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Passou uma semana, jé é de copiar o texto da Joana Beleza, na Revista de dia 15:
arte
O GAUDÍ DA BOAVISTA
Há mais de 15 anos que anda a forrar a casa com azulejos. No princípio era um “entretém” para ocupar os dias da reforma, mas hoje é uma missão sem fim à vista. Conhecido como o Gaudí da Boavista, Jorge Soares constrói painéis com centenas de peças partidas.
TEXTO DE JOANA BELEZA FOTOGRAFIAS DE NUNO BOTELHO
AZULEJO - Jorge Soares e a casa que cobriu por completo com painéis de azulejos
A ideia inicial era decorar as paredes exteriores da então casa de férias, perto da praia de Santa Cruz, Torres Vedras. Jorge Soares tinha acabado de se reformar e nas traseiras da pequena vivenda amontoavam-se restos de azulejos recolhidos ao longo dos anos em vazadouros e lixeiras. Não guardou datas exatas na memória, mas sabe que certo dia, no fim dos anos 90, olhou para uma peça de cerâmica caída no jardim e nela viu um raio de sol. Logo ao lado, duas gaivotas. Colou-as num recanto da churrasqueira e, quando deu por si, estava a escolher azulejos para fazer um cão. Hoje, ao fazer a visita guiada à casa, quase não abranda o passo perto destas obras simples. Até porque gosta de mostrar e falar das grandes figuras que concebeu na frente da moradia. Sereias, gatos, cães, elefantes, girafas, gaivotas, homens, mulheres, esqueletos, são parte de um bestiário com centenas de azulejos partidos que dão cor e forma à moradia que Jorge Soares batizou com o nome de Solar dos Jorges. Onde antes havia cimento à vista hoje existem padrões e histórias por descobrir.
“Se olhar bem para a casa vai reparar que esculpi ou colei placas em vários sítios com três datas: 1942, ano em que nasci, 1972, ano em que comprei esta casa e 2042, ano em que farei o último painel de azulejos”, diz — meio a rir meio a falar a sério — Jorge Soares. A verdade é que não sabe como parar a rotina que estabeleceu para si há mais de 15 anos e por isso um século parece-lhe razoável para dar por terminada a empreitada. “Acordo, faço a minha higiene e venho para aqui mexer nos azulejos”. Quando diz “aqui”, Jorge Soares está a falar de um alpendre, entre a garagem e o jardim, que o próprio construiu: um telhado arcaico, paredes de cimento com azulejos de várias cores e feitios colados uns a seguir aos outros, dois armários velhos, duas mesas de plástico, vários baldes com bocadinhos de azulejos partidos e outros tantos com água da chuva que Jorge aproveita para regar as plantas. Nada se perde, tudo se transforma nas mãos deste homem. Numa das mesas o painel que está a construir: um cavaleiro em duelo com um touro. Precisa de azulejos amarelos para fazer o chão e por isso remexe nos pedaços que selecionou no dia anterior. Fica largos minutos nisto, a escolher, cortar e limar as peças que melhor encaixam entre o corno do touro e o rabo do cavalo. É como se fizesse um puzzle. Olhamos e vemos um homem hipnotizado por montinhos de mosaicos.
DE FUTEBOLISTA A ARTISTA AUTODIDATA
Jorge Soares tem 72 anos e as mãos de quem trabalha na construção — dedos grossos, unhas sujas de pó, restos de cimento na roupa e os sapatos velhos. Viúvo, com dois filhos e quatro netos, que vivem na periferia de Lisboa, recebe o Expresso com entusiasmo. “Enquanto não chegavam, estive ali a escolher os últimos azulejos para terminar o painel do toureiro”. Percebe-se rapidamente que não perde tempo, vive focado no trabalho. Quando abre o portão e começa a mostrar os painéis que ocupam todos os muros da casa também percebemos rapidamente o que lhe interessa: a figura da mulher nua (são várias ao longo da casa), animais e aves, em especial a gaivota — “porque vejo muitas, estamos perto do mar” — e o corvo — “porque antigamente este sítio era o Casal dos Corvos” — e ainda a figura de São Jorge.
