O primeiro tomo do diário de Mário Dionísio, intitulado «Passageiro Clandestino» e até agora inédito, escrito intermitentemente a partir de 1950, e a continuar com mais 4 tomos até 1989, foi apresentado no dia 25 de Abril na Casa da Achada (é o volume 11 e 11a da Colecção Mário Dionísio). Esta primeira publicação vai de 1950 a 1957 e é acompanhado por um maior tomo de notas, da autoria de Eduarda Dionísio.
São 230 páginas o 1º vol., com uma breve justificação da Eduarda para a edição do Diário que MD deixou incompleto ou irregularmente escrito e reescrito por volta de 1977. E mais 516 páginas do 2º vol., a que correspondem 809 notas e índice de imagens, num exaustivo ou ciclópico trabalho de pesquisa, transcrição de textos e informação sobre os nomes, edições, espaços, assuntos e acontecimentos que MD vai referindo e que se documentam graças ao arquivo e ao acervo da Casa da Achada-Centro Mário Dionisio. Uma espécie de wikipedia pessoal, bem sistematizada, que se enfrenta como um animado puzzle ou, melhor, que se percorre como uma floresta feita de muitos trilhos e lugares. É um mapa de relações políticas e em especial literárias e artísticas, também biográfico sem derivas mundanas, sobre o fundo neo-realista dos anos 40-50, e da "polémica interna" da revista Vértice de 1952-53, vivido com a ortodoxia austera de um heterodoxo (ou a heterodoxia de um solitário ortodoxo). 2 livros por 30€, ou 25 para Amigos, à venda aqui: http://www.centromariodionisio.org
Júlio Pomar é um dos nomes referidos no Diário de Mário Dionísio (Passageiro Clandestino, vol. I, 1950-1957) e nas notas da Eduarda. A ruptura de 1953 quando MD sai do pc e JP fica, por mais algum tempo, foi vista como uma "traição" pelo 1º, e as relações pessoais, embora distanciadas, só se restabeleceram em 1966 numa visita a Paris de que resultou o artigo-entrevista "Reencontro com Pomar" (Diário de Lisboa).
MD (dez anos mais velho) foi quem mais escreveu sobre JP, de 1945 na Seara Nova (“O princípio de um grande pintor?”), após a Missão Estética de Férias em Évora e do quadro “Gadanheiro”, até ao prefácio de um álbum monográfico de 1990 (Pomar, Pub. Europa-América), onde, aliás voltou detidamente àquela ruptura, apontando uma alegada sujeição à ortodoxia jdanovista e recusando sem apelo as pinturas do "Ciclo do Arroz". Fica em aberto perguntar quem era à data mais “ortodoxo".
A divergência é referida num texto sobre o painel MARCHA, de 1952, a publicar no catálogo da exposição que o Atelier-Museu dedicou ao retrato na obra de Júlio Pomar.
Mário Dionísio, 1950
Entretanto, transcreve-se uma longa passagem do referido prefácio de 1990:
“O Último Baluarte” in, Pomar, Mário Dionísio, Pub. Europa-América, 1990, pag. 24 e 49-52
"(...)
Mas nessa altura Pomar pertence já ao Partido Comunista Português. que tem ou deseja ter a sua estética própria. O bom militante é aquele que cumpre e está de acordo. E, se o não é, deve tentar sê-lo. Quando em 52, vários escritores saem desse mesmo Partido, por discordâncias várias que se ligam também, e muito, a problemas ideológicos no domínio da arte, ele fica. E, como fica, tem de esforçar-se por seguir novos ideólogos, um deles, por sinal, de conversão recente, cuja visão é tão obcecada quanto curta. E conhecida. Seguir sem discussão o exemplo da URSS e os conhecidos mandamentos jdanovistas: representação de cenas, colhidas in loco, de trabalho e luta (ainda que a não houvesse senão como desejo)
numa linguagem de pronto a todos «acessível». Ou seja: um naturalismo impossível de refazer no nosso século e por isso dessorado. Como toda a gente (hoje) sabe, incluindo o Partido em questão. E na URSS também, ou muito em vias disso.
Foi um momento de «recuo» na linha evolutiva da obra de Pomar. E a ele me referia nos meus ingénuos receios, posteriormente confessados, aquando do nosso reencontro: «Certos retratos, por exemplo, fizeram-me recear uma autodestruição iminente» (9). Eram os retratos, quase académicos e parafotográficos, de Maria Lamas, Vera Azancot, Alice Jorge, Cardoso Pires, que foram expostos, se me lembro bem, uma vez e nunca mais. «Bem medíocres» os considera hoje o seu autor” (10).
Anos atrás, Alves Redol, que, como Zola, trabalhava muito sobre notas tiradas no local, tivera a bela ideia de fazermos um livro em comum, escrito por ele e pelo Manuel da Fonseca, ilustrado pelo Pomar e por mim, sobre a faina piscatória de Lisboa. E assim nos levou, noite ainda, para a Ribeira do Tejo, de blocos de apontamentos em punho. Foi um convívio amigo e interessado, muito alegre, até ao romper do dia, entre pescadores, varinas e outros comerciantes do pescado, na azáfama ruidosa e altamente colorida da lota, nos botequins do cais todo avesso à «saudade de pedra», mas que deu pouco fruto e de livro nem cheiro. Optimista por opção, que a amargura conheci-lha eu bem, Redol insistia agora na ideia. Mas só se tratava de pintura desta vez e com outras ambições. Como a de tirar a limpo, na prática, até que ponto os que recusavam Jdanov o fariam mesmo com razão. Nunca falei disto com o meu amigo Redol. Mas sei que, com a esperança de princípio nele habitual, encaminhou Pomar (mais Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado, Alice Jorge, António Alfredo e um Lima de Freitas que então se pretendia mais neo-realista que ninguém) para terras do Ribatejo, que conhecia como as próprias mãos. Esperando uma resposta, penso eu, aos que nunca tinham querido identificar neo-realismo com realismo-socialista. Que eram poucos, parece (11), bastando embora para desarrumar a casa.
