O belíssimo texto de Jorge Calado sobre Valley, de Pedro Guimarães (no Expresso/Actual de 2 de Agosto, pág. 33)
VALE
Não há nada deprimente neste vale/valley de Pedro Guimarães. Vale é depressão numa planura ou entre dois montes, assinalando muitas vezes o leito de um rio. Em sentido figurado, o vale de lágrimas do hino mariano Salvé Rainha. Na exposição de fotografias de Pedro Guimarães, patente n'A Pequena Galeria, o vale é o do rio Coa e o tema as célebres "gravuras que não sabem nadar" que atravessam milhares de anos.' É uma das belas surpresas da temporada que agora se encerra.
A origem analógica das imagens e o rigor das digitalizações são óbvios. Gostei também do entendimento da escala com a opção por dois formatos. As tensões da iluminação (às vezes) artificial jogam com o conflito de durezas que dera origem às gravuras. Rocha macia em pedra dura deixa risco ou traço; rocha dura (sílex) grava em pedra mole (xisto). Foi assim que aprendemos a escrever/gravar na ardósia escolar de bela memória. A pressão, tal como a luz, é um lápis da Natureza. Estas gravuras, tal como a nódoa negra, são barografias. Há, pois, uma correspondência homográfica entre as gravuras e as fotografias. Ao escrever/gravar na rocha, os nossos antepassados resolveram de vez o problema que aflige os fotógrafos desde a invenção da fotografia - o da permanência. Estas barografias duram dezenas de milhares de anos!
O trabalho de Guimarães entronca na grande tradição americana de levantamento (survey) das inscrições - humanas ou naturais - na paisagem: de Timothy O'Sullivan ("Inscription Rock", Novo México) e William H. Jackson ("Mount ofthe Holy Cross", Colorado), ambas de 1873, às topografias recentes de Marilyn Bridges e Mark KIett. O conforto do reconhecimento de uma marca ou graffito no caos incompreensível da Natureza. Há ainda a presença tutelar do maior dos fotógrafos americanos contemporâneos, Lee Friedlander: no contraste de texturas (mole e dura), na dialética da ordem-desordem, do permanente vs. efémero (erva-rocha), na visão do mundo, regulada pelo volante, através do para-brisas, na estrada sem fim. E até noto uma piscadela de olho aos Westons, na "Faia". Pedro Guimarães está em boa companhia, e aos ombros de gigantes vê-se mais e melhor.
VALLEY
Pedro Guimarães
A Pequena Galeria, Lisboa, de 7 de Julho a 2 de Agosto e de 3 a 20 de setembro (por marcação: pequenagaleria@>sapo.pt)
Na foto: "Rocha 15 da Canada do Inferno", 50 x 60 cm
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outro texto (A.P.)
Este é o lado b da missão documental de Pedro Guimarães realizada para o Museu do Côa, e a primeira exposição pessoal desde a exposição /jornal Bluetown, de 2010. Para além da encomenda - e simultaneamente à encomenda - o fotógrafo produziu um corpo de trabalho pessoal que transmite o carácter vivencial e mesmo místico, nas suas próprias palavras, da experiência de habitar um museu que se expande pelo parque natural, desenvolvida ao longo de muitos meses de trabalho. Mais do que documentar e classificar as peças de um Museu que se desdobra no tempo e no espaço, ao longo do vale e em lugares exteriores quase inacessíveis, mais do que remeter o visível e o experimentado para um inventário, é um Vale do Côa pessoalmente habitado e vivido, emocionalmente percorrido, que estas fotografias mostram.
Se as imagens documentais que levaram as gravuras inscritas na paisagem para o interior do Museu são em si mesmas um exercício de descoberta e de decifração onde ao mesmo tempo se mostra e se preserva a experiência da estranheza e do desconhecido, as fotografias escolhidas por Pedro Guimarães para a exposição "VALLEY" exploram o que se pode referir como a passagem do arqueológico ao fotográfico e da encomenda à obra própria. Confrontam-nos com a materialidade propriamente fotográfica das imagens das gravuras, onde lemos a luz (em geral nocturna) que anima a superfície da pedra e se abre em sulcos gravados e em massas ou recortes ocasionais, ou onde lemos as linhas também luminosas desenhadas sobre ou à volta das placas do xisto pela vegetação local num diálogo também gráfico com a pedra e com as marcas humanas (incertamente humanas).
O olhar demora-se sobre uma experiência do lugar que deixa inscritas as emoções vividas na noite do Vale e a relação de intimidade criadora com o objecto de trabalho, tornando-se olhar pessoal do fotógrafo, obra, passando do registo documental à dimensão de uma possível narrativa autobiográfica, ficção ou confissão. O carro e a estrada que se abre à sua frente, o céu estrelado em movimento, a malha vegetal iluminada que preenche o plano de um desenho ‘all over’, as pedras cercadas pela água negra são momentos que invadem a regra documental e estabelecem a dimensão mais ampla do projecto expositivo.
Face à certeza das pedras do Côa, ali e hoje, num presente imemorial, disseminadas nas fragas e descobertas milénios depois, transporta-se nestas imagens de uma soberba materialidade luminosa a impressão da viagem e da demora atenta, a surpresa da interrogação, a inscrição da paisagem e do desconhecido, que é mais actualidade do observador (nossa e do fotógrafo) que arqueologia. Entramos no visível e no invisível do Vale do Côa, mas também numa memória fotográfica que é a do autor e nos convida a outra leitura. Ele talvez fale nos caminhos de Bernard Plossu e em Walker Evans, eu poderei dizer Edward Weston e Lee Friedlander. Essas são outras linhas gravadas, outras pistas.