Diz a lenda que certo dia o santo, montado a cavalo, passava nas redondezas de uma cidade na Líbia, quando ouviu os lamentos de uma jovem princesa. Junto a um lago, a dama chorava e pedia socorro, perante um dragão furioso e esfomeado. De imediato São Jorge partiu em seu auxílio ferindo a besta com uma lança. Arrastado até à cidade, o dragão seria então morto, a troco da conversão de todos os habitantes ao Cristianismo. Assim foi — e é-o na frente da casa de Jorge Soares. Estamos perante a principal das suas obras: um painel feito com centenas de peças, em que São Jorge, a cavalo, convencido da sua força, mata um dragão verde, enorme, a seus pés. Tem perto de três metros de altura e ocupa a esquina da moradia térrea. Ao longe vê-se bem a figura do santo, altivo e vencedor, mas perto é que se repara: os olhos são dois pormenores de azulejos azuis, arredondados à mão, e o rosto são quase cinquenta azulejos partidos. Deixando o olhar percorrer a parede veem-se outros tantos pedaços de azulejos floridos a fazer a capa que envolve a figura do santo e depois os freios do cavalo, castanhos, perfeitos, assim como a lança, vertical, em direção ao dragão. O pormenor cuidado, a escolha de cada pedaço de cerâmica e logo ali a besta prostrada, contorcida de dores. “Sabe, eu tenho uma enorme admiração por São Jorge. Não era aborrecido como os outros santos, pelo contrário. Era um guerreiro, um homem valente, um vencedor. E esta admiração talvez tenha surgido porque eu também me chamo Jorge e, de certa maneira, também fui um lutador”.
Murais Animais, aves, homens, mulheres e datas são alguns dos detalhes que preenchem o imaginário de Jorge Soares. Em cima, um dos guardas da casa. Ao lado, o artista e São Jorge, um dos painéis mais complexos que já fez. À esquerda e em baixo, animais, figuras e paisagens compostos com dezenas de azulejos recortados. No Solar dos Jorges, onde houver cimento à vista cabe sempre mais uma figura em mosaico. O dono da casa só pretende reformar-se em 2042.
TRABALHAR SEM PARAR
Ambicioso, Jorge fez do sentido da vida um sinónimo de trabalho. Os primeiros ordenados foram ganhos no futebol, como jogador nos juniores do Benfica e, depois de ter passado por clubes de menor dimensão nacional, dedicou-se à carreira de treinador (fez o primeiro curso de treinador profissional em Portugal, em 1975) e em simultâneo foi vendedor ambulante de bebidas. Pelo meio ainda trabalhou numa empresa de refrigeração e, nos tempos livres, ao fim do dia, chegou a vender livros e produtos de higiene porta a porta. Tudo para poder proporcionar uma vida confortável aos dois filhos, que também se chamam Jorge. A casa comprada na Boavista foi durante anos albergue das férias da família. Hoje é difícil reconhecer algo que faça parte da construção original, de tantas alterações que sofreu. A mulher faleceu há mais de dez anos e nenhum dos dois filhos frequenta a casa. Jorge passa os dias sozinho, a “mexer nos azulejos e a pensar no passado”. “Tenho o jardim cheio de restos de coleções de azulejos e de velharias que encontrei em vazadouros por Portugal fora. O que é que posso fazer? Tenho de lhes dar um sentido”, justifica, contando que, ao reformar-se, no fim dos anos 90, tinha duas hipóteses: “Ou continuava a viver em Lisboa e ia jogar cartas para os jardins da cidade, o que não me interessava, ou vinha para a aldeia e entretinha-me como queria, à minha vontade, sem me preocupar com nada, nem roupa nem horários”. Optou pela segunda hipótese. Manteve a casa na capital, porque “dá jeito para visitar” uma vez por mês os filhos, mas o resto do tempo passa-o no Solar dos Jorges. Olha para os (poucos) muros que ainda não ocupou e começa a desenhar imagens a giz ou a procurar azulejos, num trabalho de minúcia e repetição que só cessa quando tem fome ou quando o interrompem.
