A coincidência entre a actual mostra do Atelier-Museu Júlio Pomar ("O que pode a arte?"), programada a pretexto de Maio 1968, e a recente exposição 'Pós-Pop...' na Fundação Gulbenkian (em que não esteve representado) é uma oportunidade favorável para identificar os Anos Pop de Júlio Pomar, tema ausente dos ensaios sobre a sua obra. Um assunto que foi invisível no seu tempo próprio, e depois, até agora, já que as várias séries principais - em especial os Rugby, Mai 68 (CRS SS) e Banhos Turcos segundo Ingres, com continuidade em variações sobre outros quadros históricos e em retratos, até 1976 - nunca se mostraram em galeria ou em catálogo próprio, em Paris ou em Lisboa, e quase não foram expostas depois (*1). Um tema rasurado. Mas um tema necessário para entender a sequência das "fases" do pintor, e em especial a viragem decisiva do final dos anos 60.
Pode-se começar por considerar as telas que foram dedicadas aos Beatles, datadas de 1965-66 (reproduzidas no Catálogo Raisonné) e bem escolhidas no AMJP como representativas do "ar do tempo". Existem duas telas intituladas The Beatles (I e II) que foram pintadas em Lisboa (*2) e expostas numa individual realizada em 1966 na SNBA, estando uma delas incluída na actual exposição e a outra nunca localizada; existiu pelo menos mais uma terceira nunca exposta até agora (*3), de produção posterior e mais rápida, mais "experimental" ou mais "solta" e talvez por isso indicativa da procura de novas orientações. Note-se, entretanto, que subsistiram registos fotográficos de mais quatro telas sobre os Beatles que terão sido destruídas pelo artista, certamente nos finais de 1966, num grande momento de crise e reconsideração da sua obra (vejam-se as fotos publicadas num dos catálogos "Void*" volume III, ed. AMJP, 2017 ).
The Beatles I, 1965 / The Beatles III, 1966 / Catálogo da exp. de 1966 na SNBA
A exposição de 1966 na SNBA (Fev.-Mar.), foi a primeira mostra realizada em Lisboa depois de o artista se ter instalado em Paris em 1963, e aí surgiram em maior número as telas sobre dois dos novos temas parisienses, os "Metro" e as corridas de cavalos ("Courses"), ao lado de uma obra única sobre o Catch (luta livre francesa), de duas variações sobre uma pintura de Uccello e dos referidos dois quadros intitulados The Beatles I e II. Importará saber que a 1ª digressão mundial do grupo se iniciara em 1964 e contou com uma série de 20 noites no Olympia de Paris, a encerrar um programa de "music hall" com a participação de outros músicos.
Esses dois quadros expostos na SNBA foram reproduzidos em 1966 nas páginas do Século Ilustrado e da Flama, embora sem especial destaque, e a insólita aparição do grupo Pop não terá sido abordada pela crítica nem comentada depois. Poderiam ter sido objecto de estranheza, face à obra e aos interesses conhecidos do artista, mas passaram em silêncio (*4). De facto, ao contrário de todos os outros espectáculos representados por JP (cenas de trabalho, tauromaquias, corridas de cavalos, o catch, a par de inúmeros desenhos de observação de cenas e objectos variados), a série Beatles será a 1ª que o pintor aborda sem ter sido um espectador directo - mesmo que desde o início, desde o Gadanheiro, de 1945, usasse a fotografia como auxiliar da memória. A partir dos Beatles ele trabalha sobre imagens fotográficas encontradas na imprensa de cenas e situações (de espectáculos visuais) a que não assistiu directamente. Imagens mediáticas, o que é um segundo ponto de contacto com a Pop, mesmo que não pratique a transferência directa ou a colagem, nem a apropriação de imagens ready-made.
