«LISBOA COMO FUTURO - CULTURA» - 19 Março 2016
Uma contribuição (texto parcialmente lido no início da sessão - interrompendo a ordem estabelecida no programa da sessão organizada na futura Biblioteca de Marvila pela Dinamia, centro/empresa do ISCTE - e entregue ao presidente da CML e à vereadora da Cultura)
"A formatação dos painéis e dos seus temas e o longo formulário proposto para abordagem de cada uma das secções (Criar, Distribuir, Lembrar, Conhecer, Participar, Planear, Representar) não servem a anunciada intenção de reflectir e questionar as práticas culturais camarárias. Antes de arrumar os participantes em núcleos compartimentados e de temática fechada - anunciando-se como «Sessões de debate - workshop», entaladas entre dois discursos oficiais, de abertura e encerramento - seria seguramente oportuno auscultar, sumariar e enfrentar, a montante, questões gerais de orientação política e análises sectoriais livremente formuladas. Em vez dos guiões pré-definidos e das abstracções de uma categorização talvez académica valerá a pena olhar para o terreno e apreciar o que existe e o que se faz.
Desagrada-me profundamente essa linguagem típica de empresas de selecção e gestão de pessoal sob capa universitária. Perguntam "Existirá uma “cena” de Lisboa (um hype associado a certa produção cultural da cidade)?« (sic). Pensar a cidade e a sua cultura, parece-me ser do âmbito da política e não do marketing.
Enumero alguns tópicos que me interessaria propor à discussão:
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Começo pelo sector das galerias de arte, agora gerido pela EGEAC, e por apontar quer o número desmesurado desses espaços quer a situação incompreensível e inaceitável de o sector ser chefiado por alguém que dirige a sua própria galeria, o João Mourão (Kunsthalle Lissabon).
Não se encontra uma tal oferta de galerias, parte delas a ocupar vastos espaços - e espaços difíceis e impróprios, como a Cordoaria e a Av. da Índia -, em qualquer capital próxima (e de mais activa vida cultural). Não há em Lisboa um só centro de actividade marcante e de referência como são em Madrid o Espaço Conde Duque e o Centro Cultural de la Villa, o Centro Galileo e o Matadero, todos eles complexos pluridisciplinares integrantes da área municipal de Cultura, Ócio e Desportos (o que é uma justa associação). Ou como, em Paris, o Bal, o Centquatre, a Maison Européenne de la Photographie, o Betonsalon, o FRAC Ile-de-France. Ou como são na periferia a Casa da Cerca de Almada e o Centro Cultural de Cascais ou em Vila Franca de Xira o Museu do Neo-Realismo e a Fábrica das Palavras.
Aponto a programação irregular, casuística e por vezes quase confidencial de parte relevante dessas galerias, que não têm perfis próprios, não são lugar de acolhimento de propostas/candidaturas alheias, nem se inserem nas suas áreas populacionais, tendo períodos de inactividade que inviabilizam qualquer formação de públicos (a Quadrum e a Boavista serão os casos mais insólitos, mas os Pavilhões Branco e Preto deveriam certamente ser orientadas pelo Museu da Cidade, agora Museu de Lisboa).
Aponto a colagem notória das respectivas programações ao pequeno «meio da arte» nacional, ou a um pequeno círculo de cumplicidades, repetindo os mesmos nomes que circulam por galerias, museus, fundações e instituições idênticas, sem haver prospecção de valores menos mediatizados, nem abertura à diferença. Nada as distingue enquanto galerias municipais, e não têm vocações reconhecidas.
A isto se associa a opção pela promoção sistemática de jovens artistas (ou licenciados em arte, sazonalmente descartáveis) numa lógica que é ou assistencialista ou visa só a conquista e gestão de clientelas, o que se prolonga agora na viragem do sector institucional em geral para a política das «residências» de artistas e de «curadores». É toda uma prática de concorrência desleal com as galerias comerciais e com as possíveis iniciativas autogeridas por artistas, o que agrava um contexto em que parece não haver espaço senão para a iniciativa institucional ou para a dependência de apoios públicos.
