(Depois vou digitalizar bem o calendário. ..)
Gostava de saber que circulação teve à época, sendo obviamente uma edição partidária para angariar fundos. Gostava de entender as condições da semi-legalidade do PC nesse tempo de grande confrontação política e activa repressão (de Norton de Matos em 1949 a Rui Luís Gomes, 1951, e Humberto Delgado em 1958), com a entrada de Portugal na Nato em 49 e a reunião do Pacto do Atlântico em Lisboa em 52. Um calendário comunista para 1954, editado por Victor Palla, ao que parece, e ele é pelo menos o autor da capa - a edição não é identificada. Participam também Maria Keil, Querubim Lapa e (outros...), comunistas, simpatizantes e compagnons de route, o núcleo duro dos neo-realistas em 1953, ano em que termina a guerra da Coreia (Julho).
Especialmente relevante é a aberta intervenção anti-colonial de António Domingues, artista de longa carreira pouco conhecida. A "marcha" ou manifestação de massas aparece também nos desenhos de Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado e Maria Barreira (esta em versão feminista). A pomba da paz é desenhada por Pomar (lavores femininos); Alice Jorge, que assina M. Alice, em versão multi-étnica; e José Dias Coelho (os namorados).
Esta “fase” militante do movimento neo-realista vai terminar com a morte de Stalin, o relatório de Krutchov, o chamado "desvio de direita" do PC, o fim das Exposições Gerais em 1956, o início das bolsas da Gulbenkian e a sua (1ª) exposição de 1957, numa sucessão muito rápida e articulada. Também com o surgimento de uma nova geração (ou “fornada”) de artistas (que já não nascem no PC e no MUD/MND, alguns católicos, já progressistas, com o Movimento de Renovação da Arte Religiosa, de 1952 : https://www.snpcultura.org/obs_13_movimento_renovacao... ), que já são abstractos antes de ensaiaram as novas figurações continentais e a Pop nos anos 1960, que vão fazer a galeria Pórtico, o jornal Ver (René Bertholo é central) e a seguir emigrar (as bolsas...) e que ainda entram, alguns deles, nas últimas Gerais e decidem participar nas iniciativas do SNI (salões e bienal de Paris), cortando assim com a prática e a tutela da geração de 1945.
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O que poderia ser um calendário social-democrata, ou, vá lá, socialista? Não o consigo imaginar e certamente é impossível. E isto ajuda a pensar o lugar da figuração militante ou engagé, aqui e em geral no tempo longo, a sua possibilidade e conflitualidade, a questão das vanguardas (política e artística), e a oposição entre “abstração” e figuração nos anos 50 da Guerra Fria, com a condenação de TODA a figuração e a suposta inevitabilidade da abstracção que então se defendeu ou impunha, nomeadamente em Portugal, país muito sensível a modas por falta de formações ou tradições artísticas sólidas.
Neste caso, trata-se de um relançamento do neo-realismo numa particular conjuntura política que se caracterizou pelo que depois se chamou o "desvio sectário" do PC e pelas campanhas da paz no contexto da guerra fria e do últimos anos de Stalin, rompendo com os propósitos de unidade anti-fascista. Ao tempo da polémica interna do neo-realismo (ou da Vértice). Interessa-me agora este calendário por incluir uma iconografia ignorada e em especial por informar sobre o contexto da Marcha (JP, 1952) e por vir preencher um vazio na história do tal neo-realismo da 1ª metade da década de 50, um tempo esquecido e mesmo apagado pelos protagonistas (por JP e Mário Dionisio, que então pessoalmente se distanciam: MD deixa o PC, que não lhe permite passar de militante a simpatizante: as cartas trocadas existem e foram divulgadas - são surpreendentes; JP continua por algum tempo e sai discretamente, e o neo-realismo é para ele uma memória dos anos iniciais, que continuava a polarizar a atenção sobre a sua obra, e de tempos difíceis).
