Nunca exposto até agora (1), e nunca referido, 'Marcha' é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela Pide em 1961. Bem reconhecível entre as figuras do jovem casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central que correspondia na época à sua intervenção como artista e activista -- animava e coordenou as acções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou já seria mesmo o respectivo “controleiro”, um controleiro não sectário, segundo J.P.). Em 1955 trocou uma carreira artística já reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A natureza política do quadro, que é de facto uma dimensão partidária, relaciona-o sem dúvida com as campanhas pela paz que o PCP promoveu nos anos de 1949-54, ao tempo da guerra da Coreia e da Guerra Fria, mobilizadas nomeadamente em acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao "Apelo de Estocolmo" pela proibição das armas nucleares, lançado em 1950, e contra a reunião de Lisboa do Conselho do Atlântico em Fevereiro de 1952, depois da adesão portuguesa ter sido ratificada em Julho de 1949, acontecimentos que vieram dividir e alterar profundamente as dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária. Este é muito obviamente, numa pintura clandestina (nunca divulgada, mesmo depois do 25 de Abril, por razões a interrogar), o lado comunista e pro-soviético de uma barricada semi-legal, residente num atelier e tertúlia activos num período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Rui Luís Gomes (1949 e 1951). E também na ocasião de um "desvio sectário" que conheceu grandes fracturas internas nos meios intelectuais e num PC debilitado por muitas prisões, o qual dá lugar a seguir ao chamado “desvio oportunista de direita” de 1956-59, após o relatório de Kruchov, depois “corrigido” pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, na dramática pequena história ziguiezaguiante do anti-fascismo.
Se esta pintura panfletária não se considerar uma "obra prima", este não é um quadro menor, até pela coincidente ambição do assunto e do formato, e o encontro entre o manifesto e o retrato de grupo concede-lhe uma verdade, uma intensidade que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aqui se identifica com o realismo socialista sem concessão académica. É uma obra única na carreira do pintor (apesar de renovar o título da primeira Marcha de 1946), e é uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, que, por sinal, continuou ser uma obra desconhecida - o artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Partindo da consideração da Marcha de 1952 é necessário tentar contrariar a desvalorização crítica das obras neo-realistas deste período (feita também pelo artista), e a partir daí rever a história habitual do movimento, dividindo-o em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico. O segundo período, a partir de 1951 é sensível à orientação de uma ortodoxia partidária chegada de França no sentido de um realismo social de intervenção militante. Algumas obras-chave mostram-no e a Marcha é o seu emblema maior.
Depois das mostras individuais de 1950-51, em que Pomar reuniu pintores recentes e pintou outras para ocasião - para além de apresentar cerâmicas e pequenas esculturas de barro com maior sucesso de mercado, renovadas na passagem da mostra de Lisboa para o Porto - , duas telas gémeas de 1951 mostram a continuidade da vertente que se pode dizer formalista e lírica, manifesta em Meninos no Jardim (O eixo corrido) e Vendedoras de estrelas. Mas logo se evidencia, ainda nesse ano, uma direcção que é ao mesmo tempo mais empenhada politicamente, renovando o programa realista e assumindo uma condição mais austera, trocando a fluência decorativa pela observação social e a afirmação política. É o caso das Mulheres na lota (Nazaré), ainda de 1951, depois da Marcha, a seguir de Os Carpinteiros e das duas peças maiores do Ciclo "Arroz", a que se acrescenta o retrato de Cardoso Pires, já de 1954. Só a confrontação partidária e a batalha ideológica (e crítica) de oposição aos realismos - no contexto da Guerra Fria e da oposição aos formulários naturalistas autoritários, nazis e estalinistas - veio ocultar estas obras maiores no curso da década de 50 e da carreira do pintor.
As novas condições da intervenção partidária afirmam-se com clareza na produção de uma série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, o qual mobiliza o PC na legalidade possível. A Mulheres Fugindo (conhecida como A Bomba Atómica) seguem-se as gravuras em que figura a pomba da paz proposta por Picasso como emblema da causa.
