"Ferreira examina o papel da cultura..." A pesquisa extensa, ou reflexão, assim se diz, de Ângela Ferreira, não produz conhecimentos, ela materializa-se em objectos (afirmados como artísticos - no limite podem ser cópias de documentos). Trata-se sempre de referir (citar ou transcrever) objectos ou obras ou documentação prévios (texto ou imagem), que são apropriados e remontados, ou re-apresentados, no caso do cinema apropriado, em construções arquitectónicas (maquetes) ± toscas e precárias - sem qualidades enquanto projecto de arquitectura ou enquanto escultura. As construções podem também citar monumentos ou projectos de arquitectura datados, referidos a um qualquer contexto tido por revolucionário.
É uma impressão de parasitismo que acompanha a visão desses novos (?) objectos ditos artísticos (construções, desenhos de projectos, textos), que nada acrescentam aos objectos históricos citados e apropriados. Os "estudos" desenhados ou pirogravados em contraplacado (e nestes assim se sublinha a artisticidade "material") , bem como as maquetes tridimensionais, não se reconhecem como elementos ou passos de uma pesquisa efectiva, seja ela reflexiva ou experimental, enquanto modelos ou protótipos, mas como uma produção de transcrições decorativas de cada uma das obras (ou pesquisas). Tal como a sua escolha de motivos ou temas de uma qualquer revolução ou utopia nada actualiza quanto ao destino inicial dos objectos apropriados, não lhe devolvendo qualquer operacionalidade ou eficácia, também a identificação das referências citadas e eventualmente a sua breve contextualização é forçosamente deixada exterior à obra, como elucidação proposta num texto anexo da autoria do/a comissário/a, tipo press-release. O que poderia/deveria ser matéria de possível ensaio (escrito) "materializa-se em objectos" destituídos de toda a racionalidade.
Neste caso a artista parasita obras anteriores, alheias, e transforma a sua respectiva ambição política de origem num exercício formalista, vazio de sentido para além da condição (atribuída) de ser um objecto artístico proposto a um mercado de arte, não a um terreno de acção política, apesar da ganga verbal esquerdista com que se apresenta. É a estetização de referências de esquerda ou revolucionárias destituídas da sua eventual funcionalidade prática.
Esse mercado é o mercado arte e também um mercado ideológico, no qual se ilustram estratégias de produção artística e teorias de interpretação. Dai que ao exercício da parasitagem se some a suspeita ou certeza do oportunismo, numa situação em que a África está na moda e que a chamada teoria pós-colonial substitui à investigação histórica séria um formulário esquemático e maniqueísta, que é também uma moda universitária nascida e exercida como poder a partir das antigas metrópoles.
Quando a comissária em exercício escreve que "A.F. (Moçambique, 1958) tem investigado, celebrado e problematicizado (por problematizado?) as utopias descolonizadoras e revolucionárias do período eufórico da construção nacional em Moçambique, entre a independência em 1975 e o início da guerra civil em 1977", isto significa que se apropria do lugar de nascimento (estudou na África do Sul e transferiu-se para Lx) para explorar a ficção de que é uma artista africana, moçambicana, e que igualmente se apropria de uma temática revolucionária para a ilustrar e apresentar-se como intérprete das tais utopias referidas, que não são desconstruídas (sujeitas a análise) mas superficialmente reconstruídas (reeditadas acriticamente).
Na sua biografia escreve-se (a própria ou a comissária escreveram): "O trabalho de A.F. desenvolve-se em torno do impacto do colonialismo e pós-colonialismo na sociedade contemporânea, estas investigações são guiadas por uma pesquisa profunda e pelo filtrar de ideias que conduzem a formas concisas, depuradas e evocativas." Encontramos aqui o enunciado do destino formalista (posminimalista?) das peças e uma circularidade vazia de conteúdo: a investigação é guiada por uma pesquisa (ou será o contrário?, a pesquisa a guiar a investigação) e por um "filtrar de ideias" que sublinha a incapacidade de produzir ideias (e formas) próprias - as formas serão "concisas, depuradas e evocativas".
A atitude parasita da prática artística e o oportunismo político parece-me que são as marcas dominantes. Nos casos do trabalho de 2015 referido às investigações antropológicas de Jorge e Margot Dias e ao Museu Nacional de Etnologia (Prémio Novo Banco) e na referência à Maison Tropicale de Jean Prouvé (levada à Bienal de Veneza em 2007 - como foi possível?) passou-se da irrelevância para a agressão interpretativa e o erro grave da contextualização anacronista.
Bibliografia: (A) 1. "ponto culminante de uma pesquisa extensa, com semelhanças importantes com as suas congéneres académicas, sobre os vestígios materiais das utopias políticas em Moçambique no período entre 1975 e 1977." 2. "a materialização dessa reflexão em objectos artísticos que se apropriam de diferentes disciplinas – escultura, fotografia, filme, desenho, xilogravura a laser, etc. – para concretizar uma síntese pessoalíssima de cada questão abordada." 3. "pontes conceptuais entre os vestígios iconográficos da história moçambicana e momentos chave da arte modernista até à transição para a contemporaneidade." 4. "uma história feita de redes, de cruzamentos onde Ângela Ferreira está permanentemente a marcar o seu lugar de artista plástica." 5. "navegamos entre as imagens do cinema documental, antropológico e ficcional, sem que nunca Ferreira tome posição sobre a interpretação que devemos fazer de cada peça apresentada." 6. "...exemplificam essa indeterminação interpretativa que se afasta definitivamente da tese académica – e por isso as críticas feitas por Pais de Brito ao trabalho de Ângela Ferreira, referidas em artigo sobre a reedição dos filmes de Margot Dias na edição de 5 de Agosto do Ípsilon, não só não fazem sentido como revelam com clareza a possibilidade de suscitar emoções que os temas abordados por Ferreira continuam a possuir. É que o olhar da artista nunca é frio, distante. É sempre um olhar sobre a história própria, dela e dos que a precederam, mas lavado, limpo, de uma lucidez sem véus." (L.S.O. Público, Ipsilon 26 Agosto)
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