TODAS AS SUPERFÍCIES DA CASA FORAM OCUPADAS POR FRAGMENTOS EM CERÂMICA QUE DÃO VIDA A SERES EXCÊNTRICOS, FRUTO DA IMAGINAÇÃO SINGULAR DESTE MESTRE DO AZULEJO
À medida que a casa se foi transformando numa espécie de selva multicolorida, a atenção de quem passava na estrada foi aumentando. São vários os que hoje, a caminho da Praia Azul, param para fotografar a vivenda, e a prova disso é o livro de visitas que Jorge guarda com orgulho e que contém mensagens em várias línguas. “Às vezes ando no jardim e vejo pessoas a fotografar a casa. Falo sempre com elas e pergunto se querem entrar. Muitas vezes entram e ficam aqui muito tempo a ver tudo, outras vezes fotografam com o carro em andamento e fogem ou escondem a câmara quando me veem”. Entusiasmado com os que param, oferece uma visita guiada à casa. Por causa disso até concebeu uma espécie de galeria onde expõe partes do seu passado: desenhos que fez na escola, fotografias da sua equipa de futebol, brinquedos e objetos velhos, histórias sem fim. Abre o livro de visitas e lê, entre risos, com alguma vergonha: “Isto é uma obra-prima do século XXI, coisa mais linda que nunca vi, adorei”, “por suerte topamos con esta fantastica y magica casa que a modo de santuario recoge un sin fin de artículos y curiosidades”, “o senhor Jorge é a grande última descoberta que fizemos em Santa Cruz. Ele, que passou a vida a descobrir, a criar e a transformar tudo o que encontra, com originalidade e grande entrega. Um bem-haja à sua criatividade. Que o Gaudí da Boavista continue!”. Jorge gosta das mensagens, mas ainda assim não parece reconhecer grande valor ao que faz. “Se olhar ao longe para aquele painel consegue ver uma bailarina e um cisne, mas aproxime-se e repare: é imperfeito, precisava de outro cuidado, não ficou bem”, e adianta: “Por isso é que nunca vendi nada. Já tive propostas para vender painéis mas nunca aceitei. Depois as pessoas iam olhar com atenção e ver que não estava bem feito e vinham cá devolver. Ia ficar triste com isso, portanto faço estas coisas só para mim”. Ponto final no assunto. O único plano que faz para o futuro é continuar a dar uso aos azulejos que enchem os vários baldes espalhados pelas traseiras da casa. E depois espera que os filhos não desfaçam a casa.
Mãos à obra Jorge Soares a preparar mais um painel, que vai construíndo com pedaços de azulejos separados por cores e feitios, em baldes espalhados pela casa
“Jorge Soares dedica-se a tempo inteiro a esta criação, não quer produzir painéis para venda, apenas quer integrá-los na casa e, por outro lado, não tentou simplificar os processos de trabalho. Usa materiais totalmente rudimentares: alicate para partir o azulejo e pregos para marcar as pedras. Dá a impressão que quanto mais tempo demorar, melhor”.
Quem o diz é o ex-jornalista e crítico de arte Alexandre Pomar, que anda há quase dois anos a trabalhar num filme sobre o Solar dos Jorges. Em parceria com o realizador Tiago Pereira, Alexandre optou pelo registo do documentário, porque considera que “o cinema é a melhor forma de fazer visitar o Solar dos Jorges” e “ele (Jorge Soares) fala muito bem sobre a sua própria obra. Tem um discurso hábil e engraçado sobre os painéis”.
Alexandre Pomar e Tiago Pereira têm agora em mãos a edição de extensas horas de material filmado, mas pensam ter o filme terminado ainda este ano, para ser apresentado numa primeira sessão em Torres Vedras e depois entrar no circuito de festivais de cinema.
Pomar deu com o Solar dos Jorges como tantas outras pessoas: por acaso. Ia a passar pela estrada e “aquela casa, aquela torre, aquela parafernália” de imagens e versos esculpidos num muro atraíram-no. Da primeira vez fotografou a casa e partiu. Voltou mais tarde para chegar à fala com Jorge.
arte ou não?
“A casa, no seu conjunto, é imediatamente importante, obriga-nos a parar e desperta curiosidade. Mas depois há a multiplicação das figuras”. Para o crítico de arte, a composição das figuras com o azulejo partido “não é comum” e Jorge Soares leva o trabalho a “um aperfeiçoamento muito grande”. Entre o pormenor de alguns painéis e o todo da casa, que tem vindo a crescer, o valor artístico oscila, mas é em todo o caso “evidente”.
“As fronteiras, o que é ou não é arte, não é um problema”, considera Pomar. Desde que existam pessoas e especialistas ou instituições que atribuam valor a determinado objeto “ele entra no espaço da arte porque é considerado arte (ver caixa). Este é mais um caso de um artista português a ser incluído nesse espaço. Esta figuração, estas composições, estes animais, são muito interessantes”. Segundo o crítico, o uso de fragmentos de azulejos escolhidos e partidos por Jorge Soares revela “um cuidado e um pormenor impressionantes para a criação de painéis figurativos, narrativos, muito complexos e sugestivos”.
