Nenhum outro jovem artista me continua a surpreender tanto como o João Francisco, e a admiração prolonga-se desde 2008, data de uma primeira exposição vista. Agora mostrou trabalhos concebidos para uma instalação de dois dias apenas, num espaço pouco frequentado que nesta ocasião se encerra definitivamente. Tenho só uma vaga memória de lá ter passado um dia, sem consequências, mas o J.F. diz-me que a superfície elevada do chão, que pode ser mesa ou palco e ocupa grande parte da sala, faz parte das regras do espaço, a altura variável. Usou-o a muito pouca altura, como um chão apenas destacado do chão maior da sala, e sobre essa plataforma soerguida mostra um grande desenho a preto e branco que a preenche por inteiro. Um desenho que reduzido à pequena escala da fotografia parece um objecto, com relevo próprio, ou uma representação toda ela em em trompe l'oeil, que de facto não é. Não é o mesmo que se vê no local, se se percorre com um olhar circundante a folha desenhada de grande formato onde as formas, as pregas, os objectos, não são imediatamente legíveis (elas aparecem sintetizadas pela fotografia).
Sobre um soalho horizontal que é já desenho e é fundo dispõem-se amarrotados um tapete ou dois e outros tecidos (oleado?), nos quais se formam grandes pregas ondulantes, irregulares e desordenadas, numa orografia insólita que não aparece imediatamente referida às ondas agitadas de um mar; parece haver adiante (acima?) montes e vales, e uma ponte à direita, mas pode ser só a necessidade de identificar aparências. Há pelo menos um pedaço de madeira bem visível, como os que vão dar à praia, e descortina-se um barco em miniatura ou de brincar, outro barco de papel e pelo menos mais uma outra proa ou forma aproximada.
É de natureza-morta que se trata, como todos ou quase todos os trabalhos do J.F. - ou todos eles partem da relação de observação do pintor diante da disposição de objectos, regra da natureza-morta, e ganham depois as obras, a partir do género natureza-morta, lugares diversos de contiguidade com a paisagem ou então são a construção de ficções visuais, talvez também narrativas, ou são puzzles complexos de aparências objectuais e artifícios ou de achados perspécticos, e igualmente de referências e citações a outras obras de arte (sempre através de imagens apropriadas, fotos recortadas, estampas, sempre redesenhadas pelo autor - não se trata de colagem de materiais alheios). As sugestões de leitura acumulam-se em sucessivas camadas ou apontam diferentes pistas, e os títulos apoiam e orientam o espectador.
O desenho ou pintura de observação começa por ser construção de cenários e estes são acumulações de objectos e igualmente acumulações de sentidos e de histórias e conteúdos (também os da história da arte - o João é um erudito), mesmo que pareçam ser só disposição de objectos. Estamos perante um exercício habilíssimo da mão que desenha sobre uma encenação de coisas que é em si mesma profundamente pensada. E que são também coisas vividas: os objectos representados são objectos pessoais, familiares, de infância, oferecidos, e igualmente coisas encontradas, recolhidas, coleccionadas, acumuladas por um recolector insistente (mais divertido, parece, que obsessivo), em grande a partir da deambulação pelas praias. Voltamos assim às ondas.
Além do grande desenho horizontalmente exposto e, como acontece nos trabalhos do JF, também desenhado na horizontal, sobre o soalho, grande desenho que pode pensar-se como acumulação de tapetes e tecidos ou oleados encalhados na praia, mas também como um cama desarranjada - é um desenho a grafite de 240 x 140 cm - , mostra-se em duas paredes em ângulo uma série de pequenas pinturas a guache sobre papel, de 40,8 x 30,5 cm. Aí se enumeram ou descrevem pequenos objectos, anzóis, vértebras de peixe (?), fragmentos de embalagens, pedaços de madeira, brinquedos (uma costeleta de plástico), etc, isolados ou em conjuntos por espécies, todos eles vistos sobre tábuas de soalho.
Chama-se a série "Sem título - objectos flutuantes", e trata-se, de facto, da representação de coisas trazidas dos areais que João Francisco percorre, da Praia Azul e Santa Cruz, a Torres Vedras, perto de onde vive. Esta série de pinturas é por si mesma uma colecção e o que mostra são objectos recolhidos e coleccionados, como uma espécie de inventário, lembrando directamente a série "Sem título - o naturalista, 2009-2012", com 16 pinturas a guache sobre papel, 70x50 cm cada, que era uma enumeração-classificação de objectos decorativos e de brinquedos arrumados por géneros (cavalos, cães, bonecas, galos, etc). Há uma aparência divertida de seriedade científica nestas descrições que brincam com o desenho colorido tosco e rápido, que tem algo de infantil e evidente humor. E também se lembra nestas pinturas e no desenho de grande formato uma anterior instalação-acumulação que igualmente se viu há dois anos na Galeria Municipal de Torres Vedras, intitulada "Sem título - trazido pelo mar para Joseph Cornell", 2005 - ... / feita de brinquedos recolhidos na praia (dim. variáveis).
E foi o J.F. que me apontou a referência à Onda de Hokusai, a mais paradigmática das ondas (http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Grande_Onda_de_Kanagawa). Lá estão as três barcaças semi-ocultas nas ondas tormentosas, passadas às pregas dos tapetes com idêntico dramatismo. O mar ocupa todo o espaço da folha de Hokusai, sem um lugar distanciado para o observador, também ele incluído na cena representada. É uma visão frontal, recortada pelos bordos da página, preenchendo a página ou o ecrã, sem haver exterior à cena. Pelo contrário, J.F. "desconstrói" a representação, deixando ver as margens do soalho sobre o qual dispõe os objectos da cena (há quatro seixos rolados trazidos da praia que seguram os acntos da folha).
Representa o mar como construção montada para este desenho, como cenário de tapetes e mantas para o teatro que vemos - e onde não estamos imersos: o desenho mostra-se como desenho, e a ficção desenhada dá a ver os meios de que serve, denuncia-se como ficção, como construção de aparência e ilusões. A visão não é frontal e estável como a do ecrã de cinema (e do computador) ou a do palco do teatro, ou ainda na fotografia: no que vemos partilhamos o olhar do artista que desenhou verticalmente sobre o chão horizontal, deslocando-se lateralmente sobre a folha, criando uma sucessão de pontos de vista e de fuga.
A superfície plana da folha torna-se ela mesma sucessão desordenada de pregass e onda, e não é da criação de um espaço ilusório que se trata (a ilusão é denunciada mostrando os objectos que a constroem), o ilusionismo do trompe l'oeil não é um exercício de virtuosismo maneirista, o jogo dos pontos de observação e das perspectivas constrói com os objectos encenados um teatro que decorre à vista do observador. Vemos o fazer e o desfazer do cenário, vemos um teatro de brinquedos em vez de uma história de aventuras marítimas, vemos desenho ou pintura de histórias (histórias da arte: a natureza-morta e a paisagem marinha, a atracção do trompe l'oeil, Hokusai, etc).
"Sem título - o naturalista, 2009-2012"
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