Aponto a ausência de uma programação internacional de referência através de co-produções, parcerias ou acolhimento de iniciativas, em que Lisboa se afirme como parceiro de itinerâncias. Como excepção, lembro só Sebastião Salgado na Cordoaria, em colaboração com a Terra Esplêndida.
Acresce ao número de galerias geridas directamente pela CML/EGEAC (5 agora, segundo o seu site) um número extenso e indeterminado de espaços para exposições temporárias de museus municipais e muitas outras entidades da galáxia (ou polvo) CML, como a sede do Município, as galerias do Arquivo Fotográfico, e de bibliotecas, o Torreão Poente do Terreiro do Paço (Museu de Lisboa), a Casa da América Latina, agora a chamada Casa dos Mundos, etc, etc.
Deve ter-se em atenção nesta área das exposições e das artes plásticas o decréscimo sistemático de públicos, que em geral agora se desloca apenas a espaços associados a jardins e outros espaços de lazer. Há razões profundas para o desinteresse dos públicos, que têm a ver com um divórcio crescente e justificável entre uma cultura fechada sobre e para os seus agentes (sustentada pela crença na autonomia dos criadores) e, do outro lado, um lado cada vez mais distanciado, os consumidores de cultura-entretenimento, televisiva ou não, e em geral os frequentadores da área dos lazeres. Os públicos mobilizados pelas inaugurações (as corporações artísticas, os parentes e amigos) e as visitas escolares fornecem os números necessários para as estatísticas.
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Em geral, no domínio das galerias e das salas de espectáculo, é manifesta uma posição de concorrência obviamente desigual - e desleal - com as iniciativas de outras entidades, privadas ou associativas e cooperativas (estas em decréscimo nítido, esmagadas pelas dependências burocráticas e centralizadoras, em especial no acesso a financiamentos públicos e comunitários).
Parece estar ausente qualquer reflexão actualizada sobre o sentido da acção cultural da CML, para além de se acrescentarem mais programas, mais festivais, mais eventos aos que são habitualmente promovidos por outras instituições públicas, fundações e centros culturais próximos (Almada, Cascais e Algés, Vila Franca de Xira - zonas limítrofes e carenciadas onde se justificam programações locais de divulgação, e que são em geral mais livres de estreitas dependências «curatoriais» e institucionais).
Existem marcas claras de centralismo e dirigismo (e também de elitismo) na política cultural oficial, sendo em geral as programações asseguradas por curadores e directores-programadores que cumprem em especial as suas ambições próprias. (A lógica do curador-artista e do programador-artista, que tem vindo a ser aceite, subverteu o exercício de lugares que começam por ter responsabilidades cívicas).
É evidente a opção nos espaços públicos pela ideia de programar (o que significa promover uma cultura oficial da cidade, ou antes de programadores oficializados, funcionários camarários ou não), em vez de patrocinar e acolher, apoiando as iniciativas cívicas, cidadãs, independentes e locais, mediante candidaturas e num diálogo regular e aberto que responda a interesses e projectos plurais e à acção de agentes descentralizados. A prática democrática de programação está praticamente ausente nos equipamentos camarários, cujo perfil de actuação se supõe diferente do de fundações privadas e equipamentos públicos de iniciativa e tutela do estado central.
Se o São Jorge acolhe programas de cinema, mantendo uma dinâmica pluralista, o S. Luis e em especial o Maria Matos programam e produzem (ou co-produzem) através dos seus directores programadores. O que os distingue das salas da Culturgest, Gulbenkian e CCB?