“Além do azulejo partido, há uma acumulação de peças das mais variadas origens, louça, brinquedos, em princípio sempre coisas partidas e em mau estado, que Jorge Soares usa para preencher espaços vazios dos muros”. Alexandre Pomar considera que se está perante um recoletor e um colecionador excecional. “Com esta dimensão e escala, desenvolvendo um ambiente inteiro e integrado, nunca encontrei nada semelhante em Portugal”.
UM ARTISTA DIFÍCIL DE CATALOGAR
Para todos os efeitos, o Solar dos Jorges é uma casa excêntrica, ímpar, e sendo fruto da obra de um autodidata, faz com que, de certo modo, Jorge Soares possa ser inserido na “família” dos artistas outsider. Em geral, o termo “outsider” abrange os criadores sem qualquer educação artística, com destinos pessoais muito diferentes uns dos outros, mas com um traço comum: são pessoas que não se reformam, que não têm horários, que trabalham sem parar porque não sabem fazer outra coisa, com uma compulsão artística muito forte e pessoal. Jorge Soares tem todos esses traços: é autodidata e um produtor imparável. A sua obra é muito marcada por episódios da vida pessoal, as técnicas que utiliza são rudimentares e escapam a quaisquer regras formais. As fronteiras do que faz fluem entre a arte popular e a arte ingénua ou naïve. Para o crítico de arte Alexandre Pomar, o ideal seria designar a obra de Jorge Soares de “inclassificável”, um monumento “singular” no qual ainda está a trabalhar.
No entanto, a “arte outsider” acaba por ser o chavão que melhor se aplica porque é mais genérico do que conceitos como a “arte bruta”, criada pelo francês Jean Dubuffet nos anos 40 para designar formas de criação espontâneas completamente marginais aos circuitos oficiais da cultura e do mercado da arte. Dubuffet interessou-se sobretudo pelas obras de arte criadas por doentes mentais, o que fez com que o termo “art brut” ficasse muito associado às perturbações psíquicas. Já o termo “outsider”, designado nos anos 70 pelo crítico de arte Roger Cardinal, veio dar um contexto às obras de autodidatas que trabalham com toda a sua intuição à margem do circuito artístico e das academias, mas também dos hospitais psiquiátricos.
Na mesma senda de Jorge Soares existem dezenas de criadores internacionais de paisagens singulares, que começaram a ser valorizadas e preservadas no final do século XX. Por exemplo, as centenas de figuras esculpidas nas rochas das praias de Rothéneuf, no norte de França, pelo padre francês Adolphe Fouéré, ou as torres Watts, construídas em espiral em Los Angeles pelo emigrante italiano Simon Rodia, operário da construção civil, e que hoje são um dos monumentos mais fotografados da Califórnia. Tal como estes dois casos, que se tornaram icónicos na região onde foram produzidos, também o Solar dos Jorges tem importância para, segundo Alexandre Pomar, vir a ser “um género de museu do azulejo, preservado e aberto a visitas.” E esse será, no fundo, o caminho natural para o reconhecimento artístico desta obra. Incluir o Solar dos Jorges no espaço da arte portuguesa é continuar o trajeto que a arte outsider tem vindo a fazer em direção às correntes institucionais da arte, com os seus museus, feiras, catálogos e artistas. Jorge Soares será mais um criador singular a ter em conta.
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No Expresso diário de 2ª feira 18 com um melhor título:
A minha causa é decorar a casa
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Várias vezes reclamei a edição em papel do catálogo da exposição de Artur Pastor, que a CML não assegurou argumentando falta de recursos. Estava enganado e a CML estava certa, por certo involuntariamente: este catálogo não deve ser impresso, não merece ser impresso (como noutros casos, a falta de verbas tem lados positivos). Para ser directo e corrigir o que antes escrevi ou disse por aí, esta publicação conhecida em versão digital é desastrosa.
Com a ressalva do texto de Luís Pavão (um artigo inicial informativo e correcto) e do breve escrito pessoal do filho homónimo do fotógrafo, os textos restantes documentam em especial a decadência do Arquivo Fotográfico, resultante do desinteresse e desinvestimento da tutela (a CML), desde 2007, e agravada com a morte de Luísa Costa Dias, para além de comprovarem a fragilidade da cultura fotográfica instalada.
