentos que acompanham o espólio. E só destes, deixando na sombra a relação com os salões e os fotoclubes, em especial o 6x6, pelo menos desde 1953, quando o "provinciano" regente agrícola vem viver para Lisboa (para o Bairro das Estacas, em Alvalade).
(A questão da mobilidade social de A.P., nascido pobre e confiado aos 3 anos a uma família bem situada - o comandante da coudelaria Militar de Alter do Chão, coronel natural de Évora, sem filhos -, seguindo depois a Escola de Regentes Agrícolas de Évora, onde o irmão do padrinho era professor, parece ser marcante na vida do fotógrafo-artista e funcionário público, que surge como a público entre o fim do serviço militar em 1945 e o 1º emprego em 1950, em Montalegre (até 1953), conseguido este antes de terminar o curso de regente agrícola e, ao que parece (pág.39) alegando já "os serviços que poderia prestar através da atividade fotográfica que dominava e elencando os trabalhos que já fizera nessa área".)
Artur Pastor deixou uma obra quantitativamente imensa, de grande interesse documental, idiossincrática na determinação obsessiva com que percorreu o país para fotografar/documentar e também na dimensão ingénua (naïf) da sua insistente e afirmada ambição artística, a qual está presente na meticulosa objectividade da vertente documental e mais obviamente numa retórica formal-e-temática que é mais naturalista que humanista, ideologicamente indefinida e logo fixada nos anos 50 num gosto arredado de todas as tendências renovadoras que pode ser genericamente classificado como salonista (de início, em 1946, um salonismo entendido como moderno - ver citação de 1946 abaixo).
Foi um fotógrafo profissional (profissionalizado como arquivista) competente no seu ramo (a agricultura) e ao mesmo tempo, enquanto fotógrafo de intenção documental empenhado em defender a artificação da sua produção, muito activo como expositor e muito publicado, presente nos meios salonistas mas sem se restringir à respectiva lógica, e também singular na ambiguidade da sua relação com o regime, de que não foi (não conseguiu ser ou não quis ser?) um fotógrafo oficial. Uma idêntica ingenuidade marca também os artigos publicados no catálogo, o que é uma coincidência talvez significativa - parece existir uma mesma exterioridade à cultura fotográfica, mas que agora se deve qualificar como ignorância.
Dois passos do texto memorialista de Artur Pastor (filho) são especialmente significativos (pág. 32):
"Artur Pastor começou a sua vida artística
“furando” por todos os lados. Desde muito
novo que batia a todas as portas que
se pudessem abrir para receber os seus
préstimos fotográficos. Enviava propostas
para entidades oficiais ou particulares,
incluindo câmaras municipais e regiões de
turismo, assim como para revistas nacionais
e estrangeiras. Numa época em que a
concorrência não era tão feroz, granjeou
reconhecimento e posicionou-se entre os
mais prestigiados fotógrafos."
"Comprava incessantemente
móveis para arquivar fotografias e algumas
divisões da casa pareciam exigir a perícia
de uma gincana para serem atravessadas.
Dava gosto abrir os armários e ver a forma
meticulosa como tudo estava arrumado."
Para além de fotografar aplicadamente, A.P. "batia a todas as portas" para expor e publicar. No segundo extracto nota-se que a aplicação em fotografar, arquivar, expor e publicar parece ser exclusivamente autocentrada, dispensando a informação, as revistas, os livros, a atenção à observação e à reflexão sobre a fotografia.
Artur Pastor, Janeiro 1946: moderno e crítico da velha guarda no início da carreira
«Dentro da modalidade fotográfica, aprecio imenso
a contraluz, levado mesmo à silhueta pura, a
cabeça expressiva, o nu moderno, as fotografias
da Natureza, e outros géneros que seria fastidioso
enumerar. Como impressão prefiro o contraste, o
negro sobre o branco em transição vincada (…)».
(...a razão por que fotografa) «Porque reconheço na fotografia possibilidades
modernas indiscutíveis, porque penso que o
monopólio artístico exercido pelos fotógrafos da
velha guarda deve permitir a entrada aos novos,
aos que observam e sentem a sua evolução continua.
Ainda, porque, a par de uma realidade artística,
e duma intensa satisfação pessoal, existe uma
realidade monetária, traduzida em compensações
indesprezíveis».
NOTA Sobre o catálogo digital:
Ponto 1: apenas 9 fotos de pág. inteira, incluindo capa (sendo um terço retratos do próprio) é esmagadoramente pouco numa edição fotográfica.
Ponto 2: as muitas imagens reproduzidas em dimensão diminuta (a edição em pdf permite algumas ampliações) provam que a relação texto/imagem está aqui totalmente invertida. Mas 136 páginas no total é um nº correcto (afinal é excessivo, depois da leitura).
Ponto 3: a legendagem é em muitos casos inadequada, insuficiente e além do mais inutilmente palavrosa - exemplo ao acaso:
O “antigo” e o “novo”:
velhos rituais acompanhavam frequentemente os trabalhos agrícolas, como a vindima, que a música animava.
Régua
1956
PT/AMLSB/ART/007990.
(O que será aí o antigo e o novo?: o tocador de concertina ou a fila de homens que carregam cestos da vindima? Acrescenta-se algum conteúdo informativo à imagem? )
Importaria referir que a imagem reproduz um negativo 6x6 integral sem recurso a uma qq impressão e enquadramento de época (pág. 131 - estão no direito de o fazer, mas digam-no); noutros casos, aliás raros, reproduzem-se fotos impressas (provas positivas, com o enquadramento e a gama de cores e sombras que o autor preferiu usar - certam. uma prova de época e de exposição) como sucede na pág. 24 em:
Estendal
Santarém
[1950-1970]
PT/AMLSB/ART/050924.