A folha de sala (textos):
VALLEY / Pedro Guimarães 5 Jul > 2 Ago 2014 A Pequena Galeria
Estamos no Vale do Rio Côa. Por entre as fragas e os penhascos, o sol rasante divaga, revelando-nos com sombras duras um bestiário fantástico, que vai ganhando diferentes formas, ritmos, direções e ações. Nestes golpes de vista abrem-se espaços de ilusão que nos envolvem jogando com os nossos sentidos. Os espaços criados pela incerteza do que vemos forçam a nossa imaginação para além da realidade e para o interior do universo da criação humana. Os feixes de luz que tocam as superfícies duras tanto nos podem contar histórias paleolíticas – histórias de um povo nómada de caçadores recolectores que viveu e sacralizou as margens e as encostas de um rio – como nos podem contar histórias recentes – histórias que incendiaram a opinião pública e que ainda hoje fazem eco nos diferentes setores sociais, económicos e culturais de Portugal.
Do projecto ‘Valley’, da autoria de Pedro Guimarães, poder-se-ia dizer que se trata de uma narrativa costurada com linhas de terra, água, ar e fogo, alçadas numa paisagem telúrica de montanhas, rios e vales. Horizonte remoto onde o homem se criou, geração após geração, procurando harmonizar e suavizar uma natureza brava e silvestre.
Sofia Figueiredo . Investigadora de Arte Rupestre . Vila Flor, Junho de 2014
‘Valley’
Sim e não, passo a explicar. Este é, ao mesmo tempo, um projecto artístico e um levantamento arqueológico.
Deixem-me explicar, contar a história do início. Isto começou por ser, fundamentalmente, uma abordagem sobre a necessidade compulsiva que temos – sempre tivemos – de registar imagens. Seja como for, com tinta, sais de prata, electrões ou, à falta de melhor, à base da pedrada, silex contra xisto, que ganhe o mais forte. E, já agora, e se não for pedir muito, que o suporte seja o mais nobre, o mais duradouro possível. E que o artista, artesão, troglodita, homem das cavernas, o que lhe quiserem chamar, seja gente de traço delicado e requintado, capaz de reproduzir com notável elegância o que está, esteve ou
irá estar à sua frente, como um diário. Ou manual de instruções da própria vida. Não sabemos e, julgo poder afirmar com toda a convicção, nunca o saberemos. Ou seja, estas fotografias são, por força das circunstâncias, sobre o território que é comum à Arte, à Ciência e, claro está, ao meu próprio imaginário místico.
Sim, tudo isto porque, muitos muitos anos depois dos rabiscos aqui explorados terem sido feitos (dezenas de milhares nuns casos, meros séculos noutros), surgiram certos cientistas que, na sua tecnológica busca pelas razões mais profundas de todas as coisas, olharam para o que se começava a esboçar nos objectos fotográficos em questão, e neles reconheceram imediatamente o nobre estatuto de documento científico. E é neste preciso momento, algures na Primavera de 2009, que a documentação fotográfica dos desenhos dos brutos paleolíticos passa de devaneio privado, pago às custas do autor, a encomenda institucional, com direito a cachet e tudo (outros tempos). A partir daqui tudo se torna mais simples e repetitivo: menos pensamento e mais acção. Há então que fazer uma recolha exaustiva dos núcleos mais importantes de Arte Rupestre do Parque Arqueológico do Côa. Toca a andar. E à noite, a dormir no chão ou dentro do jipe, conforme a meteorologia permitir.
E se bem que a natureza institucional do acto abriu as portas aos montes e vales desertos do Parque, normalmente vedados ao comum dos mortais, por outro lado, a falta de vias de comunicação, a orografia errante e a vegetação hostil, frequentemente fizeram com que curtas distâncias se tornassem longas viagens. Nestes montes minutos são horas, horas são dias e não há como ir e vir. Era ir e ficar, pelo menos até o assunto estar resolvido de forma latente na película fotográfica. E assim se passou um Verão, uma Primavera, um Outono, um Inverno e mais uma Primavera. E durante todo este tempo lá fui convivendo com as pedras, os bichos e as criaturas que habitam as superfícies imaculadamente lisas dos afloramentos de xisto da região. E de cada uma delas elas fui conhecendo os nomes próprios e os números com que estão cadastradas nas bases de dados dos cientistas. Senti os extremos dos sol da chuva e da neve, vi a terra pintada de todas as cores. E durante este tempo, cruzei-me com muita gente faladora. Quase todos ou pastores ou arqueólogos ou guardas florestais, e das suas bocas ouvi à noitinha estórias bem contadas (e bem regadas), repletas de problemas que já na altura seriam contemporâneos. Estórias da vida daquelas bestas e outras figuras mais ou menos humanas que ainda hoje vivem dentro da minha cabeça e de algumas destas fotografias.
Pedro Guimarães
Lisboa, 19 de Junho de 2014
Sobre o autor:
Pedro Guimarães (Braga, 1977) é um artista visual que tem como ferramenta única de trabalho a Fotografia. A sua actividade divide-se entre a produção de conteúdos para diversos agentes editoriais e instituições e a produção de séries fotográficas de carácter autoral. O seu trabalho pessoal, embora assente na documentação da realidade aparente segundo a mais conservadora tradição fotográfica, rejeita por completo o carácter iminentemente documental do fotografia, reclamando para si um território fundamentalmente ficcional e fantástico cujos alicerces assentam na subjectividade surreal que emana da simples observação atenta das coisas e dos lugares.
Uma mostra dos trabalhos publicados, assim como uma lista de exposições passadas pode ser consultado no próprio sítio internet do autor em www.pedroguimaraes.net.
Todas as provas fotográficas desta exposição foram produzidas a partir de negativos originais de Pedro Guimarães, fazendo-se as mesmas acompanhar do respectivo certificado de autenticidade.
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