Uma referência a Rauschenberg, colocado a par de Velazquez, que aparece na entrevista de Adriano de Carvalho publicada em 1966 no Século Ilustrado, poderia ter sido também motivo de atenção crítica. Rauschenberg fora exposto por duas vezes em 1964 pela Galeria Ileana Sonnabend em Paris (*5) e premiado nesse ano na bienal de Veneza - a repercussão da sua obra era então imensa, mas recebida com hostilidade em França, desalojada do seu lugar central.
Mas já numa carta pessoal de Outubro de 1965, enviada de Paris, JP referia bem explicitamente o seu interesse pela Pop anglo-saxónica: Sobre uma visita à Bienal dos Jovens (será certamente o Salon de la Jeune Peinture) destaca o interesse das "litografias de Allen Jones, bem como de uma maneira geral toda a secção inglesa", e também da representação alemã, apenas. Refere também a exposição 'Figuração Narrativa' (Galerie Greuze) "com algumas coisas boas: um Rauschenberg, o primeiro Oldenburg a interessar-me, Kitaj, Peter Phillips e um bom Arnal" (só François Arnal é francês, vindo da abstracção lírica e informal). Na mesma carta fala do interesse pelos filmes dos Beatles: com a estreia de Help! descobriu A Hard Day's Night, de 1964, ambos de Richard Lester: "Vi o novo filme dos Beatles e ao mesmo tempo o primeiro. São do bom cinema, e um reatar da grande linha do cómico" . Mas à data já deixara em Lisboa os dois quadros para a exposição de 1966 na SNBA.
Em 1967 (2 Março), num artigo-entrevista de Mário Dionísio, publicado no Diário de Lisboa, Pomar refere a sua "descoberta da América" e dedica ao artista norte-americano, habitualmente classificado como “proto-pop", um comentário alargado que traduz o grande interesse pela ruptura que a sua obra veio trazer. A este respeito importa ter em atenção que a apresentação da Pop norte-americana em Paris é particularmente tardia, para além de ter sido em grande parte rejeitada, num contexto focado na defesa dos "Novos Realistas" de Pierre Restany e depois das "Novas Figurações" de Gérald Gassiot-Talabot. A descoberta da Pop americana ocorre no Salon de Mai de 1964 e em "Art USA Now" no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. (Ver 'Paris-New York', Centre Pompidou 1977).
Transcrevo o parágrafo desse diálogo: " 'Em pintura, a descoberta da América foi decisiva' (JP)... A 'pop', de que sorri, que falhou em Paris, não o inquieta muito. E gosta de Rauschenberg? (M.D.) 'Sim. É a integração da imagem num novo conceito plástico. Quando a arte abstracta se preocupa com não distinguir o céu da terra, ele, partindo dos elementos mais corriqueiros, imagens gastas, batidas, consegue conferir um valor plástico áquilo que os nossos olhos anteriormente não viam. Uma roda, um movimento, funcionam da mesma maneira que um azul cobalto. Uma refusão total do mecanismo da visão' (JP)"
Vêm a seguir (primavera-verão de 1967, na praia da Manta Rota, Algarve) as assemblages de materiais encontrados, associações imprevistas e livres de fragmentos de objectos gastos ou usados pelo tempo, peças sem leitura figurativa, sem precedentes na sua obra, se não consideramos como tal as esculturas de ferros soldados do início da década. A ligação a Rauschenberg é possível, sem ser imediata ou directa.
Estava a chegar a série sobre o Rugby, trabalhada também a partir de fotografias, tal como os Maios de 1968. Depois do impasse (im)produtivo que justificou a destruição de dezenas de telas (“Void*” volume III, 2017), JP entrava num novo ciclo de criação, em que a admiração por Rauschenberg e o contacto com a pintura Pop anglo-saxónica terão exercido um papel decisivo, mesmo se não mimeticamente explícito: a dispersão-associação de fragmentos sobre a tela, num fundo liso e não perspético; a substituição da pincelada livre pelo recorte nítido das formas. Depois da "desfiguração" anterior, em diálogo pessoal com os abstraccionismos gestuais (Saura, Mathieu, etc), a figura ganhava outras condições de possibilidade numa diferente abordagem e construção, como representação de (ou a partir de) uma representação (fotográfica). Depois de a figura se ter dissolvido ou desvanecido sem remédio nos quadros destruídos, que eram "abstracções" falhadas.