Quando ontem se divulgou a versão digital do catálogo, a expectativa gerada pela exposição justificou uma alargada afluência na sessão. Mas, a partir de uma primeira observação baseada na edição das imagens (critérios de legendagem e de reprodução de originais - provas e negativos -, relação entre texto e fotografia - 136 páginas e apenas 9 fotos de página inteira, VER NOTA abaixo) sugeri aqui "que se deixe em versão digital este catálogo com os textos que o integram e se produza em papel, cumprindo as regras da praxe, o livro de fotografias que a obra de Artur Pastor merece".
Lidos os textos, é preciso ser mais incisivo e deixar escrito o apelo à não impressão de um tal catálogo.
Neste caso (ao contrário do que sucedeu com a mostra dedicada ao espólio de Sena da Silva, na Cordoaria), a exposição é uma abordagem muito positiva à obra paradoxal de Artur Pastor, que foi ao mesmo tempo a produção mais exposta e publicada em Portugal, desde meados dos anos 40 (participa no 8º Salão Internacional de Arte Fotográfica, em finais de 1945, na SNBA e Fenianos/Porto, a partir de Évora, ainda não filiado no Grémio de Arte Fotográfica, mas logo depois de publicar um artigo na revista "Panorama"/SNI; faz em Janeiro de 1946 a 1ª individual, em Faro) e ao longo do tempo, até aos anos 2000, e é também a mais desconhecida ou desconsiderada (NOTA 2). (Nenhum outro fotógrafo tem uma idêntica presença pública ao longo do tempo, ultrapassando Mário Novais, mas sem o reconhecimento que este teve.)
Se a exposição tripartida é competente (em especial no respeito pelas provas de época e de trabalho, e nas novas impressões analógicas - faltando a apresentação de mais publicações impressas), os escritos agora divulgados sobre a carreira fotográfica de Artur Pastor e sobre o respectivo contexto revelam-se de uma fatal ingenuidade e ignorância, mesmo se, no primeiro caso, se alinha alguma informação em bruto e muitas transcrições trazidas dos recortes e documentos que acompanham o espólio. E só destes, deixando na sombra a relação com os salões e os fotoclubes, em especial o 6x6, pelo menos desde 1953, quando o "provinciano" regente agrícola vem viver para Lisboa (para o Bairro das Estacas, em Alvalade).
(A questão da mobilidade social de A.P., nascido pobre e confiado aos 3 anos a uma família bem situada - o comandante da coudelaria Militar de Alter do Chão, coronel natural de Évora, sem filhos -, seguindo depois a Escola de Regentes Agrícolas de Évora, onde o irmão do padrinho era professor, parece ser marcante na vida do fotógrafo-artista e funcionário público, que surge como a público entre o fim do serviço militar em 1945 e o 1º emprego em 1950, em Montalegre (até 1953), conseguido este antes de terminar o curso de regente agrícola e, ao que parece (pág.39) alegando já "os serviços que poderia prestar através da atividade fotográfica que dominava e elencando os trabalhos que já fizera nessa área".)
Artur Pastor deixou uma obra quantitativamente imensa, de grande interesse documental, idiossincrática na determinação obsessiva com que percorreu o país para fotografar/documentar e também na dimensão ingénua (naïf) da sua insistente e afirmada ambição artística, a qual está presente na meticulosa objectividade da vertente documental e mais obviamente numa retórica formal-e-temática que é mais naturalista que humanista, ideologicamente indefinida e logo fixada nos anos 50 num gosto arredado de todas as tendências renovadoras que pode ser genericamente classificado como salonista (de início, em 1946, um salonismo entendido como moderno - ver citação de 1946 abaixo).
Foi um fotógrafo profissional (profissionalizado como arquivista) competente no seu ramo (a agricultura) e ao mesmo tempo, enquanto fotógrafo de intenção documental empenhado em defender a artificação da sua produção, muito activo como expositor e muito publicado, presente nos meios salonistas mas sem se restringir à respectiva lógica, e também singular na ambiguidade da sua relação com o regime, de que não foi (não conseguiu ser ou não quis ser?) um fotógrafo oficial. Uma idêntica ingenuidade marca também os artigos publicados no catálogo, o que é uma coincidência talvez significativa - parece existir uma mesma exterioridade à cultura fotográfica, mas que agora se deve qualificar como ignorância.