Mas dessa iniciativa, dessa espécie de chuva no molhado, que resultou no caso de Pomar? O «ciclo do arroz». E que é o «ciclo do arroz»? Uma desesperada tentativa de pôr de acordo o que nele há muito se digladiava, sem o ter (era impossível!) conseguido. São óleos de camponesas ceifando, bebendo água, de que a pintura anda longe. Aquela, pelo menos, que ao artista certamente interessava. São sobretudo duas grandes composições - Ciclo do arroz, I e Il - , onde o desenho fechado leva a melhor, a pincelada a si mesma se disfarça, como sentimentalmente pareceria convir à gravidade do assunto: mulheres vergadas para a terra manejando enxadas, numa das composições, mulheres, na outra, indo para ou regressando do trabalho em fila indiana, sóbrias, quase rígidas, com a fixidez de instantâneos em pose. Mas manejavam as enxadas? Mas caminhavam? A arte aqui está mesmo no limite de ser apenas meio. A velha história das boas intenções que nunca bastam. Mas não é aí, muito evidentemente, que o ponto bate ou batia.
Como o pintor terá sido o primeiro a entender. A sua posterior saída do PC fez-se sem drama, sem discussões teóricas ou outras. Ele próprio contou, muitos anos depois, que «não houve uma ruptura súbita». Que «houve uma espécie de lassidão progressiva, uma dificuldade de participar que se instalou e foi guardada como distância conveniente. Eu vivia mal, de tarefas mercenárias nem hoje sei como, e descobri-las não era fácil. O pouco tempo que me sobrava queria voltá-lo para o meu trabalho, e não para discussões intermináveis à volta de uma mesa. Ficou-me o horror destas. E depois quem era tido por figura de algum prestígio tinha direto
a uma dose de algodão em rama se não fizesse ondas. Eu não fiz ondas” (12)
Desculpe-se a longa citação. Mas talvez ela seja necessária para conseguirmos perceber como, dando o passo que outros tinham dado, com que perturbação!, alguns anos antes, Pomar pôde chegar sem sobressaltos de maior à sua posição política actual: embora não alheado do que se passa no país (gostosamente colaborou no mural colectivo de 10 de Junho de 74, participou nas últimas eleições para a Presidência da República), «possui [hoje] a dose de cepticismo e de sentido crítico que são os ingredientes da liberdade e autonomia do artista face ao poder» (13). O que se liga, bem parece, ao facto de ter ultrapassado também sem grandes sobressaltos -- é uma evolução quase linear de um ponto para o seu oposto -- a crise (inibitória) do «ciclo do arroz», ele mesmo desencadeando a crise
(criadora) que marca o fim da sua primeira grande fase. Estou pensando n'O carro dos cómicos, por exemplo, talvez já para lá da crise ou, quando muito, um pé cá, outro lá.
É a altura então de nos perguntarmos se a linha interrompida que já se verifica em vários dos XVI Desenhos (1948) não será uma premonição (a que distância!) do desenho aberto que, em pintura, a expressão do movimento exige e que, como hoje sabemos, é muito cara a Pomar. Desde que se distinga a «descrição» de figuras colhidas em acção (por fora), como num instantâneo fotográfico, que neste artista sempre houve -- Gadanheiro (1945), Golo (1948), Carro na calçada (1950), as próprias camponesas do «ciclo do arroz» simulam vir andando ou manejar enxadas -- e o movimento total, de dentro imposto; mais «narração» que «descrição», que começa com Maria da Fonte (1957), cujo desenho já não é rigorosamente contornante e denuncia, mais a composição em diagonal dinâmica e a própria cor (Goya à vista, Columbano também: “uma arte nacional pela forma” queriam os jdanovistas...), a existência, agora às claras, de forças internamente digladiantes atiradas para um arranque definitivo.
Só depois do contacto directo com Goya - o próprio artista o disse - foi possível o movimento de Lota, clara resposta a Mulheres na Lota, de 51, onde tudo é estático e quase hierático. (...)"
NOTAS
9. Mário Dionísio, «Reencontro com Pomar». Jornal citado < DL>. Lisboa, 2.3.67
10. Cf. Júlio Pomar in Helena Vaz da Silva, Com Júlio Pomar. Edições António Ramos. Lisboa, 1980, p. 67.
11. O próprio Pomar diz: «...um verismo na corda limite do realismo socialista; limite do neo-realismo, como no país, por imposições censórias lhe chamávamos». Cf. Helena Vaz da Silva, obra e edição citadas. p. 68.
12. Cf. Helena Vaz da Silva, obra e edição citadas, pp. 60-61.
13. Pedro Vieira, «Júlio Pomar: 'na minha relação como quadro ele tem que sair vencedor'». Entrevista in Jornal de Letras, n 15. Lisboa, 15.9.81
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