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1974, a casa como era em 1972, já com o nome "Solar dos Jorges"
Enquanto houver um espaço livre, Jorge Soares vai acrescentar sempre novas figuras às paredes e aos muros exteriores da vivenda que comprou em 1972 como casa de férias, perto de Lisboa, onde nasceu, e a pouca distância da praia (Torres Vedras). Depois de reformado e viuvo, no início do novo século, passou a dedicar todo o tempo à criação de decorações em azulejo e à instalação dos objectos que foi antes coleccionando ou, melhor, recolhendo e acumulando. Transformou todas as fachadas da antiga vivenda e deu uma nova pele às paredes da casa e aos muros junto à estrada, criou um labirinto no jardim e deu aos caminhos os nomes dos parentes próximos, ergueu uma torre e hasteou uma bandeira, gravou versos, abriu um museu privado. Todas as superfícies exteriores ou interiores da casa são invadidas por uma figuração proliferante, caótica e muitas vezes paródica, criada com uma grande diversidade de materiais, técnicas e inspirações, sempre com meios rudimentares. É a construção de um mundo pessoal, um puzzle enciclopédico, obra de um mestre do azulejo recortado que é antes de tudo um humorista.
O Gaudi da Boavista, como lhe chamaram, é um criador compulsivo que depois de uma vida de trabalho que ele próprio celebra como a carreira de um lutador, se reiventou como um artista original, seguindo apenas as suas próprias normas e sem interesse pelo comércio da sua arte. Jorge Soares é um artista popular, singular ou único, autodidata, um construtor paisagista tão hábil na composição e colagem em azulejo como inesperado no uso do objecto encontrado. Frequenta uma área vaga e em que as classificações são, no seu caso, mais redutoras e problemáticas do que esclarecedoras - os rótulos da arte bruta ou outsider não se lhe aplicam: ele não se repete num formulário, não ilustra os devaneios de um visionário, nem se encerra num universo secreto e exclusivo. Teve uma vida familiar e profissional de sucesso, desde o futebol profissional ao comércio de bebidas, e encontrou tarde o tempo e a liberdade para a criação artística.
É com fragmentos cerâmicos e pedras que desenha os seus painéis murais povoados por guardas que marcam o lugar e lhe defendem a propriedade, pelos animais do seu extenso e divertido bestiário, por personagens com que se identifica ou que retrata com imaginação (São Jorge e o dragão, o guerreiro nu, as sereias e os esqueletos, as efígies da República). Datas, emblemas e representações simbólicas marcam-lhe o percurso de vida e reforçam a presença do humor como a marca maior da sua obra. Nasceu em 1942, aponta 1972 como o princípio do Solar dos Jorges e propõe-se continuá-lo até 2042: o programa está gravado na pedra.
É apenas para si próprio que o artista Jorge Soares trabalha, à beira da estrada, mas agrada-lhe a exposição pública e o aplauso dos visitantes. Ao longo do filme que o acompanhou durante quase dois anos, Jorge Soares conduz com gosto a visita guiada à sua obra, que é a casa decorada e os jardins povoados de esculturas, de monumentos e objectos transformados. Conta a sua vida, constrói o personagem, inventa mais figuras ou modifica-as, comenta a sua arte e trabalha pacientemente diante da câmara.
sinopse
os painéis da República, do guarda com o cão, São Jorge e o Dragão, a refugiada da Guiné com sereia...
"Solar dos Jorges" Trailer, um filme de Tiago Pereira e Alexandre Pomar from Tiago Pereira on Vimeo.
Alguns artistas são únicos, outros não (são artistas de série, são licenciados ou doutores em arte, foram ou pareceram únicos apenas por algum tempo, em regra nos 1ºs anos de aparição pública, ou participam de estilos colectivos, ilustram uma "escola"). Os artistas únicos são em geral inclassificáveis, ou são maiores que as classificações que lhes atribuem, ou atravessam diversas classificações.
No caso único de Jorge Soares todas as classificações são inapropriadas ou redutoras. Dizê-lo um artista popular e autodidacta é correcto mas também é demasiado pouco, e marginal seria uma péssima tradução de "hors-normes" (aliás, a recusa das normas anteriormente válidas tornou-se uma norma moderna). Popular não deverá ter o sentido anglo-americano de Folk art, que quase sempre se refere tempos e usos pré-industriais - e outras línguas usam o popular (arte popular) como uma marca associada a artesanal, colectivo, primitivo e quase sempre anónimo, ou sem autoria (artística) individualizada (Rosa Ramalho foi um caso singular). Chamar-lhe artista "outsider" deixa pairar a proximidade com a arte "brut" e logo uma contiguidade com as formas asilares ou psiquiatrizadas que é no caso totalmente desajustada.Artista singular não tem em português o conteúdo significativo que se reconheceu aos "singuliers de l'art" - título da exp. pioneira do Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris (Arc 2) em 1978. A linhagem naïf, excepto em casos de grande isolamento, já não se prolonga num universo social em que a informação se partilha rapidamente.
A recusa a qualquer classificação redutora é uma das pistas para abordar a arte de Jorge Soares, e uma das suas características é a diversidade radical da sua produção quanto a tipologias, processos, estilos e temas. Quase todos os "excêntricos", singulares e "outsiders" constroem uma obra única, seguem uma visão particular (são visionários), adoptam ou criam um certo estilo reconhecível, desenvolvem um projecto em geral bem definido e muitas vezes dado a certa altura por concluído, ou contam uma história própria, mais ou menos imaginária. Nada disso acontece com J.S. A diversidade é uma das suas marcas (uma ausência de regras) e o gosto pelo humor é uma característica forte.
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A questão decisiva é que o interesse da obra de Jorge Soares, da arte de Jorge Soares, não começa pelas questões e dificuldades da classificação (à procura de um rótulo que "explique" e arrume), pela oposição entre popular e erudito, autodidacta e escolar ou académico, singular e institucional, não se justifica pela exterioridade às normas e ao mercado, pela identificação de uma qualquer proximidade radical com a suposta verdade, a autenticidade ou pureza de um possível "instinto criador" matricial, mas parte das próprias obras, da qualidade do seu trabalho de recorte de azulejos ou de colagem e assemblage de objectos encontrados, da sua invenção figurativa (e não figurativa noutros lugares), do humor do seu bestiário, dos seus temas e do que neles se reconhece como comentário e narração, circunstancial e muitas vezes auto-referencial, e também reelaboração da tradição cultural (personagens históricas e mitológicas em especial).
A questão da classificação vem depois da surpresa e da admiração por essas representações figurativas (mais cultas que populares) e por esses objectos que associamos facilmente à prática da assemblage, da montagem e da escultura que podemos referir à tradição pós-dadá.
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