A propósito do texto do Hugues de Varine e de reflexões que originou:
A cultura profissionalizou-se, e desdobrou espaço para profissões anexas e acessórias..., mas apagou muitas outras profissões que eram as das artes menores e/ou artesanatos (os fingidores, canteiros-escultores, estucadores-artistas, pintores-decoradores, marceneiros-entalhadores, etc - em muitos casos profissões recentemente em vias de recuperação muito qualificada). E estrangulou (quase) os praticantes amadores, inviabilizou as suas associações, sociedades, clubes.
A cultura abriu empregos com despudorado voluntarismo oficial, quando outros empregos se fechavam nos sectores produtivos, para artistas e animadores, comissários, guias e guardas e muitos parasitas acomodatícios, mas também para técnicos, enquanto se estrangulava o espaço da crítica e se disciplinavam investigadores - em geral, eram antes amadores ou sub-empregados com profissões paralelas. Com a deslocalização e abandono de sectores produtivos, empurraram-se inúmeros jovens para todas e quaisquer áreas artísticas, e para isso foi preciso abdicar de exigentes exames de acesso às escolas e carreiras e por consequência de exigentes actividades críticas (levando à letra ideias da anti-arte e pervertendo a tese comum e certa de que todos somos artistas, mais ou menos aptos, ou outsider's, amadores, de domingo, espontâneos, tardios etc). Fazer artistas era fazer desempregados com auto-estima (defendi essa tese num colóquio de economistas), “naturalmente" isolados e não reivindicativos, porque pode falar-se em rigor de mais ou menos sucesso, que é no essencial uma avaliação íntima, mas não de exploração.
O primeiro caminho está em vias de reversão, valorizando agora práticas e habilidades manuais, produções e consumos artesanais, amadores, locais. O segundo é insustentável, e a crise que se implantou com e sem covid tornou-o evidente.
Em paralelo, a divulgação cultural (a oferta do acesso às obras-primas da humanidade - as boas intenções autoritárias mais o elitismo das aristocracias sócio-culturais) e, a seguir, o desenvolvimento cultural (a economia da cultura, as indústrias culturais) deram lugar às culturas/consumos populares de todo o género, esses maioritários: o reality show, o pimba, o best-seller, a feira medieval, o parque temático, o hip-hop, os jogos virtuais, a visita turística e por aí fora, a diversão e o entretenimento, que eram componentes ou características das produções cultas e destas se separaram, mas são obviamente cultura, culturas de hoje. Vai-se ao museu em família (novos comportamentos) porque há jardim, vistas, cafeteria, e satisfaz-se a nova obrigação de sair com as crianças ao fim de semana. O consumo cultural cresceu e alargou-se, como se pretendia, mas não na direcção prevista, como consumismo. E havia razões para isso ao cabo de muitas décadas de vanguardas e algumas de queda de muros.
O divórcio entre os públicos constituídos pelos próprios actores-artistas e promotores, mais os respectivos estudantes e investigadores-bolseiros, e famílias ansiosas, e, por outro lado, pelos consumidores de lazeres e entretenimentos é hoje inegável e radical. A (alta) cultura é de classe, é uma classe, cada vez mais elevada ou especulativa e distanciada da "população em geral”, o não-público. Tornou-se um nicho parasita, sem espaço social reconhecível, sem credibilidade e sustentabilidade, que vive da subsidiação dos poderes públicos, à custa dos impostos de todos. O programa de Malraux, de Vilar, de Lang, de Jacques Rigaud, criticado por Fumaroli, Yves Michaud, Jean-Pierre Le Goff e tantos outros, escrutinado por Philippe Urfalino (“L’Invention de la politique culturel” - da invenção à dissolução..., 1996), para dar referências francesas e já com alguns anos, foi claramente à falência, esboroou-se, mas a sua espuma é ainda visível, às vezes feérica. Com algum escândalo, que alguns exploram como populismo crítico.
O Ípsilon (suplemento do Público) é o respectivo veículo (infra)mediático, de seita, e não por acaso divide espaço com a elite que segue o Fugas (passeios, comes e bebes) - é a tudo isto que se chamava alienação. E o Inimigo Público não os topa como alvos.
É possível continuar a citar, a partir do aparelho do Estado, a obrigação desse mesmo Estado (Providência) ter "uma verdadeira política cultural” ou, a partir de sobreviventes profissões e activismos, vir reclamar um "Serviço Nacional de Cultura". Mas a resposta ao presente e o futuro são outros. Aliás, não há resposta, vivem-se respostas.
Como escreveu há dias Hugues de Varine, uma grande figura da museologia e do desenvolvimento comunitário, “tudo isto é herético e provocador, e o tempo que vivemos não é favorável a que se ponham em causa certezas que, aliás, não têm mais de sessenta anos e repousam sobre afirmações de árbitros de gosto e especialistas autoproclamados que defendem os pontos de vista de uma minoria de privilegiados.
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