Dois passos do texto memorialista de Artur Pastor (filho) são especialmente significativos (pág. 32):
"Artur Pastor começou a sua vida artística
“furando” por todos os lados. Desde muito
novo que batia a todas as portas que
se pudessem abrir para receber os seus
préstimos fotográficos. Enviava propostas
para entidades oficiais ou particulares,
incluindo câmaras municipais e regiões de
turismo, assim como para revistas nacionais
e estrangeiras. Numa época em que a
concorrência não era tão feroz, granjeou
reconhecimento e posicionou-se entre os
mais prestigiados fotógrafos."
"Comprava incessantemente
móveis para arquivar fotografias e algumas
divisões da casa pareciam exigir a perícia
de uma gincana para serem atravessadas.
Dava gosto abrir os armários e ver a forma
meticulosa como tudo estava arrumado."
Para além de fotografar aplicadamente, A.P. "batia a todas as portas" para expor e publicar. No segundo extracto nota-se que a aplicação em fotografar, arquivar, expor e publicar parece ser exclusivamente autocentrada, dispensando a informação, as revistas, os livros, a atenção à observação e à reflexão sobre a fotografia.
Artur Pastor, Janeiro 1946: moderno e crítico da velha guarda no início da carreira
«Dentro da modalidade fotográfica, aprecio imenso
a contraluz, levado mesmo à silhueta pura, a
cabeça expressiva, o nu moderno, as fotografias
da Natureza, e outros géneros que seria fastidioso
enumerar. Como impressão prefiro o contraste, o
negro sobre o branco em transição vincada (…)».
(...a razão por que fotografa) «Porque reconheço na fotografia possibilidades
modernas indiscutíveis, porque penso que o
monopólio artístico exercido pelos fotógrafos da
velha guarda deve permitir a entrada aos novos,
aos que observam e sentem a sua evolução continua.
Ainda, porque, a par de uma realidade artística,
e duma intensa satisfação pessoal, existe uma
realidade monetária, traduzida em compensações
indesprezíveis».
NOTA Sobre o catálogo digital:
Ponto 1: apenas 9 fotos de pág. inteira, incluindo capa (sendo um terço retratos do próprio) é esmagadoramente pouco numa edição fotográfica.
Ponto 2: as muitas imagens reproduzidas em dimensão diminuta (a edição em pdf permite algumas ampliações) provam que a relação texto/imagem está aqui totalmente invertida. Mas 136 páginas no total é um nº correcto (afinal é excessivo, depois da leitura).
Ponto 3: a legendagem é em muitos casos inadequada, insuficiente e além do mais inutilmente palavrosa - exemplo ao acaso:
O “antigo” e o “novo”:
velhos rituais acompanhavam frequentemente os trabalhos agrícolas, como a vindima, que a música animava.
Régua
1956
PT/AMLSB/ART/007990.
(O que será aí o antigo e o novo?: o tocador de concertina ou a fila de homens que carregam cestos da vindima? Acrescenta-se algum conteúdo informativo à imagem? )
Importaria referir que a imagem reproduz um negativo 6x6 integral sem recurso a uma qq impressão e enquadramento de época (pág. 131 - estão no direito de o fazer, mas digam-no); noutros casos, aliás raros, reproduzem-se fotos impressas (provas positivas, com o enquadramento e a gama de cores e sombras que o autor preferiu usar - certam. uma prova de época e de exposição) como sucede na pág. 24 em:
Estendal
Santarém
[1950-1970]
PT/AMLSB/ART/050924.
Estes códigos procedem da arrumação do espólio, não qualificam o objecto fotográfico: suporte, processo, dimensão, original reproduzido, etc. É surpreendente que não se cumpram os mínimos requeridos por uma edição que acompanha uma retrospectiva produzida por um arquivo. E por isso aqui se sugeriu, ontem, que se deixe em versão digital este catálogo com os textos que o integram e se produza em papel, cumprindo as regras da praxe, o livro de fotografias que a obra de Artur Pastor merece.
NOTA 2. O catálogo dá largo e muito ingénuo eco ao acolhimento pela imprensa de todas as épocas (regional e não só) das exposições de Artur Pastor, o que é útil a vários títulos (não se pode falar em fortuna crítica, porque não existe prática da crítica de fotografia antes dos anos 70/80). Seria muito oportuno referir tb as menções que lhe são feitas por António Sena na sua História, que aliás se cita a outros propósitos.
na pág. 280 "Chegou a anunciar-se uma outra associação (fotográfica) em Braga, em 1952, por iniciativa de outro Salonista, Artur Pastor" - sem mais inf.
pág. 289, transcrição de Sena da Silva (JL, 1982), onde recorda a "representação espectacular" de Portugal na Feira de Lausanne, atribuida por concurso ao arq. Conceição Silva (com Mário Novais na fotografia). Além deste, "era um nunca mais acabar de imagens do Pobo Português: pescadores da Nazaré, gente das vindimas do Douro em artísticas fotografias de Rollei do Senhor Artur Pastor..." É uma participação relevante.