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Num campo que deveria ser uma das vocações principais de uma cidade aberta e plural como Lisboa, a interacção com as comunidades de origem migrante e o diálogo intercultural, a estabelecer também com os seus países de origem (mais ou menos remota), observou-se ao longo de toda uma década uma orientação destituída da capacidade - ou antes, da vontade - de comunicação com as diferentes culturas e com os agentes que com elas directamente actuam, bem como de resposta às necessidades sentidas localmente em Lisboa e nas imediações. Pelo contrário, impôs-se a opção por meras acções pontuais, de animação do centro da cidade, com possível aparato festivo mas sem continuidade nem relevância local (programa Todos e Lisboa Encruzilhada de Mundos). E, com maior gravidade, a opção por um projecto megalómano de ostentação cultural (o Africa.Cont), de mera representação mundana pretensamente cosmopolita, subordinado a um programa de reabilitação patrimonial urbanística (as Tercenas do Marquês e a sua área, das Janelas Verdes à 24 de Julho - plano certamente necessário mas a desenvolver noutras condições), com o qual se consumiram verbas, se paralizaram políticas de cooperação e se perdeu credibilidade internacional, após a cimeira Africa-Europa de 2007 e a patética apresentação do projecto utópico sob a pala do Pavilhão de Portugal, um ano depois. A auto-crítica ficou por fazer.
Sacrificaram-se assim anos de possível diálogo e acção intercultural a gestos auto-centrados e de ambígua promoção de alguns nichos culturais, em condições em que a incapacidade de díálogo se somou à absorção em proveito próprio dos recursos comunitários disponíveis. Agora abre mais um espaço de exposições confidenciais, a Casa dos Mundos, enquanto se ignoram ou marginalizam as acções e associações que existem neste terreno. Este é mais um campo em que a CML vem fazendo concorrência a si própria através de diferentes departamentos, e concorrência aos agentes independentes.
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Destaco ainda um campo em que a acção da CML teve em tempos manifesto êxito e atingiu um claro reconhecimento: a fotografia. Assistiu-se desde 2006 (depois da organização dos programas desmesurados e confusos do LisboaPhoto de 2003 e 2005, tal como sucedera mas com mais qualidade no Mês da Fotografia de 1993, ao tempo de Jorge Sampaio) à notória menorização daquilo que foi a acção qualificada do Arquivo Fotográfico, o qual foi submetido ao âmbito e às limitações operacionais e orçamentais da área de Arquivos.
O que foi um dos trunfos da política cultural lisboeta passou a ter uma existência cinzenta e de alcance doméstico. Mas a fotografia, nas suas diversas vertentes, é por toda a parte um dos eixos mais dinâmicos das manifestações culturais, mais mobilizadores de públicos e mais intervenientes em muito diversas direcções, técnicas, artísticas e políticas. No pouco que subsiste, o fechamento estético é manifesto (mas ressalvo a próxima exposição da Galeria Av. da Índia, vinda de Maputo).
Também o destino da Hemeroteca, destituída da sua antiga sede e deslocalizado para um espaço menor e obviamente insuficiente, ilustra a prioridade conferida às opções que têm mais a ver com as festividades efémeras e a visibilidade superficial do que com a atenção às instituições de referência em que a CML tinha e devia continuar a ter um papel destacado e insubstituível. Os equipamentos estruturantes têm sido sacrificados à política de eventos, com as possíveis excepções da renovação do Museu da Cidade e das Bibliotecas Municipais.
Uma última palavra, por agora, pode ser dirigida à informação veiculada na Agenda Cultural que certamente ganharia em concentrar-se nas iniciativas da CML e ao mais importante a acontecer nas freguesias em vez de as dissolver ou apagar num massificado cartaz de eventos indiferenciados (alargado a alguns artigos ocasionais e desgarrados), numa concorrência ineficaz com uma publicação como a Time Out e aos vários roteiros digitais existentes. O tempo de um cartaz generalista já passou, e a Agenda deveria agora divulgar e desenvolver de forma atenta as programações próprias da CML e aquelas que esta patrocina ou a que se associa.
Em todos os ítens teferidos colocam-se questões de reorientação de meios financeiros, a par da revisão das opções programáticas."
(a rever)
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