Rugby's e Maios sucedem-se e coincidem no tempo, e surge logo a nova série dos Banhos Turcos segundo Ingres - onde a relação com Matisse se irá tornar eficaz. Numa carta de Maio ou Junho de 1970, diz: "A retrospectiva do Matisse veio-me a calhar e tem-me dado material de trabalho. Veio na altura certa". É conhecido o interesse dos pintores da Pop por Matisse, nomeadamente de Warhol (logo numa declaração de 1956) e de Wesselmann e Lichtenstein, que o citam com frequência.
Nos últimos Maios (agora expostos) aparecem formas recortadas que já estão nos Banhos Turcos. Seguem-se os retratos de Almada e Viana, ou de mulheres, e as variações sobre outros clássicos, Courbet, Van Eyck, Chardin. É ainda uma relação com a Pop, e com o cartaz. Em todo este período a referência ou relação nunca se estabelece com as "Mythologies Quotidiennes" e a "Figuration Narrative" francesas.
Aconteceu por variadas razões, especialmente por o artista preferir pintar a expor, que as séries Rugby e Maio não tiveram a oportunidade de exposições individuais, nem em Paris nem em Lisboa, sendo imediatamente absorvidas pelo mercado português, e quase totalmente por Jorge de Brito - mas na retrospectiva de 1978 na Gulbenkian as obras da colecção Brito estavam inacessíveis e o enfoque principal estava já na série das colagens eróticas.
Em 1971, um Banho Turco (hoje na Colecção Manuel de Brito) foi exposto no Louvre numa mostra internacional sobre Ingres e as suas variações, mas a individual seguinte, 1973 na galeria 111, já não mostrou as séries Rugby e Maio, centrando-se nos novos retratos. Não era fácil acompanhar a sequência da obra de JP. Cada mutação desfocava a série anterior
A anterior Galerie Lacloche (onde expôs em 1964 e 65) passara a dedicar-se aos múltiplos, objectos e mobiliário de artistas mais ou menos Pop; a galeria seguinte, a Galerie Bellechasse, começou a expor JP apenas em 1979. Por isso os Maios de 1968 e os Rugbys coincidentes têm agora a 1ª oportunidade de serem vistos em extensão, embora a oportunidade se tenha bastante diluído nas condições da exposição colectiva, do seu título e do cartaz.
Maio de 1968, e a tensão política dos anos anteriores, tiveram uma expressão forte na arte desse tempo: foram anos de abandono da pintura em favor do cartaz, do múltiplo, da instalação e da acção, e em geral da contestação das disciplinas e estratégias expositivas habituais, condenadas como burguesas, consumistas, conservadoras. A relação de Júlio Pomar com Maio de 1968 é política, mas é também especialmente pessoal e estilística, vivida sob a aproximação à Pop britânica e norte-americana, que era menosprezada em Paris. Sendo obras políticas, pinturas sobre a história desse tempo, os Maios acompanham os Rugb's e os Banhos Turcos, e devem ser vistos nesse contexto que é em primeiro lugar formal ao mesmo tempo que é político. A mudança não é motivada por Maio de 68 e não determina o retorno a um tempo de activismo artístico de sentido político...
(versão revista)
Retrato de Fátima, 1968
Rugby, 1968
Mêlée (Rugby), 1968, Col. Museu Gulbenkian (não cedido para a exp. do Atelier-Museu)
Maio 68
Banho Turco, d'après Ingres
Notas a acrescentar: ...
*5 Na Galerie Ileana Sonnabend, Paris: Rauschenberg, May 14–30, 1964. E "Untitled 1953-1954 and Thirty-Four Dante Drawings", Dec. 1964-Jan 1965.
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