E adiante, já na pag. 291, o mesmo Sena da Silva fala da tina/banheira de António Paixão (Filmarte) em que se revelavam obras dos distintos amadores do Foto-Clube 6x6, do então semiprofissional (?) Artur Pastor e do inspector Rosa Casaco da Pide.
Por fim, pag. 303, AP é referido na lista dos particpantes na 1ª Exp. Retrospectiva Nacional de Fotografia, organizada pelo Instituto Português de Fotografia em 1976.
É manifestamente escasso, e inexplicável. Mas, para os mesmos anos 40/50, António Sena tb desconsidera ou ignora Adelino Lyon de Castro e Maria Lamas.
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Expresso Revista, 15 de Agosto 2014, texto de Joana Beleza e fotografias de Nuno Botelho
No diário de 2ª 18 com um melhor título
A minha causa é decorar a casa
Jorge Soares anda há mais de 15 anos a decorar a casa onde vive sozinho. Construiu uma torre e inventou muros e paredes onde colou dezenas de painéis feitos de pequenos pedaços de azulejos. Aquela que era a sua casa de férias nos anos 70 e 80 é agora o mausoléu onde passa os dias a imaginar figuras e paisagens. Chamam-lhe “Gaudí da Boavista” (localidade de Torres Vedras onde se situa a moradia)
REPORTAGEM JOANA BELEZA FOTOGRAFIA NUNO BOTELHO
com imagens filmadas
(que a paz criativa de Jorge Soares não seja demasiado afectada por admiradores, curiosos e intrusos)
Posted at 19:49 in 1984, Jorge Soares | Permalink | Comments (0) | TrackBack (0)
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1974, a casa como era em 1972, já com o nome "Solar dos Jorges"
Enquanto houver um espaço livre, Jorge Soares vai acrescentar sempre novas figuras às paredes e aos muros exteriores da vivenda que comprou em 1972 como casa de férias, perto de Lisboa, onde nasceu, e a pouca distância da praia (Torres Vedras). Depois de reformado e viuvo, no início do novo século, passou a dedicar todo o tempo à criação de decorações em azulejo e à instalação dos objectos que foi antes coleccionando ou, melhor, recolhendo e acumulando. Transformou todas as fachadas da antiga vivenda e deu uma nova pele às paredes da casa e aos muros junto à estrada, criou um labirinto no jardim e deu aos caminhos os nomes dos parentes próximos, ergueu uma torre e hasteou uma bandeira, gravou versos, abriu um museu privado. Todas as superfícies exteriores ou interiores da casa são invadidas por uma figuração proliferante, caótica e muitas vezes paródica, criada com uma grande diversidade de materiais, técnicas e inspirações, sempre com meios rudimentares. É a construção de um mundo pessoal, um puzzle enciclopédico, obra de um mestre do azulejo recortado que é antes de tudo um humorista.
O Gaudi da Boavista, como lhe chamaram, é um criador compulsivo que depois de uma vida de trabalho que ele próprio celebra como a carreira de um lutador, se reiventou como um artista original, seguindo apenas as suas próprias normas e sem interesse pelo comércio da sua arte. Jorge Soares é um artista popular, singular ou único, autodidata, um construtor paisagista tão hábil na composição e colagem em azulejo como inesperado no uso do objecto encontrado. Frequenta uma área vaga e em que as classificações são, no seu caso, mais redutoras e problemáticas do que esclarecedoras - os rótulos da arte bruta ou outsider não se lhe aplicam: ele não se repete num formulário, não ilustra os devaneios de um visionário, nem se encerra num universo secreto e exclusivo. Teve uma vida familiar e profissional de sucesso, desde o futebol profissional ao comércio de bebidas, e encontrou tarde o tempo e a liberdade para a criação artística.