Em 1953 JP publica um importante artigo no Comércio do Porto em que faz o balanço do neo-realismo ("sem discutir a justeza do crisma", diz) e uma auto-crítica que envolve M.D. (In Júlio Pomar, Notas para uma Arte Útil, ed. Atelier-Museu/Documenta p. 285-289):
"... alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática dos primeiris tempos. A procura de soluções foirmais começa a sobrepor-se ao vigor do conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos 1949 a 51 <o que inclui a individual de 1950> oferece tais características, e desvios de tipoo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio. Desse impasse se tem estado a sair. "
É o seu último artigo na imprensa do tempo, por razões desconhecidas. Por acaso ou não, publica no mesmo ano, numa representação nacional numa revista francesa, um breve texto em absoluto discordante da ortodoxia comunista ali patente, mas retomando textos anteriores de oposição ao idanovismo de Cunhal:
"O assunto não é o conteúdo, é um pretexto, e mais nada. O conteúdo é a síntese dialéctica entre o tema e a experiência pessoal e vivida do artista. Ela manifesta-se na forma, vive nela, é exaltado por ela. Os conteúdos das minhas telas são as razões que me ajudam a viver'" (aspas do autor) E antes: "Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O trabalho (métier) de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e ela retornam. Houve um tempo em que desprezei certos assuntos? Erro meu." (Premier bilan de l'art actuel 1937-1953, Le Soleil Noir: Positions, Paris nº3-4, p. 314 - em Notas sobre uma Arte Útil p. 241).
A ideia de pretexto é problemática, parece-me (uma concessão aos abstraccioinismos?). A separação de forma e conteúdo, e do tema e da experiência, não solucionam problemas. Mas importaria mais saber se o texto francês é posterior ao português, ou se é um exercício de versatilidade que se documenta também noutras obras pintadas de 52-53, as paisagens. Aí não estamos (já?) perante a doutrinação neo-realista.
Para além da avaliação da qualidade das obras (muitas delas muito fracas, incipientes, no calendário e no seu tempo, como é "natural") existiu um apagamento do que foi uma renovação da "tendência realista" ou um breve realismo social ou socialista a suceder ao primeiro neo-realismo (1945-50), o qual vigora entre 1951 e 55, no caso de caso de JP, e que não segue o naturalismo e reaccionarismo estético de matriz soviética e tradução francesa. Para lá de se reencontrarem obras, melhores e piores (é a história e a sociologia), importa rever a história da arte desse tempo que foi escrita por protagonistas implicados (J. A. França e herdeiros, Mário Dionísio e Ernesto de Sousa, este actualmente ignorado quanto ao que escreveu antes da adesão súbita à Documenta e a Wostell), e em geral importa pensar o destino da arte, em especial da Guerra Fria até hoje, e a sua possível importância (ou desinteresse) no presente mediaticamente dominado pela sua mercantilização e museologização, em absoluto confundidas na sociedade do espectáculo.
Caro Alexandre,
Tenho andado às voltas à procura deste calendário, que não encontro em lado nenhum - provavelmente por inépcia da minha pesquisa. O alexandre tem este calendário? Estou neste momento a escrever um artigo em torno do neo-realismo visual (chegámos a falar ao telefone, não sei se se lembra) e da "actualidade" das suas problematizações - sobretudo no que diz respeito a sobreposições/tensões entre as esferas ideológica e estética - no contexto contemporâneo de globalização/localização.
Em qualquer caso, apenas queria agradecer a partilha tão generosa que tem feito neste blog, que para mim tem sido uma fonte preciosa.
A propósito: reparei no outro dia, a ver o Catálogo Raisonné de JP que a obra "saltimbancos", da qual aparece reproduzido um estudo a grafite, surge como "não fotografado". Provavelmente já tem registo disso, mas essa obra foi reproduzida na revista Panorama (nº 13, Fevereiro 1943).
Também aparece reproduzido um pequeno estudo para os ciclos do arroz (cat. nº 104, "Estudo Para ciclo “arroz”), com "dimensões desconhecidas". Recentemente encontrei esta obra no Atelier-Museu: Estudo para o Ciclo “Arroz”, 1953, Óleo sobre aglomerado, AMJP000104, Sem moldura - 26,7 x 27,3cm, Com moldura - 29,4 x 29,9 cm.
um abraço a até breve
Diogo Costa
Posted by: diogo costa | 01/02/2021 at 15:24
Boa tarde, e obrigado pelo c ontactio. Sim temos o calendário, mas sem mais informações sobre ele. Vou digitalizar e colocar no blog - é uma peça mt significativa da situação ideológica do Neo-Realismo nesses anos da polémica interna. Pelo que julgo saber não existe no Centro Mário Dionísio, o que é natural.