Estes códigos procedem da arrumação do espólio, não qualificam o objecto fotográfico: suporte, processo, dimensão, original reproduzido, etc. É surpreendente que não se cumpram os mínimos requeridos por uma edição que acompanha uma retrospectiva produzida por um arquivo. E por isso aqui se sugeriu, ontem, que se deixe em versão digital este catálogo com os textos que o integram e se produza em papel, cumprindo as regras da praxe, o livro de fotografias que a obra de Artur Pastor merece.
NOTA 2. O catálogo dá largo e muito ingénuo eco ao acolhimento pela imprensa de todas as épocas (regional e não só) das exposições de Artur Pastor, o que é útil a vários títulos (não se pode falar em fortuna crítica, porque não existe prática da crítica de fotografia antes dos anos 70/80). Seria muito oportuno referir tb as menções que lhe são feitas por António Sena na sua História, que aliás se cita a outros propósitos.
na pág. 280 "Chegou a anunciar-se uma outra associação (fotográfica) em Braga, em 1952, por iniciativa de outro Salonista, Artur Pastor" - sem mais inf.
pág. 289, transcrição de Sena da Silva (JL, 1982), onde recorda a "representação espectacular" de Portugal na Feira de Lausanne, atribuida por concurso ao arq. Conceição Silva (com Mário Novais na fotografia). Além deste, "era um nunca mais acabar de imagens do Pobo Português: pescadores da Nazaré, gente das vindimas do Douro em artísticas fotografias de Rollei do Senhor Artur Pastor..." É uma participação relevante.
E adiante, já na pag. 291, o mesmo Sena da Silva fala da tina/banheira de António Paixão (Filmarte) em que se revelavam obras dos distintos amadores do Foto-Clube 6x6, do então semiprofissional (?) Artur Pastor e do inspector Rosa Casaco da Pide.
Por fim, pag. 303, AP é referido na lista dos particpantes na 1ª Exp. Retrospectiva Nacional de Fotografia, organizada pelo Instituto Português de Fotografia em 1976.
É manifestamente escasso, e inexplicável. Mas, para os mesmos anos 40/50, António Sena tb desconsidera ou ignora Adelino Lyon de Castro e Maria Lamas.
Olá
Será imperdoável não editar um livro sobre o meu pai. E concordo plenamente que o formato do presente catálogo não serve de todo.
Por outro lado falhou muito a publicitação da exposição. O timing e o local do Pavilhão Preto não foram uma aposta muito acertada, como sempre frisei.
Fala-se em itinerância mas já será com uma exposição desmembrada.
Também o lado didático que poderia ser aproveitado junto das escolas se perdeu devido à época da exposição. Dever-se-ia prolongar a exposição. O Pavilhão Preto parece não ter nada previsto proximamente, ao contrário do que sucederá com o Arquivo Fotográfico. Ainda que a exposição fosse pensada como um todo o espaço do Pavilhão Preto não deixaria de ser ilustrativo do espólio e cumprir o seu lado didático e documentalista. Aliás a exposição começou 3 semanas mais tarde do que inicialmente agendado, mas o seu termo nunca foi alterado.
Quanto ao comentário relativamente ao modo meticuloso e arquivista do meu pai este era uma realidade, mas não dispensava uma busca incessante em conhecer outras prestações fotográficas. A biblioteca de casa, com mais de 2.000 livros, era composta maioritariamente por livros de fotografia e agricultura. quando se deslocava no país ou no estrangeiro, para fazer fotografias, adquiria obras fotográficas dos locais e estudava as mesmas. Foi assinante, durante décadas, de revistas de fotografia, especialmente estrangeiras e do National Geographic Magazine. Visitava muitas exposições de fotografia em Portugal e nas suas deslocações ao estrangeiro, como Madrid, Barcelona, Paris, etc.
Nos últimos anos de vida desenvolveu uma obsessão acrescida que era publicar livros sobre Portugal. Mas tudo era mais difícil e as portas, por norma, estavam fechadas. Com o boom do turismo, e do clientelismo vigente, eram sempre os mesmos a fotografar, como era o caso do Mauricio Abreu. E foi-se isolando cada vez mais ainda que nunca desistisse de tentar publicar ou expor.
Posted by: Artur Pastor | 08/22/2014 at 17:48
Ainda bem que concorda em substituir a ideia de imprimir o catálogo pela exigência de se editar um livro, um livro de fotografias, que respeite os critérios de impressão do autor (que mudaram com o tempo, como é natural, mas não abdicaram de reenquadramentos e contrastes, em vez de se tornar tudo em gamas monótonas de cinzentos por efeito do tratamento digital preguiçoso e falta de cuidado de acompanhar as provas originais - no catálogo, não na exposição), e que use com largueza a página inteira em vez do formato selo perdido entre prosas. Não havendo investigação crítica qualificada, estabeleça-se apenas uma cronologia atenta, que agora faltou.
De qualquer modo a exposição foi muito vista e muito comentada, e foi sendo, aliás, muito bem publicitada por si. Com a falta de história que tínhamos e continuamos a ter, o entendimento do trabalho de Artur Pastor, com o seu imenso labor e num contexto muito pouco favorável, ganhou agora um forte impulso, a juntar à recente reconsideração da curta obra de Lyon de Castro, à descoberta de Maria Lamas (ainda pouco vista) e à descoberta dos impulsos modernistas/formalistas actuantes nos salões dos anos 50, por sinal mas não por acaso na fortaleza operária do Barreiro. Falta a investigação monográfica e a procura de novas sínteses, mas os trabalhinhos escolares têm sido rotineiros e literatos, entregues à especulação árida e bacoca.
Posted by: Alexandre Pomar | 08/22/2014 at 23:03