É com fragmentos cerâmicos e pedras que desenha os seus painéis murais povoados por guardas que marcam o lugar e lhe defendem a propriedade, pelos animais do seu extenso e divertido bestiário, por personagens com que se identifica ou que retrata com imaginação (São Jorge e o dragão, o guerreiro nu, as sereias e os esqueletos, as efígies da República). Datas, emblemas e representações simbólicas marcam-lhe o percurso de vida e reforçam a presença do humor como a marca maior da sua obra. Nasceu em 1942, aponta 1972 como o princípio do Solar dos Jorges e propõe-se continuá-lo até 2042: o programa está gravado na pedra.
É apenas para si próprio que o artista Jorge Soares trabalha, à beira da estrada, mas agrada-lhe a exposição pública e o aplauso dos visitantes. Ao longo do filme que o acompanhou durante quase dois anos, Jorge Soares conduz com gosto a visita guiada à sua obra, que é a casa decorada e os jardins povoados de esculturas, de monumentos e objectos transformados. Conta a sua vida, constrói o personagem, inventa mais figuras ou modifica-as, comenta a sua arte e trabalha pacientemente diante da câmara.
sinopse
os painéis da República, do guarda com o cão, São Jorge e o Dragão, a refugiada da Guiné com sereia...
"Solar dos Jorges" Trailer, um filme de Tiago Pereira e Alexandre Pomar from Tiago Pereira on Vimeo.
Alguns artistas são únicos, outros não (são artistas de série, são licenciados ou doutores em arte, foram ou pareceram únicos apenas por algum tempo, em regra nos 1ºs anos de aparição pública, ou participam de estilos colectivos, ilustram uma "escola"). Os artistas únicos são em geral inclassificáveis, ou são maiores que as classificações que lhes atribuem, ou atravessam diversas classificações.
No caso único de Jorge Soares todas as classificações são inapropriadas ou redutoras. Dizê-lo um artista popular e autodidacta é correcto mas também é demasiado pouco, e marginal seria uma péssima tradução de "hors-normes" (aliás, a recusa das normas anteriormente válidas tornou-se uma norma moderna). Popular não deverá ter o sentido anglo-americano de Folk art, que quase sempre se refere tempos e usos pré-industriais - e outras línguas usam o popular (arte popular) como uma marca associada a artesanal, colectivo, primitivo e quase sempre anónimo, ou sem autoria (artística) individualizada (Rosa Ramalho foi um caso singular). Chamar-lhe artista "outsider" deixa pairar a proximidade com a arte "brut" e logo uma contiguidade com as formas asilares ou psiquiatrizadas que é no caso totalmente desajustada.Artista singular não tem em português o conteúdo significativo que se reconheceu aos "singuliers de l'art" - título da exp. pioneira do Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris (Arc 2) em 1978. A linhagem naïf, excepto em casos de grande isolamento, já não se prolonga num universo social em que a informação se partilha rapidamente.
A recusa a qualquer classificação redutora é uma das pistas para abordar a arte de Jorge Soares, e uma das suas características é a diversidade radical da sua produção quanto a tipologias, processos, estilos e temas. Quase todos os "excêntricos", singulares e "outsiders" constroem uma obra única, seguem uma visão particular (são visionários), adoptam ou criam um certo estilo reconhecível, desenvolvem um projecto em geral bem definido e muitas vezes dado a certa altura por concluído, ou contam uma história própria, mais ou menos imaginária. Nada disso acontece com J.S. A diversidade é uma das suas marcas (uma ausência de regras) e o gosto pelo humor é uma característica forte.
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A questão decisiva é que o interesse da obra de Jorge Soares, da arte de Jorge Soares, não começa pelas questões e dificuldades da classificação (à procura de um rótulo que "explique" e arrume), pela oposição entre popular e erudito, autodidacta e escolar ou académico, singular e institucional, não se justifica pela exterioridade às normas e ao mercado, pela identificação de uma qualquer proximidade radical com a suposta verdade, a autenticidade ou pureza de um possível "instinto criador" matricial, mas parte das próprias obras, da qualidade do seu trabalho de recorte de azulejos ou de colagem e assemblage de objectos encontrados, da sua invenção figurativa (e não figurativa noutros lugares), do humor do seu bestiário, dos seus temas e do que neles se reconhece como comentário e narração, circunstancial e muitas vezes auto-referencial, e também reelaboração da tradição cultural (personagens históricas e mitológicas em especial).
A questão da classificação vem depois da surpresa e da admiração por essas representações figurativas (mais cultas que populares) e por esses objectos que associamos facilmente à prática da assemblage, da montagem e da escultura que podemos referir à tradição pós-dadá.
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