"Desde há anos", diz M.M. = a cultura e as artes são assim mesmo, sempre, é o seu estado ”natural” (e não há nada de natural na cultura, é tudo Artifício, artificial): “O colapso desde há anos”, colapso?! - mas a palavra fantástico é a que mais se ouve sobre artes e artistas ; são todos fantásticos.
A arte como “carreira” é a opção pelo risco e/ou o desafio da afirmação própria ou da “expressão” pessoal, com o prazer da diferença e uma vida sem rede, a aposta de fugir ao trabalho rotineiro e "alienado" - mas de facto sempre cabem poucos artistas no sistema, porque são muitos os candidatos e poucos os escolhidos (ou os apoiados, ou os que têm sucesso, em vida ou depois). A boémia e o lumpen foram as margens do sistema, no fim do século XIX, depois das corporações e academias, quando houve artistas (independentes) a mais. Uma outra explosão de artistas - agora “autónomos” - foi crescendo desde os anos 70 (ou seja, depois das guerras e das reconstruções, 1914-1955) sobre a crítica da cultura e da sociedade burguesas.
Do espaço da cultura fazem parte também os públicos: leitores, espectadores, visitantes, consumidores, fruidores, amadores (num dos sentidos de amador). Ao contrário do que muito se diz e deseja o MC não representa os artistas e técnicos da cultura, nem a sua acção, quando existe, se destina apenas ou principalmente a eles. Como o Ministério da educação cuida dos alunos e não só dos professores; o M. da saúde cuida dos doentes e não só de médicos, enfermeiros e técnicos e assistentes e gestores...
Também se esquece habitualmente, intencionalmente, incluir os amadores (noutro sentido, o 1º, talvez) no espaço da cultura e das artes. Os que praticam a música e o canto, a dança, o teatro, a pintura, a fotografia e o cinema, etc não como candidatos ao "emprego" mas à margem do emprego e da profissão, como afirmação pessoal, troca, convívio. Amadores, pintores de domingo, outsiders (e podem ser /foram os melhores. São uma componente muito vasta e importante do tecido social da cultura, dão espessura à manta de retalhos da cultura (o tal tecido) mas não têm voz e têm poucos apoios (bandas e academias, "ranchos", sociedades recreativas, teatros amadores, associações, salões locais, etc). O país tem esmagado os seus amadores, em geral excluídos dos Programas, como aconteceu em 1985 nos Estados Gerais (onde é que eu tenho as páginas apagadas?). Os amadores praticantes e os amadores consumidores são o quadro, o contexto, a base necessária dos profissionais da cultura.
A cultura é um "ecossistema", aponta M.M., onde se precisa quase sempre de suportes profissionais acessórios, laterais ou predominantes (pintor e professor ou arquitecto, ou ilustrador; fotógrafo autor e/ou repórter, impressor, publicitário, etc; actor e empregado de mesa, actor de teatro e tv e cinema, quando calha; escritor e médico ou diplomata ou jornalista; poeta, artesão, figurante, músico, agente, produtor, curador, crítico.... O meio é pequeno, mas a situação é a mesma em NY ou Londres (mais descomplexada: mesmo os grandes artistas têm duplo emprego e as grandes obras fazem-nas quando têm bolsas ou prémios ou encomendas). Deixei de parte a reflexão sobre o talento, que é uma palavra problemática e pouco usada, que certamente foi preciso descartar para criar multidões de candidatos a artistas, que uma vez "defini" numa conferência sobre economia da cultura como desempregados com auto-estima. Quando faltaram as ocupações produtivas, empurram-se os jovens para as artes, onde não fazem greves e barricadas - são individualistas e não têm patrões exploradores (anteciparam a uberizaçao do trabalho).
"No meio disto, financiado em grande medida por todos estes expedientes, está o seu emprego «a sério» que é ser artista, como um buraco negro no centro de uma galáxia. Ou seja, a cultura é uma máquina gigante que se financia e alimenta a si mesma, deixando aos artistas a tarefa de trabalharem para ganhar o dinheiro para trabalhar." (M.M.) Mas a cultura não é uma máquina, é uma floresta, uma praia, um pântano, uma parte das estatística da economia onde cabem as mais diversas coisas. Como pode ser de outro modo, mesmo sem covid? Ser estudante, licenciado, “mestre” ou mestrando, doutorado em arte não garante ser artista, quando muito, para os melhores entre quase todos, é um estágio de “criatividade em geral” com passagem a outras práticas profissionais ou amadoras, escapando talvez ao call center. Ser doutor curador teórico crítico não assegura emprego. No sector, o jovem, o novo, a novidade impera, o desgaste rápido, a entrada constante de uma nova geração que substitui em grande parte a anterior, como as apresentações anuais/semestrais das novas modas. Será uma marca mais portuguesa porque o país é sempre o primeiro a colher a informação / tendência internacional, por não ter uma informação / cultura própria sedimentada. Desde os anos 1948 pelo menos. Os produtos renovam-se, as pessoas descartam-se - algumas sempre vingam!
Arte e a cultura são universos extremamente selectivos, onde impera o concurso para o apoio público e a perspectiva do sucesso que dá acesso ao mercado. Não há arte sem mercado, seja ele privado ou publico ou ambas as coisas em simultâneo (como os museus e os teatros nacionais e municipais). Mas também inclui áreas indefinidas de existência / sobrevivência sem reconhecimento crítico e/ou institucional, em que cabem biscates e inúmeras “profissões artísticas”, mais ou menos secretas, discretas, invisíveis, laterais - as praças estão cheias de “artesanatos” e artefactos de arte ou de decoração, colecção, “luxo” inútil. A ideia de "emprego" "a sério" como artista" (sic) tem muito pouco ou nenhum sentido - salvo excepções, que aliás a si mesmo se recusarão como “emprego”: o director-encenador, alguns técnicos especialistas, alguns músicos de sucesso que são patrões de si mesmo, empresários. (isto são só pistas, não é doutrina nenhuma... O Mário Moura que me perdoe citar-lhe a escrita...) #covidcultural
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