Vem brevemente referido na tese do João Palla sobre o Victor Palla, seu avô.
A tese: O Lugar do Desenho na Obra de Victor Palla, Parte I
João Palla e Carmo Reinas Martins
Doutoramento em Belas-Artes (Especialidade em Ciências da Arte). FBAUL 2012
"Neste contexto , Victor Palla tomou a iniciativa de editar um calendário para 1954: «12 Artistas Portugueses» (* Nota 424, abaixo) com ilustrações de Júlio Pomar, António Domingues, Maria Barreira, Carlos Rafael, António Alfredo, Alice Jorge, Cipriano Dourado, Lima de Freitas, Querubim Lapa, Rogério Ribeiro, Dias Coelho e Maria Keil. Segundo Júlia Coutinho, este calendário é uma obra pensada para assinalar datas oposicionistas importantes. José Dias Coelho ilustrou o mês de Novembro e assinala o Dia do Estudante, a 25 Novembro, instituído na reunião das Três Academias em Coimbra (1951), em homenagem à ‘Tomada da Bastilha’ pelos estudantes em 1921". (Nota 425: Júlia Coutinho in http:estudossobrecomunismo.weblog.com.pt/arquivo/2005_07.php. INEXISTENTE?) Ver nota ***
* Nota 424 Neste se pode ler: «Este calendário reúne 12 desenhos, de 12 artistas portugueses e em cada um deles se formula, por diferentes maneiras, um voto único: / um voto único, belo e universal: sejam afastados ameaças e pavores, e relegada a guerra para o rol das coisas que deixaram de existir. / um voto único: ver o espírito de negociação e de entendimento entre os povos lançar raízes e dar frutos. / que o ano de 1954 seja assim um ano de paz. apertem-se os laços de amizade entre as gentes e tenham livre curso as relações culturais, o comércio dos povos, a alegria das crianças» (revisto). Texto atribuído a Victor Palla, capa do calendário, esta também executada por ele.
Em 1975, novo calendário: "Victor Palla elaborará o design de um autocolante de colocar na lapela, e um «calendário para 1975/1.o ano de liberdade/com desenhos de artistas portugueses» José Dias Coelho, Ivone Balette, José Farinha, Cipriano Dourado, António Domingues e Maria Barreira. (Nota 456: 456 Edições Avante.)
*** um grupo de 40 estudantes tomou de assalto o então Colégio de São Paulo Eremita, pertencente à Universidade de Coimbra (UC), para fazer dele a sede da Associação Académica de Coimbra (AAC). O organismo da UC já existia há 33 anos mas... sem sede, que passou a ter depois do “assalto” daquela madrugada de 25 de Novembro de 1920, baptizado então como “Tomada da bastilha” em homenagem à Revolução Francesa.
E mais: sim, tinha já localizado a reprodução na Panorama, o que reflecte uma significativa abertura a
jovens artistas. Não, o nº 104 continua por localizar, o AMJP expôs o nº 101, segundo me parece.
Posted by: Alexandre Pomar | 01/02/2021 at 20:39
Caro Alexandre, obrigado pelas pistas; também foi na Tese sobre Palla que vi pela primeira vez a referência ao calendário, mas andei à procura na BN, Gulbenkian, Museu do NR, e não encontrei mais nada... Em relação ao Estudo para o ciclo do Arroz, tem toda a razão, claro, eu é que anotei mal o número de catálogo, trocando com o 101, que de facto está localizado!
um abraço e até breve
Diogo
Posted by: diogo costa | 01/04/2021 at 11:33
Eu tenho um exemplar do catálogo que me foi dado por Victor Palla. Foi realizado em 1953 no contexto das lutas pela Paz.
Posted by: julia coutinho | 08/20/2023 at 23:25