A Marcha como retrato de grupo identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que foi de José Malhoa), alugado e chefiado pelo também escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e recente ex-preso político, que é visto a entrar no bordo direito do quadro. Aí trabalharam também Maria Barreira, sua mulher representada pela Maternidade à direita baixa, um tema comum ao casal, e por vezes Dias Coelho e mais tarde talvez Alice Jorge, quando iniciara o relacionamento com Pomar. Lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, que alguém apontou como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAPs ou Gerais, 1946-56), em cuja organização participava activamente Dias Coelho e que Pomar acompanhava assiduamente na imprensa, até um último artigo em 1953, de avaliação e redefinição do neo-realismo e também auto-crítica militante, em que trocou as publicações habituais pelo mais longínquo Comércio do Porto. Cessa então a colaboração nas revistas, sem se conhecer justificação para tal (sequelas da "polémica interna do neo-realismo", razões pessoais?) e sem ser ainda um afastamento político declarado. Em 1955 a sua pintura deixa de ser neo-realista (mas continuam na gravura as figuras do trabalho), ao cabo de dez anos de prática, e o movimento encerra-se pouco depois, numa última Geral retrospectiva quando se iniciava a era Gulbenkian.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e simpatizante, certamente encomendador e depois proprietário de sempre desta obra, e logo a sua mulher, Dina. O par alegórico dos jovens militantes de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos da apologética religiosa, contou por modelos o carpinteiro Francisco Bento, saído da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas, e ao lado, muito provavelmente, Zita Namora, mulher do escritor, do qual Dias Coelho realizou um busto em 1950-51, o que justificaria a sua passagem pelo atelier. Desta Zita existem fotografias do seu retrato esculpido por Pomar (uma encomenda?) e de um estudo para o quadro (imagens abaixo). De Pinheiro Chagas há também um excelente retrato desenhado. A menina à esquerda não foi identificada, ainda, mas será alguém em particular - a "presença" dos modelos retratados vem reforçar a força mobilizadora da alegoria.
A alegoria tem como pólos simétricos a figura da Maternidade à direita, como promessa de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade moderna, em construção, com guindastes, personagens hieráticos (robotizados?); ao fundo, montes áridos. De um lado, o passado e um ilusório presente, do outro a infância e o futuro. Na metade direita, por trás do friso das figuras está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Talvez também se reconheça aí, mesmo em cima à direita, uma praia e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano rasgando de luz o ventre e o vestido azul da mulher - e este é um elemento de composição de grande eficácia moderna.
A memória possível do atelier, o interesse pelo retrato e o contexto neo-realista devem ser evocados com detalhe para situar esta obra de excepção, bem como o seu lugar no âmbito da produção de Pomar da primeira metade da década, sinalizando a respectiva diversidade quando se aproxima o fim da sua prática neo-realista.
O atelier da Praça da Alegria, no nº 47, ao que parece, situado entre o Maxime e o Hot Club, ao lado de uma leitaria, era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e grande actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, e outros mais. Esses primeiros anos da década de 50 conheciam uma grande tensão ideológica, a dissidência titista e "browderista" de Piteira Santos, Mário Soares e os Lyon de Castro, associada à denúncia pelo PC do jornal Ler da Europa-América; o debate sobre estética e as fracturas no campo neo-realista, centrado no controle da Vértice; a saída de Mário Dionísio do partido em 1953 e a recusa de continuar a participar nas Gerais, a partir de 54, após a alargada participação nacional na II Bienal de São Paulo enviada pelo SNI no ano anterior. Em 1952 a SNBA esteve encerrada depois de Eduardo Malta ter sido expulso de sócio “pela provocação que encenou contra José Dias Coelho, que encabeçava esta batalha” pela renovação dos júris (2). O atelier da Praça da Alegria era um lugar "ortodoxo" sujeito à pressão do realismo socialista de informação francesa, via Arts de France (a sua "Tribune du Nouveau Réalisme" surge em 1949 e a revista desaparece em 1951), que se ia abatendo sobre a originalidade e a irreverência do primeiro neo-realismo.
Tentando estabelecer um panorama da época, os livros então ilustrados por Júlio Pomar dão um retrato das relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato de 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949, 1950); Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949); Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (todos com retratos desenhados para as tiragens especiais de 40 exemplares da col. Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950/1953); e Alexandre Cabral (1955). As grandes encomendas editoriais da Fólio (de Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor e Portugália virão depois (1957-1967).
Além da escrita e do desenho para a imprensa, da ilustração e da cerâmica, têm relevância na actividade de Pomar (afastado do ensino em 1949) as encomendas para decoração e a escultura (a pintura era pouca, ao tempo, num mercado apenas de amigos), em retratos e em peças decorativas, que se expunham nas Gerais (assinalam-se adiante com *) e foram desaparecendo ou esquecendo-se em destinos privados: retratara em escultura a sua mulher, Maria Berta, em 1949*, e também os escritores Sidónio Muralha*, 1950, e António Navarro, 1951 (Salão de Outono), obras presentes na actual exposição, igualmente Armindo Rodrigues, 1951*, ficando-se por aí as peças com qualidade moderna, não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro “cabeças”, duas de amigos (Ana Moura*, mulher de Rui de Moura, editor, depois Prelo) e Joaquim Barata* (fundador da Gravura) e as outras (Zita e Liliana, 1951) talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados do ciclo Dom Quixote, em 1960. Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta presa pouco antes, no regresso de Moscovo, e o retrato indicado no catálogo da VIII Geral não terá certamente sido exposto, dado o contexto repressivo) - a que se acrescentam os de Vera Azancot (tradutora, 1954*), Alice Jorge (1955), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo, parceiro de viagens de automóvel e fundador da Gravura). É já de 1958 uma outra encomenda isolada, João Duarte, para a Companhia de Seguros Comércio e Indústria, agora no BCP, que só terá continuidade dez anos depois mas bem diferente.
Por seu lado, José Dias Coelho (n. 1923), que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; M.T. (Margarida Tengarrinha), 1950; Alves Redol, 1951; M.E.C. (Maria Eugénia Cunhal), 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. Aliás, o retrato teve sempre uma forte presença nas Gerais. Aí expostos ou não, o catálogo “Um tempo e um lugar” (3) refere ou reproduz obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta*, 1949), Vasco da Conceição ("cabeças" de Maria Barreira*, Sidónio Muralha* e Lopes Graça, 1950*); Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado* e Eduarda D.*, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol*, 1953, Cardoso Pires*, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires*?, 1955), e também de.João Abel Manta, Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, sd), José Farinha (Alves Redol, escultura s.d.), Euclides Vaz, entre outros retratos indicados sem nomes dos modelos.
Armindo Rodrigues 1951 de Pomar (col. part.) e Fernando Namora, de J. D. Coelho 1951, bronze (col.Museu Gulbenkian)
Picasso, Maurice Thorez 1945 / Fougeron, retrato da mãe de Thorez, e Picasso, Thorez, croquis 1949 (Art de France 1949) / Boris Taslitzky, A morte de Danielle Casanova
Além da permanência das práticas realistas, a disciplina do retrato era então recomendada ou imposta pelos partidos comunistas num período de maior pressão da ortodoxia (e do culto da personalidade, especialmente em França) - a pintura de história também se impunha mas foi naturalmente mais rara entre nós. Esse é um contexto que seguramente penalizou a respectiva continuidade em anos seguintes, e alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da sua morte...), num período em que o combate aos realismos, depois das normas nazis e soviéticas, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Depois de Picasso, Freud e Bacon, Hockney e Kitaj, Arikha, entre os maiores, iriam a seguir prosseguir e reafirmar a centralidade do retrato na arte do século XX.
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Para o grande formato de Marcha, único ao tempo - 122 x 199 cm, têmpera sobre aglomerado - Pomar usou uma placa de madeira da mesma série de três outras tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Costa Martins, com quem Pomar manteve várias colaborações (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com códigos de pintura mural, o que também ocorre nesta Marcha, embora esta de ambição panfletária, num figurino apologético onde a condição de retrato de grupo e a alegoria asseguram maior complexidade.
A campanha pela Paz está presente em três gravuras de 1951 que tiveram muito grande difusão e marcaram presença nas casas dos intelectuais da Oposição de feição comunista. Mulheres Fugindo, conhecida como A Bomba Atómica e A Explosão, seguida por outras onde já está presente a pomba que em 1949 Picasso promovera da iconografia cristã a símbolo da Paz no cartaz para o Congresso de Paris. Pouco depois, em agosto de 1949, a URSS detonou a sua 1ª bomba nuclear; em março de 1950 o Comité Permanente dos Partidários da Paz lança o Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares,
Outra obra que alude às campanhas da paz e certamente à Coreia é A Vida ou a Morte (conhecido também como Guerra e Paz), datada de 1953 e exposto nesse ano na VII Exp. Geral. O Massacre na Coreia, de Picasso, 1951, poderá ser uma referência reconhecível, condensando-se o grupo das mulheres numa única figura maternal e esquematizando a marcha militar até à caricatura, numa composição decorativa.
Mas a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem distinta e também de direcção inédita na sua produção, a paisagem, numa coincidência que reflecte a manifesta diversidade das interesses - mas nenhum destes quadros terá sido exposto no seu tempo próprio:
NOTAS
1 reproduzido talvez pela 1ª vez no Catálogo Raisonné vol I, 2004, nº 86, o quadro nunca antes terá sido dado a conhecer e não faz parte da iconografia do PCP.